Cultura

Uma briga entre a revista 'Veja' e o cantor Cazuza, em maio deste ano, pode ajudar a revelar a diferença nem sempre óbvia que separa uma fábrica de automóveis de uma fábrica de ideologia e a semelhança nem sempre óbvia entre um operário braçal e um operário intelectual

"... e a verdade é seu dom de iludir"
(Caetano Veloso)

Uma característica da imprensa brasileira é a sua incapacidade de se autocriticar. Uma exceção pode ser apontada no comportamento do diário Folha de S.Paulo, que, depois de interromper, ainda na década de 70, a publicação da página de Alberto Dines, "Jornal dos jornais", de memória célebre, normalmente põe-se a debater suas questões internas de procedimento jornalístico, embora venha fazendo isso quase sempre num tom que põe a autopromoção acima da autocrítica. Não existe o diálogo crítico nos (e entre os) vários veículos. Igualmente não há um espaço para a reflexão permanente no espectro editorial brasileiro sobre o assunto. O Unidade, periódico do sindicato dos jornalistas, e o órgão oficial da Federação Nacional dos Jornalistas, Jornal dos Jornalistas, cumprem com certa precariedade este papel - com certa precariedade porque representam os interesses de uma categoria profissional e, em decorrência de seu enraizamento, não têm a isenção necessária para desenvolver análises de mais fôlego. De outro lado, a revista Imprensa faz jornalismo sobre jornalismo, mas dada a sua natureza de publicação comercial, indissoluvelmente atada à teia e às contingências do mercado, procura não avançar o sinal na direção de prestigiar artigos reflexivos mais longos e profundos. E tanto o Unidade e o Jornal do Jornalista quanto a Imprensa dirigem-se a leitores que militam, direta ou indiretamente, na profissão. Com circulações restritas, e com suas páginas redacionais não destinadas ao pensamento, não cumprem a tarefa de promover a crítica da imprensa. E a imprensa brasileira prossegue intocada, mãos dadas com o mercado, divorciada do pensamento.

Poucas vezes a discussão nessa área fez-se tão importante como no mês de maio passado. Na última semana de abril, a revista Veja chegava às bancas com uma capa escandalosa: "Cazuza, uma vítima da Aids agoniza em praça pública". Em dois dias, os 808.869 exemplares do semanário se esgotavam. A reportagem de capa, com oito páginas, rigorosamente sustentada em depoimentos do roqueiro que recebera jornalistas da revista na semana anterior no seu apartamento do Rio de Janeiro, escancarava a intimidade de uma pessoa que não mais escondia sua condição de aidética. Alguma coisa, no entanto, irritou profundamente o entrevistado, sua família, seus fãs e seus amigos. "Fizeram um enterro, um enterro simbólico", ele declarou (Diário Popular, 28/04/89). Na mesma semana, em matéria paga publicada em jornais do Rio e de São Paulo, o cantor repudiou a reportagem e procurou apontar nela um deslize de objetividade: "A afirmação de que sou um agonizante deveria estar fundamentada em declarações dos médicos que me assistem". Com efeito, os médicos não foram ouvidos. Simultaneamente, circulou em vários jornais um abaixo-assinado que ostentava 510 nomes, alguns deles de intelectuais e artistas ilustres: "Porta-voz da Síndrome da Antiética Adquirida, Veja nos oferece um triste espetáculo de morbidez, vulgaridade e sensacionalismo sobre Cazuza". Os jornalistas responsáveis pela matéria também receberam todo tipo de ameaças físicas e morais. Uma emissora de rádio do Rio, a RPC FM, exortava seus ouvintes, a cada vinte minutos, a telefonarem ou escreverem para a Editora Abril protestando contra a revista. As repercussões não paravam por aí. Os ataques ao semanário mobilizaram leitores favoráveis à reportagem e, passado um mês, a redação de Veja computava um total de 6215 cartas sobre o assunto. Destas, 59% defendiam a matéria, entre elas a do deputado estadual paulista pelo PDS, Afanásio Jazadji, que, festejava, literalmente, a ida de Cazuza para o inferno: "que o inferno o receba, em breve e ardentemente" (Veja, 10/05/89). Mas a discussão crítica sobre a imprensa e seu papel, que seria essencial num episódio de tamanha turbulência, lamentavelmente não ocorreu. Tudo ficou num clima de ânimos inflamados e não houve reflexão.

