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Estamos vivendo um momento da história marcado por aceleradas transformações e recorrentes e profundas crises. Um processo complexo, multidimensional, que afeta os principais aspectos de nossa vida cotidiana e desafia as verdades teóricas e políticas aparentemente estabelecidas. No Brasil, até o ano 2000 seremos 179 milhões de pessoas, sendo que 143 milhões deverão viver nas grandes cidades.
Apenas para absorver os 12 milhões de jovens que estarão chegando ao mercado de trabalho, teríamos que crescer a um ritmo de pelo menos 6% ao ano. Esses desafios são colocados para um país em que há uma década o PIB por habitante praticamente não cresce e que acumulou imensas demandas sociais, produtos de um padrão de desenvolvimento que concentrou riqueza, renda e poder e excluiu as amplas massas dos frutos do crescimento econômico.
Por outro lado, assistimos a um atraso tecnológico crescente no país, enquanto o potencial de transformações, de criatividade e de novas possibilidades acumulado pelo padrão tecnológico que verificamos em nível internacional é absolutamente inimaginável. A informática, a biotecnologia e as inovações tecnológicas vão invadindo nosso dia-a-dia e ampliando nossos sonhos e desafios.
São estas inquietações que nos estimulam a tentar praticar um exercício relativamente arriscado e difícil: refletir sobre o futuro - em nosso país, com a atual instabilidade econômica e política, isso parece quase um exercício de ficção científica, uma curiosidade descabida. Mas acreditamos que discutir esse futuro que já começa é quase uma questão de sobrevivência e uma dimensão fundamental para ampliarmos nossos horizontes e redefinirmos o próprio significado de nossos projetos políticos. Há certa crise de percepção, ao mesmo tempo que emergem novos movimentos sociais, novas iniciativas, enquanto os dogmas e as receitas prontas e acabadas vão envelhecendo nos pequenos guetos políticos, que ainda tentam entender e transformar a realidade rebelde e implacável com velhos paradigmas, tão convenientes às tradições de certos setores da esquerda.
Temos uma premissa de que estamos vivendo um processo que já está modificando radicalmente o significado do trabalho, do lazer, das relações internacionais, da cultura e da política, de que nos encontramos enfim diante de novos dilemas no limiar de um novo século deste sofrido planeta.
Revolução Tecnológica
As mudanças tecnológicas em andamento são de tal magnitude e profundidade que tendem a transformar substancialmente a estrutura de produção mundial, com implicações sobre o emprego, a produtividade, a utilização dos recursos naturais e as relações internacionais, entre outras atividades.
Evidentemente, ainda que estejamos diante de um novo patamar tecnológico, esse processo não é linear no tempo e há diferenciações muito significativas no nível dos diferentes espaços da economia mundial.
As novas tecnologias podem ser agrupadas em algumas linhas básicas:
1. microeletrônica (possui enorme capacidade de transformar as características de uso e transmissão das informações, com implicações decisivas em numerosos setores de serviços e administração);
2. robótica (significa a implantação de sistemas de automação no nível do processo produtivo, com "robôs" reprogramáveis em função das diversas exigências da produção);
3. biotecnologia (torna possível ao homem modificar a estrutura e o comportamento de seres vivos bem como a forma e a natureza de sua participação nos processos de transformação produtiva);
4. novos materiais (podem modificar o perfil das demandas de produtos naturais e suas aplicações nos diversos setores da produção manufatureira);
5. novas fontes de energia (a energia fóssil, que foi a base do padrão industrial nas últimas décadas, terá de ser substituída. Há várias iniciativas em andamento, mas esta é uma das áreas mais problemáticas, especialmente pelos riscos das opções, como a energia nuclear, e pela ausência de uma alternativa compatível comas exigências atuais);
6. novos processos de produção (as novas técnicas de desenho, a aplicação da informática no processo produtivo, novas formas de controle e gestão da produção diretamente associadas a este novo padrão tecnológico estão sendo introduzidas).
Não há como negar esse processo, tampouco parece recomendável se posicionar contra o progresso tecnológico em si, mas há um grande campo de discussão sobre a quem tem servido e quais suas implicações estratégicas. A essa problemática, no caso brasileiro, se somam as dificuldades de modernização da estrutura produtiva e de participação do país nesse novo padrão tecnológico.
