Cultura

Alípio Freire analisa livros que abordam as ideias e os ideais da Revolução Francesa na América Latina

Numa época de socialismos envergonhados (quando não domesticados), certamente o pensador francês Jean Baudrillard pode ser considerado um impertinente. Seu trabalho, publicado no semanário italiano L’Expresso (edição de janeiro) e comentado pela Folha de S. Paulo (de 26 de fevereiro), ataca virulentamente as comemorações do bicentenário da Revolução Francesa. Em suas palavras, o socialismo francês, "longe de projetar-se no futuro, dedica todos os seus esforços à comemoração", acrescentando que "todos os grandes projetos deste regime são mausoléus, quase monumentos fúnebres: a pirâmide do Louvre, o grande arco de La Défense...

De qualquer modo, aqui nos arraiais tropicais, nós, saudosistas fim-de-século, enquanto o capitalismo vive sua segunda Belle Époque, continuamos a importar os três cês dos itens de exportação de Paris: Culture, Couture et Comestiques (cultura, costura e cosméticos). Assim, certamente, comemoraremos também o bicentenário da Queda da Bastilha, traduzindo o Dicionário crítico da Revolução, de François Furet, e dezenas de obras francesas sobre a Revolução Francesa. Se não pudermos construir um novo teatro como fizeram os franceses na praça da antiga fortaleza da Bastilha -, levaremos à cena de nossos teatros municipais (devidamente encomendados no começo do século a arquitetos franceses) óperas sobre a Revolução Francesa.

É indiscutível a importância dos acontecimentos de 1789. Nada tenho contra o Século das Luzes ou seu estudo, sua pesquisa, e muito menos contra o interesse de nossos intelectuais socialistas por tal tema. Assusta-me apenas que a concepção imperial de cultura desenvolvida à perfeição pela burguesia francesa cale tão fundo nos corações e mentes de socialistas de diversos matizes e partidos. Aliás, cumpre notar que durante 1988 os 20 anos do Maio Francês foram mais explorados entre nós (com textos e conversas) que os acontecimentos de 1968 em nosso país. Mais não fosse, no Brasil foi o ano do Ato Institucional nº5.

Não é preciso ser (ou temer parecer) um nacionalista para se defender a soberania nacional, nem mesmo um reformista, para defender a questão da cidadania. No entanto, assim como na Revolução Francesa, me parece claro que essas questões não se resolvem fora de um quadro de confronto de classes, ruptura e mudança de hegemonia no poder.

Aliás, ante os banqueiros internacionais (que certamente estão com seus lucros calculados com relação às comemorações do 14 de Julho) e a nossa dívida externa etc., era o momento de os intelectuais socialistas da América Latina (portanto, também do Brasil), da África e da Ásia fazerem sua grande manifestação e, durante os festejos da Queda da Bastilha, abrir uma grande faixa no Arco do Triunfo - legível em toda a extensão da Avenida dos Champs Elysées com a inscrição: "A Santa Canalha somos nós: povos do Terceiro Mundo" (em francês, é claro).

Da Revolução Francesa, esses mesmos socialistas dão um salto de cem anos e colocam em pauta - de eventos e tertúlias - os ideais republicanos como tema do centenário da Proclamação da República em nosso país.

Mais uma vez, fogem da questão de fundo. Mais uma vez, tergiversam. Em alguns discursos mais inflamados, os ideais republicanos e a cidadania (assuntos tão sérios) começam a soar em nossos ouvidos como relançamento da Campanha Civilista do velho Ruy Barbosa.

E não se pode falar de República no Brasil sem falar de reforma agrária. Cem anos se passaram e o assunto continua tão urgente quanto premente. Canudos foi apenas um marco, que parece esquecido. O assassinato de Chico Mendes não desmente essa tese.

Enquanto isso, na literatura brasileira, vai passando despercebido o romance editado no ano passado pela Marco Zero, Joaquina – filha do Tiradentes, da mineira Maria José de Queiróz. Aliás, completamos este ano 200 anos da prisão de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que seria enforcado e esquartejado três anos depois. Lembram-se?

Quem sabe não seria uma boa ótica para retomarmos, da perspectiva desta então Colônia portuguesa, o estudo da Revolução Francesa, do seu ideário, da sua importância e amplitude enquanto resposta à necessidade de uma nova ordem internacional? Que papel desempenhávamos nisso tudo?

Aprofundar esse tema permitirá não apenas entendermos melhor nosso papel hoje, como também conseguir um perfil da sociedade brasileira que nos possibilite tatear menos na busca de nossas propostas para o socialismo e compreender melhor a composição e história das classes do país, definindo com mais clareza qual o bloco de alianças necessário ou indispensável para nosso avanço.

O livro de Maria José, modesto em suas pretensões, apresenta um precioso trabalho de reconstituição histórica pouco comum à nossa cultura. A estória transcorre no final do século XVIII, no interior de Minas Gerais. Joaquina, mulher, filha bastarda, pobre e considerada infame por descender de Tiradentes, enfrenta incógnita uma sociedade conservadora e impiedosa. Tiradentes fora preso quando ela completara pouco mais de dois anos, tendo de fugir com sua mãe e esconder-se, sem poder jamais revelar sua identidade. Mas também essa pesada sociedade mineira está em transformação. Joaquina assiste a tudo isso e a todo o processo de enlouquecimento de sua mãe. Um dos grandes momentos do livro (mas não o único), é certamente aquele que relata os diálogos entre Joaquina, sua mãe, um jovem filho de fazendeiro (estudante em Coimbra), um frade (doutor em Coimbra), um casal de reinóis e sua filha adolescente, dois tropeiros e um jovem holandês (misto de aventureiro, artista e naturalista), numa fazenda das Gerais. As cartas estão todas postas em tais conversas: "as idéias francesas", o marquês de Pombal, Tiradentes, o pensamento holandês. Tudo isso filtrado por representantes dos diversos estratos sociais.