Um bocado de gente escreveu a respeito, contra e a favor, mas ninguém logrou algo mais que emitir opiniões pouco fundamentadas. Um único artigo se destacou, mas não saiu da superfície, como todos. Em texto publicado na "Folha Ilustrada", caderno do diário Folha de S.Paulo, o correspondente Matinas Suzuki Jr. tratou de avisar logo de saída a razão pela qual não poderia analisar a matéria: "Não li a reportagem de Veja". Mas ainda assim identificava pontos cruciais: "A parca vida intelectual e artística no Brasil se perde muito no emocionalismo e lida pouco com a verdade. (...) Veja representa o pensamento de ampla parcela da classe média brasileira - daí o sucesso editorial da revista e a procura pela reportagem sobre Cazuza - e portanto não adianta acusar o espelho se a cara do mundo é muito feia".

O que, afinal de contas, era tão feio no espelho? Assuntos como drogas e sexo sempre foram tratados com um moralismo medido pelo semanário - os exemplos mais lembrados são a capa sobre a morte de Elis Regina em 1982, "A tragédia da cocaína", e, mais tarde, as coberturas das prisões dos roqueiros Arnaldo Antunes, dos Titãs, e de Lobão - e nem por isso artistas e intelectuais fazem abaixo-assinados e atos de protesto todos os meses. Ninguém esperaria de Veja uma matéria de exaltação ao comportamento erótico de Cazuza. Além disso, não se pode dizer que o texto da revista seja mentiroso. Criteriosamente baseado nas declarações do cantor, é, por excelência, um trabalho jornalístico. Revela ao leitor aquilo que o próprio Cazuza já vinha alardeando em shows e em pequenas entrevistas para outros órgãos de imprensa. Até mesmo a capa, com uma foto para a qual o entrevistado posou por vontade própria, estampava uma manchete que tinha fundamentos nos fatos: "Uma vítima da Aids agoniza em praça pública". Explica-se: quem tem Aids em estágio desenvolvido caminha inexoravelmente para a morte e, no caso específico de Cazuza, este processo aconteceu em público, em espetáculos musicais, em páginas de jornais e revistas. Isso foi real, jamais foi invenção de repórteres ou editores.

O que nenhum dos inconformados soube detectar foi a arquitetura da coerência moralista (eis o que há de feio no espelho) que terminava por acusar (e condenar) Cazuza por fazer de sua doença uma parte de seu show. Sem expressar esse julgamento com frases explícitas, a reportagem caminhava direcionada pela bússola dessa tese. Assim, ao tempo que devassava a vida e as opções mais íntimas de Cazuza, com letras de corpo aumentado, o texto tecia certas comparações e ligações que resultavam na desqualificação dessa mesma intimidade. Em seu "alcoolismo", Cazuza era comparado a Ernest Hemingway e William Faulkner; no uso de drogas, ao poeta William Blake; e em sua "promiscuidade sexual" a Jean Genet e Marcel Proust. Ocorre que, justo no ponto em que o compositor brasileiro afirmava encontrar forças para seguir vivendo - o seu trabalho criativo - ele era simplesmente ridicularizado. Um editor de livros que propôs ao artista a publicação de uma autobiografia procuraria, conforme insinua o texto, fazer um best-seller fácil às custas de um doente terminal, numa estratégia que a reportagem qualificou de "sensacionalista". Finalmente, no último parágrafo, o texto afirmou com todas as letras, e por duas vezes, que "Cazuza não é um gênio". Pronto: o silogismo subterrâneo está concluído. Se Cazuza fosse um artista do porte de um Hemingway ou de um Proust, capaz de deixar à humanidade uma obra definitiva, estariam como que desculpados seus excessos de "garoto-problema, homem-problema, doente-problema". Como ele "não é um gênio", todo o barulho armado em torno dele seria apenas uma comoção coletiva diante de um rapaz famoso com fantástica habilidade para montar escândalos. Um rapaz que, ao contrário de tantos outros, resolveu assumir publicamente que estava com Aids. Logo, o que ele faz é "agonizar em praça pública".

Evidentemente, embora se baseie em fatos, a chamada de capa carrega o conteúdo moralista desenvolvido na matéria. Evidentemente, depois de desmontada a coerência que condena o cantor, a capa e sua chamada são apelativas, dramatizadas, sensacionalistas. Foi essa apropriação indevida da tragédia de Cazuza para uma finalidade de interpretá-la segundo valores e concepções bastante discutíveis o que, num primeiro momento, indignou a tantas pessoas. A reação delas, no entanto, foi emotiva e muito mal articulada. "Erupções de irracionalismo, raciocínios tortos, agressões torpes", qualificou a própria revista Veja em sua edição de 10 de maio. O manifesto de artistas e intelectuais, intitulado "Brasil, mostra a tua cara", segundo a mesma edição do semanário, seria "pródigo em adjetivos e parco em raciocínio". Defensora aguerrida do "raciocínio", Veja se nega a dialogar.