Blocos Hegemônicos
As inovações tecnológicas significam mudanças nas relações de poder e riqueza. A luta pela hegemonia no interior dos grandes blocos capitalistas tende a se acirrar mas com significativas mudanças de qualidade, o mesmo ocorrendo em relação às economias socialistas. Os projetos para o século XXI começam a se definir.
- 1992: a Europa unida - No mesmo ano em que a América "comemora" quinhentos anos de "descobrimento e colonização" e a América Latina vive uma grave e dramática crise, a Europa se unifica. Não haverá mais barreiras alfandegárias e tarifárias entre 12 países, que se converterão, pelo menos teoricamente, numa única economia de 320 milhões de consumidores e 120 milhões de trabalhadores.
O "Projeto 1992" está definido num estudo de 6 mil páginas, elaborado pela Comunidade Econômica Européia, e possui alguns estímulos decisivos diretamente associados às novas tecnologias:
- a possibilidade de coordenar esforços de pesquisa tecnológica e científica para enfrentar a concorrência crescente dos outros pólos, especialmente Estados Unidos e Japão;
- a especialização da produção, com aumento da capacidade produtiva, diminuição potencial de custos, via economias de escala e mudança no padrão de concorrência intercapitalista;
- ampliação do mercado, tornando-o compatível com o aumento de produtividade das novas tecnologias.
É evidente que deverão surgir inúmeros obstáculos, como as disparidades regionais e setoriais, os movimentos migratórios, entre outros. Também é evidente que os trabalhadores não são o sujeito histórico desse processo controlado por grandes grupos monopolistas e marcado pelos poderosos interesses das elites dominantes. No entanto, a Europa definiu um novo projeto histórico para o novo século, que está superando o pessimismo que reinava no velho continente e disputando seu lugar no "neoimperialismo" emergente. Um aspecto que merece destaque é que o movimento sindical, através basicamente da Conferência Européia de Sindicatos e dos mais diversos e representativos partidos de esquerda, vem procurando intervir nesse processo histórico que coloca grandes desafios e novas exigências para o conjunto dos trabalhadores europeus.
- Japão: as reformas Maekawa - Há alguns anos, uma comissão oficial comandada por um antigo chefe do Banco Central japonês, Haruo Maekawa, sugeria políticas drásticas para impulsionar a expansão da economia doméstica e redefinir a política externa, com a perspectiva de gerar um pólo mais agressivo no cenário internacional: "Chegou a hora de o Japão produzir uma transformação histórica". No plano interno, a economia japonesa tem um vigor impressionante e tende a crescer sua importância relativa no contexto mundial. O Japão, que após a Segunda Guerra Mundial possuía um PIB equivalente a 1,5% do PIB mundial, em 1982, já atingia 9%, além de uma população de robôs de 41 mil unidades, quando toda a população do planeta era de 67300. Há também um movimento de integração imperialista das regiões próximas, como Coréia, Hong Kong, Cingapura, Formosa, Malásia, Indonésia, além da própria China, que esboçam um pólo alternativo na concorrência econômica e comercial internacional, desde o Pacífico, e uma clara transição do centro de gravidade comercial do Atlântico para o Pacífico.
- As economias socialistas: glasnost e perestroika - A União Soviética, desde a morte de Lenin, passa pelas mais importantes transformações econômicas e políticas. O projeto de Gorbatchev está revelando uma grande ousadia histórica, com riscos imensos, para recuperar de forma acelerada o desenvolvimento das forças produtivas e promover uma reconversão produtiva capaz de absorver as inovações tecnológicas em outros setores, que não a indústria bélica e astronáutica. As estimativas econômicas revelam que o PIB soviético, cuja participação no PIB global em de 16,3% em 1950, caiu para 9,1% em 1982. Paralelamente, a corrida militar e nuclear tem consumido cerca de 18% do PIB, comprometendo as políticas sociais e os investimentos na modernidade. O enfrentamento da burocracia, as redefinições políticas e as iniciativas no plano da política internacional projetaram a URSS no cenário internacional, e avanços significativos estão aparecendo nas relações econômicas e comerciais com o campo capitalista. Por outro lado, há divergências profundas no interior do campo socialista sobre o significado, os limites e as implicações políticas e ideológicas das transformações em curso, sendo que a luta interna tende a se agravar diante das transformações que começam a surgir. Um processo semelhante se verifica no contexto das reformas econômicas na China e na chamada retificação cubana, ainda que com perspectivas políticas e ideológicas bastante diferenciadas.