O livro de Maria José é, sem sombra de dúvida, uma importante contribuição para a nossa identidade cultural. O tema se desenvolve em dois planos: a memória de Joaquina e suas reflexões, e o discurso cada vez mais delirante e enlouquecido da mãe. A morte do alferes, ao mesmo tempo que lhes obriga a uma cumplicidade e a uma unidade, gera ressentimentos crescentes e provoca abismos entre mãe e filha. Por essa fenda escorre a história do seu tempo. Literariamente. o trabalho é de primeira qualidade - uma prosa enxuta, capaz de colorir todo o barroco do cenário sem no entanto se deixar aprisionar por ele. Sobre a edição, apenas uma ressalva: apesar do emocionado e emocionante comentário de Márcio Souza na orelha do livro e da nota da autora (13 linhas) no final, falta ao leitor uma introdução ou prefácio que localize melhor a dimensão ficcional ou histórica do personagem central.

Duas outras preciosidades são as obras do escritor cubano Alejo Carpentier, O reino deste mundo e O Século das Luzes, que precisariam ser reeditadas.

O reino deste mudo, escrito em 1948, foi o primeiro livro de Carpentier editado no Brasil, em 1965, na tradução de João Olavo Saldanha. A editora, a Civilização Brasileira, lançou-o numa coleção intitulada "Nossa América" e voltou a publicá-lo vinte anos depois, em 1985 (118 páginas).

O Século das Luzes, escrito em 1962, seria traduzido no Brasil somente em 1976 por Stelia Leonardos e publicado pela Editorial Labor do Brasil S.A.. Ambos os livros foram prefaciados por Otto Maria Carpeaux.

O Século das Luzes é considerado uma obra-prima da literatura, e seu autor, um dos mais importantes escritores latino-americanos contemporâneos.

Revolucionário, Carpentier começou sua atuação política como nacionalista e democrata, o que o levou à prisão no período da ditadura de Gerardo Machado. Sob o regime de Batista, passou anos exilado em Caracas, conspirando contra o caudilho. Voltou a Cuba depois da vitória de Fidel Castro, tendo ocupado vários cargos nesse governo até morrer, em 1980.

Depois de sua fase nacionalista, o escritor reconhece que as idéias de libertação chegaram já elaboradas do Velho Mundo. Dedica-se então a estudar o impacto da Revolução Francesa sobre as populações escravizadas do Caribe e, como analisa Carpeaux na apresentação de O reino deste mundo, descrevendo esse impacto "em romances históricos que se passam no fim do século XVIII e começo do XIX, Carpentier escreve, ao mesmo tempo, alegorias do impacto da outra revolução, de nossos dias, sobre aquelas populações ainda não libertadas".

O reino deste mundo, embora com pequenas incursões em territórios vizinhos, ambienta-se no Haiti, e trata de uma rebelião dos negros locais que se consolida no governo de um ditador-libertador, Henri Christophe, feito rei e instalado com sua corte num palácio ao estilo de Versales, bramindo suas idéias de liberdade, igualdade e fraternidade. Não muito distante dali, a poucas milhas, Pauline Bonaparte se iniciava e se entregava a práticas de culto afro, pelas mãos de seu criado Solimán, antes de voltar viúva a Roma.

Iniciam-se a troca constante e a releitura permanente entre Europa e América são duas perspectivas, dois pontos de vista culturais, frente ao movimento revolução-restauração.

É o "Século das Luzes": a razão e o humanismo que levam os negros escravos que tenham praticado um roubo a não mais ter sua mão decepada por um facão, mas cientificamente amputada por um cirurgião. Victor Hugues é um personagem real, comerciante antilhano que, no século passado, implantou em Guadalupe as idéias libertárias de 1789 e a guilhotina.

Agora, o cenário é todo o Caribe, com incursões dos personagens em Paris, Roma e Madri. Outra vez as leituras mútuas e múltiplas das culturas, o choque permanente de sua obra em busca da construção de uma identidade própria dos povos da América.

Barroco. Sutil. Irônico. Desmistificador. Ele parece nos dizer sempre que as "luzes" jamais apartaram em nossa América Latina e que, mesmo na França, não passaram de um súbito clarão que rapidamente a ordem napoleônica soube apagar.

Sem ilusões, porém, o "idealismo" vale a pena. Sem mistificações, os homens são homens, embora divididos por sua condição de classe e sua história...

Enfim, Maria José e Carpentier são bons caminhos para a releitura dos ideais de 1789: no Brasil, no Caribe e na Europa. Uma releitura mais contemporânea do que - parafraseando Baudrillard - qualquer música real que a ópera da Bastilha possa encenar na praça onde um dia a Santa Canalha parisiense pôs por terra a velha ordem da aristocracia.

Alípio Viana Freire é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.