Embora esteja coberta de legitimidade para repelir ataques deseducados ou selvagens, aqueles que deságuam em ameaças físicas ou ofensas de fundo racista, atitudes que, enfim, devem ser recusadas por todas as pessoas e instituições que esperam existir num ambiente de convivência civilizada, Veja não tem a serenidade suficiente para reconhecer nos que discordam de sua reportagem interlocutores dotados de inteligência e dignidade. É assim que, aproveitando-se de declarações infelizes - e isoladas - das atrizes Fernanda Montenegro e Marília Pera, a primeira duvidando dos critérios de liberdade de imprensa e a segunda sugerindo que o entrevistado pudesse aprovar o texto final antes da publicação, a revista, em sua edição de 10 de maio, monta um novo silogismo, este mais rasteiro, e conclui que as duas atrizes estão menos preparadas para o convívio democrático do que Paulo Maluf e José Sarney, uma vez que estes últimos jamais emitiram opiniões como aquelas. Maliciosamente fica omitido, no sofrível sofisma, que Maluf e Sarney foram os promotores do regime do AI-5 e que as duas atrizes estiveram sempre engajadas nas lutas democráticas.

A revista está certa em dizer que o manifesto dos artistas é confuso, mas isso não é o principal atributo do manifesto. Apesar de confuso - afirma que é "triste o povo e o tempo que precisam de heróis" e logo depois aclama Cazuza como um "herói de nosso tempo" -, o manifesto é uma expressão autêntica de inconformismo. Quantos dos manifestos populares assinados por entidades e cidadãos comuns contra a censura carecem de boa redação e nem por isso carecem de legitimidade! Quantos abaixo-assinados de trabalhadores tropeçam em dados econômicos imprecisos e ainda assim permanecem justos e necessários! O essencial no documento assinado pelos artistas e pelos intelectuais não está no terreno da lógica formal, do discurso frio, mas no terreno da sensibilidade, da subjetividade, do desejo. Está sobretudo na vontade de defender uma intimidade criativa, é isso que a revista não sabe como discutir.

Não é tão difícil entender os motivos desse desencontro. Ele se dá por desdobramentos. Para começar, a matéria em questão (e todas as outras matérias de Veja, em geral) é a reelaboração daquilo que foi apurado na realidade, ela não é produto da entrevista - mas de uma leitura e de uma interpretação desta entrevista. Encontram-se aí, já, duas filtragens: a primeira que capta as declarações, capta umas em detrimento de outras, e a segunda que interpreta o que foi captado, dando ao todo um sentido dramático de historinha. Realidade, reportagem e edição estabelecem-se enquanto planos distintos, que guardam tensões entre si: espelham-se e dissimulam-se. Os desdobramentos prosseguem na relação que o veículo Veja trava com seus leitores individuais e, ao mesmo tempo, com a massa anônima de seus leitores. É inexato dizer que Veja "representa a consciência de parcela da classe média brasileira". Seria mais correto admitir que ela constitui a consciência da classe média estabelecida e estabilizada no Brasil, o que significa enxergar que ela faz parte - e às vezes impõe-se como porta-voz - da entidade mítica a que se chama consciência nacional. Quem fala em consciência, em nacionalidade e em classe média - essa camada da sociedade que não detém o poder mas que tem acesso a certas garantias da cidadania, ou melhor, a essa gama de privilégios que beneficia a poucos entre uma imensa maioria de seres desgraçados abandonados à selvageria - está falando em ideologia. Quer dizer: a revista Veja exerce um papel de suprir ideologicamente a sociedade brasileira e, nesta função, paira acima da crítica, do questionamento, da discussão. Veículo único, sem concorrentes, confeccionado com um nível técnico à altura de publicações do Primeiro Mundo (é a quinta maior revista do planeta), Veja está para a imprensa escrita como a Globo está para a radiodifusão. E com algumas vantagens. Partes isoladas de algumas de suas edições podem gerar aqui e ali focos de descontentamento, mas o seu conjunto passa ileso. Neste sentido, a relação de Veja com os leitores é antes de tudo uma relação mítica, em que só cabem adoração e concordância, ou numa outra perspectiva, uma relação institucional, em que entram a obediência e o respeito. Por isso, no curso de tantos desdobramentos, quando alguma discordância ou desobediência se insurge contra ela, assume contornos de heresia, de irracionalismo, de desaforos individuais e coletivos. Mas o desencontro entre a ira dos que não aceitaram a matéria sobre Cazuza e a revista, que saiu em defesa de si mesma, não se resume nisso. Houve, nesse caso, um choque entre duas forças míticas: a do veículo de imprensa soberano profanando um ídolo popular praticamente canonizado. O ídolo tem na sensibilidade o seu trunfo para encantar as platéias, o veículo de imprensa fez da verdade jornalística o seu dom de iludir a massa. Essas duas idolatrias não conhecem um elo de conexão.