Porém uma interrogação permanece no ar: qual deverá ser a política da URSS, que se encontra em uma posição claramente defensiva no cenário econômico e político internacional, diante de eventuais revoluções políticas no nível do Terceiro Mundo e mais precisamente em relação à América Latina?
- EUA: a ausência de um projeto articulado - Na luta pela hegemonia no interior das potências imperialistas, os EUA aparecem com um imenso poder militar e um enorme controle sobre as instituições supranacionais do sistema capitalista, mas sem uma proposta política mais estratégica para o novo período que se inicia. São inúmeros os esforços da economia americana para promover uma reconversão produtiva e assegurar o controle estratégico sobre os setores de ponta da economia mundial. O PIB dos EUA representava 38,1% do PIB mundial em 1950; em 1970, tinha caído para 32,6% e, em 1982, para 27,7%. Esse processo revela que, se o planeta continua bipolar no campo político e militar, é crescentemente multipolar no campo econômico e comercial. No interior dos EUA há uma transferência das indústrias do Norte para o Sul, um processo de integração com o Canadá e a fronteira norte do México, mas as eleições presidenciais revelam o vazio político na principal nação imperialista e um relativo isolamento político. Os elevados déficits comerciais e o crescimento prolongado do endividamento público revelam as debilidades da economia americana em campos importantes da indústria e do comércio internacional. E demonstram também que somente por meio do poder político e do controle sobre a ordem capitalista internacional é que esse processo econômico vem se sustentando ao longo dos anos. No entanto, em alguns setores econômicos estratégicos os EUA continuam dominando ou disputando a hegemonia internacional.
A instabilidade da transição
Uma primeira consideração a ser feita é que o mito do crescimento econômico sem limites está comprometido para o futuro. A água, o ar e os recursos naturais são limitados e terão de ser considerados um valor fundamental na concepção de desenvolvimento do futuro. Não é possível imaginar que a renda per capita das grandes potências continue crescendo ilimitadamente, ou que um país como a China possa vir a ter automóveis para toda a população e um padrão de consumo nos marcos das economias capitalistas centrais.
A potencialidade das novas tecnologias deverá ser mediada por decisões políticas estratégicas. Mais grave é que não só estamos longe dessa possibilidade como a transição que a economia mundial começa a viver parece extremamente complexa e instável.
Nesse processo de transição, os Estados nacionais deverão sofrer mudanças importantes. O projeto "neoliberal" conservador, que tenta amparar no plano político e ideológico as modificações em curso, deve ser analisado no contexto do deslocamento progressivo dos mercados domésticos para os macromercados e o mercado global, que tende a reforçar as agências coordenadoras supranacionais e os novos espaços de poder transnacionais. A ausência de políticas coordenadas e a crise da institucionalidade supranacional existente, que se move de forma quase reflexa dos interesses do governo dos EUA, tendem a potencializar as crises próprias de um período de grandes transformações. A perda de confiança na ONU (Organização das Nações Unidas), na OIT (Organização Internacional do Trabalho) e na UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), que nasceram para universalizar e democratizar as decisões políticas internacionais, cresce progressivamente com o imobilismo e a falta de poder desses organismos multilaterais. Há uma verdadeira disjunção entre o poder e a ordem econômica e jurídica capitalista internacional. Paralelamente, o estoque de dívidas externas, a começar pela própria economia americana e a ampla maioria dos países do Terceiro Mundo, revela os riscos e a profunda instabilidade do processo de transição descoordenado e imprevisível da economia capitalista internacional. Os fantasmas de 1929 aparecem no crash da bolsa em outubro de 1988, e apesar das profundas diferenças deverão rondar a economia mundial no próximo período, principalmente se a inércia política e a crise financeira não forem superadas em grande escala. Há grande distância entre a evolução da economia real e a chamada "economia simbólica", ou seja, a evolução dos papéis, créditos e demais formas de especulação está crescentemente desvinculada da produção real de riquezas. Os dados disponíveis revelam que o PIB mundial está em torno de US$ 13 trilhões ao ano. O comércio internacional global de bens e serviços atinge cerca de US$ 3 trilhões. Porém, o montante global de transações financeiras no mercado de Londres, que concentra todo o sistema de eurodólares, tem atingido cerca de US$ 300 bilhões por dia, ou seja, nada menos do que US$ 75 trilhões por ano. Essa disparidade entre "economia simbólica" e "economia real" é uma fonte monumental de instabilidade. Outro entre muitos exemplos é a própria variação do dólar e outras moedas desde o fim do sistema de paridade cambial fixada pelo acordo de Bretton Woods, que contribui para a instabilidade geral e revela a irracionalidade que o poder político dos EUA assumiu no contexto da economia capitalista internacional. No plano político, ocorre processo muito semelhante. Exemplos bem mais dramáticos são o martírio do Líbano, a destruição mútua entre Irã-lraque, para não falarmos da África austral, Afeganistão, América Central, enfim os inúmeros conflitos bélicos que explodem no Terceiro Mundo enquanto as grandes potências procuram vantagens estratégicas e a ONU permanece como um clube internacional de discursos.
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América Latina
Todas essas transformações se processam num quadro estrutural de desequilíbrios profundos entre Norte e Sul, de injustiças históricas e dominação política.
Os povos da América Latina vivem um dos momentos mais dramáticos de sua história recente, em que o desenvolvimento econômico se encontra num verdadeiro impasse. A renda per capita caiu 6,5% nos últimos dez anos, e não há riqueza nova a ser distribuída. Alguns países retrocederam a níveis de vinte anos atrás, e nenhum possui renda per capita superior ao patamar de 1980. Esse contexto histórico dramático, determinado de forma direta pela dívida externa, representa uma nova forma de acumulação de capital imperialista que está promovendo um violento e acelerado processo de centralização de capital e contribuindo para financiar parte da modernização tecnológica que se verifica no Norte, enquanto condena os povos da América Latina e da maioria dos países do chamado terceiro Mundo à sua condição histórica de subdesenvolvimento. A dívida não é simplesmente uma questão financeira, e suas implicações não se reduzem à transferência líquida de capital que as economias do continente são obrigadas a realizar e que chegam a atingir 5% do PIB latino-americano. A dívida impede novos investimentos na modernidade tecnológica e impõe concessões crescentes ao grande capital estrangeiro. O comércio mundial futuro será decisivamente definido pelas novas tecnologias. As vantagens comparativas de mão-de-obra barata ou matéria-prima disponível estão sendo progressivamente eliminadas pelo novo padrão tecnológico. A substituição de produtos, em especial a biotecnologia, terá grandes implicações em toda a agricultura e política de exportações.
Estamos assistindo a uma reconcentração do parque industrial nos países do Norte. Sendo que no Sul estarão concentrados 80% da população mundial até o final do século, com apenas 9% da indústria instalada em nível mundial e repartindo cerca de 25% do PIB atualmente produzido.
O futuro dos povos da América Latina é não ter futuro, mantendo os padrões atuais de inserção - não participação no novo padrão tecnológico e na nova divisão internacional da economia mundial.
Enquanto assistimos ao começo de um novo século, com novos horizontes surgindo, 15 milhões de pessoas, na maioria crianças, morrem anualmente de fome no Terceiro Mundo; outros 500 milhões de seres humanos se encontram em grave estado de subnutrição. Nada menos do que 40% da população mundial não têm acesso a serviços profissionais de saúde, e 30% carecem de água potável. A modernidade, o progresso tecnológico, o aumento de produtividade poderiam ser um elemento que contribuísse para a eliminação desse quadro, mas, ao contrário das aparências, a nova modernidade tende a promover maior concentração de poder e riqueza, especialmente pelo impacto que está promovendo no interior da classe trabalhadora, a grande interessada na construção de uma sociedade mais justa e solidária.