Vale a pena destrinchar esse processo de desdobramentos e desencontros. Desde o início: o trinômio (ou o triângulo desamoroso) realidade/reportagem/edição. Novamente o episódio de Cazuza é exemplar. Tão logo viu o texto publicado em Veja, uma repórter que esteve no apartamento do cantor ouvindo o depoimento dele pediu demissão, conforme foi noticiado em mais de um jornal. Este fato, em si, abriu uma fissura esclarecedora. Como os outros repórteres, ela não redige - sua função reduz-se a garimpar matéria-prima no mundo dos fatos. Não é ela quem escreve. Embora seja este o grande sapo que boa parte dos jornalistas não consegue engolir, ele não constitui o problema central. Matérias jornalísticas podem e devem ser rescritas em geral, objetivando a clareza e o conforto do leitor e até mesmo o equilíbrio final de uma edição. O que deve existir junto desse procedimento é um compromisso ético tanto com relação ao repórter - que, participando do acabamento do texto final, adquire familiaridade com a maneira de escrever naquela publicação e com os princípios que norteiam essa maneira de escrever como com relação às pessoas citadas que não devem ser traídas em sua boa fé de dar ao veículo seus depoimentos íntimos ou suas opiniões políticas. O respeito e o serviço ao leitor jamais ficam acima disso.

No que se refere a Veja, este método (que por vezes tem resvalado na antiética) ganhou dimensões de uma linha de montagem impessoal, uma espécie de fábrica de artefatos que consagram valores morais. Não é por acaso que todas as matérias, sem exceção, podem ser compreendidas como editoriais de muitos tamanhos e assuntos. Não é por acaso que a revista é sempre um todo assustadoramente coerente, redondo como bola de futebol. O que viabiliza tudo isso é a eficiência da linha de montagem, que se, consuma na identidade que ela vai conseguir com o leitor. Linha de montagem e leitor são anônimos. São todos - e não é ninguém. Dentro da linha de montagem, toda a redação coletivamente - e os jornalistas individualmente - está alienada do produto final. Em primeiro lugar, os repórteres, que não escrevem o que apuram. Quando isso se dá, o que é uma exceção, o repórter que escreve exerce na verdade duas funções. Isso, contudo, pouco importa, uma vez que dentro de uma redação não existem máquinas, mas seres humanos que se aprimoram profissionalmente, gente que sobe e desce na hierarquia, gente que concentra papéis diversos etc. O fundamental é que a automatização e a repartição de tarefas forjou a impessoalidade quase absoluta. O texto é gerado e depois vai de mão em mão até ser finalizado. Não é verdade, por outro lado, que o funcionário a quem cabe a hipotética palavra final detenha o controle de tudo. Essa figura, que na prática inexiste, se materializa no conjunto de alguns chefes que, por sua vez, se subdividem em subordinados imediatos e assim sucessivamente. Tudo que o último homem da hierarquia (ou das sub-hierarquias) tem nas mãos é uma realidade já por demais retrabalhada. Ele tem em sua mesa um calhamaço de laudas, folhas de telex, folhas de xerox - e tem na cabeça alguma tese. Ele, como o repórter, não passa de uma peça - ainda que mais lapidada.

Essa divisão brutal do trabalho, que introduz no intelecto a violência que experimenta o trabalhador alienado de uma fábrica de automóveis, não se dá sem traumas. Graças a esse sistema, a revista Veja pôde se tornar, aos poucos, o elemento constitutivo da consciência média brasileira, uma espécie de simulacro da homogeneidade dentro de um país composto de desigualdades e contradições. Ali, a ideologia ganha corpo, matéria e peso. Depois disso, empacotada, vai aterrissar nos lares do país. A resultante última do conjunto da redação é acreditar-se a consciência do Brasil. Em grande medida, é isso o que ela tem sido. Enquanto máquina fabril, no entanto, ela transforma os próprios profissionais que a ela se entregam em - com o perdão da imagem - bens de capital da ideologia. Esses se vêem dentro de uma contradição sem saída, entre enxergar o mundo com os próprios olhos, modelados pela lógica do sistema de confecção da revista, e enxergar o mundo com os olhos da revista, que se alimenta dos deles.