Neoliberalismo Conservador
No bojo dessa crise prolongada e das transformações que vêm se verificando, as forças conservadoras de direita se articulam em tomo de um projeto estratégico e de uma "nova" proposta de política econômica: o neoliberalismo. Impulsionado de forma especial pela "era Reagan" e por Thatcher na Inglaterra, com uma aparente coerência e simplicidade, e promovido com ampla e poderosa campanha ideológica, o neoliberalismo vem crescendo e, com ele, "novas" diretrizes de política econômica, baseadas nos seguintes princípios:
1. Uma política econômica de estabilização monetarista, que procura promover os ajustes econômicos exclusivamente por meio do controle da oferta monetária, sem complementação de outras políticas. Com uma base teórica monetarista, o neoliberalismo não aceita políticas de reestruturação da oferta ou mudanças no perfil da demanda. Nessas condições, promove-se a sobrevivência dos mais fortes, descarregando o peso do ajuste nos setores mais desprotegidos e desfavorecidos da população.
2. Privatização de empresas estatais, os cortes nos gastos sociais, as demissões de funcionários públicos e o debilitamento do Estado. O ajuste se faz sobre o Estado, que é tido como ineficiente, intervencionista e o grande responsável pela crise, promovendo-se, desta forma, uma acelerada e violenta transferência de rendas e patrimônio público para o capital privado.
3. O cancelamento de políticas negociadas de renda ou de contratos sociais. É evidente que essa política agrava as condições de vida de amplas parcelas da população, os conflitos sociais e as tensões políticas. A repressão policial militar, ainda que localizada em determinadas circunstâncias, é um desdobramento necessário desse tipo de concepção de ajuste econômico.
4. Nos países endividados da América Latina, esse tipo de política econômica tem repercussões particularmente graves. Em primeiro lugar, porque a privatização está associada à internacionalização de setores importantes da economia. Em segundo, porque ante o grave quadro social as implicações políticas são imprevisíveis. O neoliberalismo é inegavelmente o projeto estratégico de ajustamento das economias do continente e vem sendo impulsionado pela crise da dívida, na forma de imposição de elevados saldos comerciais e debilitamento do Estado.
O risco da hiperinflação
Temos assistido, no decorrer da última década, ao fracasso de sucessivas tentativas de implantações de políticas de estabilização "ortodoxas" e "heterodoxas" no processo de transição política conservadora de vários países do continente. A inflação continua se acelerando e o impasse econômico tem se agravado. A sucessão de tentativas fracassadas aumenta as frustrações populares e as incertezas diante do futuro.
A hiperinflação, que havia desaparecido da literatura econômica, volta a ser uma realidade presente na América Latina: Bolívia (1985) e recentemente Nicarágua, Peru e Argentina. As pré-condições básicas para um processo de hiperinflação estão dadas em vários países do continente e na economia brasileira:
- transferência líquida de capital para o exterior promovida pela dívida externa, (nas experiências européias, após a Primeira Guerra Mundial, era representada pelos impostos de reparação dos danos de guerra);
- governo fraco e desacreditado, incapaz de promover ajustes fiscais e monetários;
- perda de credibilidade no indexador oficial e busca de indexação instantânea, que pode se processar com a "dolarização" da economia;
- fragilidade ou colapso da capacidade de financiamento do setor público;
- conflitos distributivos acentuados.
A hiperinflação gera uma profunda crise de abastecimento, com consequências imprevisíveis no nível das grandes cidades e, evidentemente, repercussões preocupantes nas frágeis instituições políticas.
É de se esperar que no contexto de sucessão presidencial, no caso da Argentina e do Brasil, com o aumento das tensões e as incertezas políticas, o quadro de aceleração inflacionária se agrave. A hiperinflação já é uma possibilidade concreta para a economia brasileira, ainda que existam instrumentos de política econômica disponíveis para evitá-la. Mas é fundamental que todos tenham consciência de que o Plano Verão agravou a crise das finanças públicas, promoveu violento arrocho de salários e elevou o potencial inflacionário da conjuntura. Assistiremos ao agravamento da crise econômica nesse período que antecede as eleições e a posse do novo governo; qualquer que venha a ser o novo presidente eleito, ele deverá encontrar uma conjuntura econômica altamente instável e enorme pressão inflacionária.
Bases para uma alternativa
A história tem nos ensinado que a única lei que ela realmente respeita é de que sempre acontece o imprevisível e imponderável. Queremos superar a sinistrose, o imediatismo, e ampliar os horizontes do debate, mas temos de ser realistas: obstáculos imediatos estarão postos sobre qualquer projeto popular alternativo - e um deles é a ameaça de hiperinflação e a necessidade de uma política de estabilização.
Essa necessidade de lançar imediatamente bases de uma política alternativa de estabilização é importante para evitar o caos econômico, que só interessa a setores golpistas de direita, e necessário para fortalecer uma candidatura de esquerda como alternativa real de governo. É, portanto, um desafio central para o período eleitoral.
Para o início de um novo governo de esquerda, vemos pelo menos dois grandes riscos. O primeiro é a incompetência. Confundir medidas distributivistas, imediatistas e populistas com um projeto histórico para retomar o crescimento com distribuição de renda pode ser fatal. Seria lamentável assistirmos a um governo de esquerda ser derrubado com apoio popular, pela incompetência de sua política econômica. Outro risco é o reformismo. Procurar superar a natureza do atual impasse econômico do país com reformas superficiais impedirá qualquer esboço de transição para o futuro.
O desafio está em se articular uma política realista que enfrente o desafio da estabilização, mas que ao mesmo tempo lance as bases de um novo projeto de desenvolvimento e estimule a mobilização e organização popular, que impulsione o país para o futuro. Quais seriam os objetivos básicos e os compromissos dessa política alternativa de estabilização?
Em primeiro lugar, enfrentar de forma articulada os problemas estruturais da economia, como a dívida externa, a dívida pública, a reforma agrária e administrativa.
Em segundo, compatibilizar a estabilização com a arquitetura de um novo padrão de financiamento da economia, capaz de alavancar a retomada do crescimento com distribuição de renda. Essa política de estabilização terá de combinar o controle da oferta monetária com um conjunto de políticas que possa modificar gradualmente o perfil da demanda e reorganizar a oferta produtiva. Isso significa uma política que esteja articulada com uma política de rendas e um planejamento estratégico de reconversão da estrutura produtiva.
Em terceiro, redefinir o papel do Estado no qual a redução do déficit público e o saneamento das finanças públicas também se assentam numa concepção alternativa. A racionalização dos gastos públicos e a reforma administrativa devem aumentar a eficiência das empresas estatais e dos demais serviços públicos além de democratizar o processo de tomada de decisões. O Estado deve ser desprivatizado, eliminando os diversos mecanismos diretos e indiretos de transferência de capital para o setor privado. Finalmente, os recursos do Estado devem ser canalizados para os setores estratégicos da economia, no sentido de impulsionar o novo projeto de desenvolvimento com distribuição de renda, que evidentemente terá como eixo a ampliação da sociedade de consumo de massas.
Por último, toda essa vontade política só se viabilizará se houver negociação política e mobilização dos setores populares. Um ajuste dessa natureza, num quadro de crise econômica profunda e prolongada, tende a impor sacrifícios a todos. O caráter solidário, de proteger os setores mais desfavorecidos, e o próprio sucesso do programa dependem diretamente da correlação de forças e da adesão das amplas massas a uma nova estratégia de desenvolvimento. O ritmo e a profundidade das mudanças dependerão da força política do movimento sindical e popular para moderar reivindicações econômicas imediatas e apoiar a arbitragem das perdas sobre setores poderosos da elite dominante, com a certeza de que serão os grandes ganhadores no processo de retomada do desenvolvimento.
Ultrapassados estes obstáculos imediatos que afligem a todos e caso seja possível lançar as bases de um projeto de desenvolvimento que modernize a sociedade brasileira e abra novas perspectivas históricas para este final de século, alguns novos dilemas deverão aparecer.
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Trabalhadores: os novos dilemas
A classe trabalhadora, os partidos socialistas e o movimento sindical se encontram frente a um processo que não se reduz a um período de acumulação de forças, mas um processo que permite uma verdadeira ruptura com todo o contexto histórico e a lógica política do período anterior, que impõem uma reflexão sobre novas estratégias, política de organização e mesmo os valores fundamentais de um projeto de sociedade socialista.
As transformações impostas pela dinâmica de acumulação de capital associada às novas tecnologias, nos países de industrialização avançada, têm dificultado de forma crescente o auto-reconhecimento da classe operária, especialmente por todo o processo de fragmentação a que tem sido submetida.
A primeira dimensão desse processo está associada à perda de identidade coletiva, em função da diminuição do peso relativo do núcleo fundamental da classe operária - os trabalhadores manuais da indústria de transformação - e da amplitude de situações de assalariamento e crescimento do setor serviços e informal. A segunda se relaciona à perda de sentido, de orientação política e ideológica diante de um contexto de profundas transformações. A conflituosidade disseminada e fragmentada dificulta a articulação da unidade e as definições de parâmetros comuns. A crise dos paradigmas do passado, do papel histórico dos países "guias", também contribui para esse processo, cuja raiz fundamental é que o movimento tem estado voltado para resistir às perdas e defender conquistas do passado e não para a definição de uma política positiva em defesa de um projeto para o futuro e de políticas alternativas.
Nesse sentido, o empenho do sindicalismo e dos novos partidos de esquerda em discutir as questões relacionadas à democracia e ao socialismo e seu futuro é absolutamente decisivo. Porque não haverá um grande futuro para a esquerda se não existir um para as mudanças que estão se processando no campo do socialismo.
É evidente que em todo esse processo há profundas diferenças em relação à América Latina, marcada por um significativo atraso tecnológico, mas o quadro de fragmentação e de ausência de parâmetros definidos também está presente e já começa a exigir novas respostas.
A realidade está se libertando rapidamente da teoria e das amarras ideológicas do passado. A crise é um momento de destruição e criação, um ajuste de contas entre um passado que resiste e um futuro que ainda não nasceu.
A resposta dos trabalhadores para esses dilemas estará na sua capacidade de se constituírem e se firmarem como um novo sujeito histórico. Por "novo sujeito histórico" devemos entender os sujeitos portadores de experiências históricas novas, de novas práticas capazes de inovar, de criar e de incorporar o inédito.
Vivemos uma crise de civilização, um movimento de desagregação e transformação, um contexto aberto à criatividade, às inovações e ao alternativo num sentido amplo, de novos horizontes, em que os projetos prontos e acabados são receitas fechadas, dogmáticas e superficiais. Ampliar os horizontes significa abrir caminho para novas respostas, superar as receitas e mergulhar nas novas práticas e experiências que estão surgindo. A intersecção de novos movimentos sociais com o movimento sindical operário possibilita incorporar experiências muito ricas e assegurar uma dimensão cultural, social e histórica muito mais fértil para a construção da sociedade do futuro, que passa necessariamente pelo debate sobre as concepções de socialismo e democracia. A afetividade, o corpo, a sexualidade e a natureza também estão submetidos a políticas de opressão e repressão e têm os seus direitos. A propriedade ecológica comunal tende a emergir no futuro com a mesma intensidade que a luta pela propriedade socialista. No entanto, não se pode perder a dimensão de que milhões de seres humanos nem sequer têm a sua sobrevivência imediata assegurada; a luta pela qualidade de vida, a partir dessa perspectiva ampla e utópica, parece decisiva para um ingresso promissor do movimento sindical e da esquerda socialista no século XXI.
A travessia para um novo século pode significar a despedida do velho movimento operário, como querem muitos, mas não necessariamente de seus valores fundamentais. Os princípios de classe, a solidariedade, o internacionalismo, a autonomia operária e o socialismo seguem sendo valores decisivos para uma nova relação entre a ética, a economia e a política na construção da nova sociedade.
As crises econômicas estruturais e profundas sempre foram uma poderosa condensação de energias direcionadas para a transformação. Quando o desemprego se transforma numa experiência de milhões de seres humanos, quando especular é mais interessante que produzir, quando todo um continente como a América Latina está submetido a uma política espoliativa e criminosa, a ordem estabelecida tende a ser quebrada por novas forças sociais emergentes. No entanto, não dispor de um projeto político-econômico alternativo, sem unir as forças potencialmente dispostas a assumir a perspectiva da transformação social, contribui decisivamente para a decomposição da consciência de classe. Não parece promissor insistir numa concepção política e sindical que se limite a mobilizações corporativas e reivindicativas num cenário histórico dessa dimensão e complexidade. O sindicato não pode ser uma associação de seguro para os privilegiados entre os oprimidos. A base social dos sindicatos não pode mais se reduzir aos trabalhadores estabilizados na relação formal de assalariamento. Aglutinar todo o mosaico de situações novas que estão aparecendo para os trabalhadores no processo produtivo, a se iniciar pela massa de desempregados e subempregados, parece um desafio decisivo. Paralelamente, combater o voluntarismo, as ilusões de poder e as visões simplificadoras parece ser decisivo para que a acumulação de forças possa se transformar em salto de qualidade.
Nesse sentido, um projeto alternativo deve ter como lastro a lógica das maiorias populares, mas numa perspectiva societária, quer dizer, em que os trabalhadores façam seus os reclamos do conjunto da sociedade.
Esse é o objetivo maior destas reflexões provocativas, que tentam contribuir para o esforço de superarmos as receitas acabadas, o triunfalismo e o relativo isolamento intelectual a que estamos submetidos no interior da crise atual. Porém, o ponto mais nevrálgico desse esforço histórico está no resgate e nas discussões sobre as diferentes concepções de socialismo. A crise do socialismo, do modelo de planificação centralizado e das formas de participação popular nas decisões, o desgaste da democracia com partido único e a ausência de liberdade e autonomia sindical são o outro lado da crise do projeto burguês e capitalista da sociedade. Esse projeto de socialismo procurou ser a negação do capitalismo na sua fase monopolista. A crise atual e as transformações que estão se processando são ao mesmo tempo crise do mundo burguês e desse projeto de socialismo. A relação entre partido e Estado, a própria relação do Estado com a sociedade civil estão em xeque; a crítica e o avanço das experiências de construção do socialismo são um elemento chave na definição de um novo projeto histórico para o socialismo O futuro do movimento operário enquanto transformador de sociedade é indissociável do futuro do socialismo e temos pela frente mais um século de luta e resgate da utopia socialista.
E essa dimensão é particularmente importante para a ampla maioria dos povos do planeta, que vivem, ou sobrevivem, nos chamados países do Terceiro Mundo. O hiato no desenvolvimento econômico e social desses países não poderá se resolver nos marcos da economia capitalista internacional. O atraso histórico é irrecuperável, e as tendências que se esboçam vão no sentido de concentrar ainda mais a riqueza e o poder. Nessas condições, nossos desafios são mais difíceis e estão decisivamente vinculados à possibilidade do socialismo, a uma nova concepção de sociedade que incorpore todo o progresso tecnológico a partir dos interesses históricos das maiorias populares e a um desenvolvimento econômico alternativo que viabilize a vida em todas as suas complexas dimensões.
Comentários Finais
O ano 2000 parece tão harmônico e mágico que nos estimula a refletir sobre o futuro. Mas o tempo histórico nunca foi o tempo astronômico; e se de alguma forma parece necessário discutir as possibilidades do futuro, é absolutamente inapropriado marcar datas. Como mencionamos no início, há grandes transformações em andamento, que a sinistrose das aparências da crise não nos permite perceber e discutir. Este texto tem a intenção de provocar novas discussões, porque tudo indica que estamos iniciando anos decisivos para a definição da inserção do país e da classe trabalhadora na sociedade do futuro. E para terminar, deixaria uma afirmação de J. C. Mariátegui: "Um proletariado sem outro ideal que a redução da jornada de trabalho e o aumento nos centavos do salário não será nunca capaz de uma grande realização histórica".
Aloizio Mercadante é economista, professor universitário, membro do DR-PT/SP e assessor econômico da Campanha Lula.
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