É preciso, no entanto, destacar a diferença que separa uma fábrica de automóveis desta fábrica de ideologia. Quanto aos carros, há um engenheiro, um projetista, um diretor ou um empresário que compreende e manipula o todo. Numa redação nesses moldes, essa pessoa rigorosamente inexiste. Os responsáveis últimos, os proprietários, intuem apenas que a coisa vai bem ou vai mal. Uma fábrica de ideologia está azeitada quando funciona sozinha, ou seja, quando seus sistemas internos de estímulo e repressão (que minimizam a necessidade da autocensura empresarial e que a amenizam quando ela ocorre) dão conta de pôr todos os empregados a deglutir e transformar a semana que se passa em leitura prazerosa para a tal classe média. Tanto mais ela se aperfeiçoa quanto mais denominadores comuns ela encontra com sua massa de leitores. Entram nesses denominadores comuns as neuroses, as convicções, as fantasias, os comodismos, as indignações. O leitor deve realizar-se com a leitura, que deve dizer a ele aquilo que ele não consegue dizer a si mesmo em conseqüência do estado de cristalização em que se encontra. O leitor não deve ser capaz de formular elaborações, mas sim de aceitá-las. A fábrica de ideologia, de seu lado, realiza-se pela realização alheia que é nela projetada.

A razão, em tal contexto, instaura-se como uma forma de trucagem do discurso - não como razão propriamente dita, posto que não admite reciprocidade. Pode-se dizer que é uma razão que se limita à tese, descartando antíteses e sínteses, que é um falso raciocínio, que se resume a postulados. Este falseamento sistemático jogado na relação do veículo com seus leitores, o território da ideologia, constrói o edifício do que se poderia chamar de razão autoritária. O que reflete muito bem a razão autoritária é a seção de cartas da revista, que, além de sofrer um trabalho intenso de edição (as cartas não são publicadas conforme os leitores as redigem, mas segundo os critérios que a redação adota para "resumi-las"), emerge antes como um espaço de sustentação da inserção do discurso de Veja junto à massa do que como um espaço de diálogo; é, sim, um espaço que serve de termômetro para o exercício da autoridade mas não tem os meios para modificar o vínculo essencial da autoridade. É sintomático que, recentemente, essa mesma autoridade tenha adotado o artifício de comentar, num quadro destacado, o conjunto das cartas. A revista passa a "editorializar" a própria seção de cartas, chegando a dar lições de moral (travestidas, por exemplo, de lições de ortografia) aos leitores que escrevem para a redação. Com isso, a seção de cartas faz parte do espetáculo da edição redonda e homogênea - a desigualdade, a diferença, a contradição, tudo isso deixa de aparecer até mesmo aí, espaço em que, teoricamente, a palavra estaria não mais com a redação, mas com o leitor. Eliminando a imperfeição das falas estranhas, a revista reduz o outro à imagem de si mesma. Reforça-se, a cada dia, o leitor-legitimador, aquele que escreve à revista para fazer parte do show semanal, seja qual for a opinião que emita. Reprime-se, por outro lado, o leitor-questionador, que não encontra abertura para desordenar o discurso. A razão autoritária se aprimora e se defende. A fábrica de ideologia finca raízes.

É curioso observar como a essa razão autoritária deve corresponder também um procedimento jornalístico específico para o tratamento de assuntos da arte. Como não há razão propriamente dita, como não há crítica viva e como não há sensibilidade, falar de arte só seria possível segundo um conjunto especial de pressupostos míticos, certos dogmas que incorporam razões de mercado, paradigmas de sucesso, modelos enciclopédicos de talento e genialidade (ver a esse respeito o cuidadoso trabalho de Antônio Fernando Corrêa Barone, "Falar de arte: a questão da crítica ligeira", tese de mestrado na Escola de Comunicações e Artes). A "crítica ligeira", conforme a conceituou Corrêa Barone em seu trabalho, está visivelmente presente na reportagem sobre Cazuza. A importância, e mais do que isso, a "genialidade" ou a "não genialidade" do cantor, são medidas segundo padrões estéticos essenciais ao discurso da revista, mas estranhos ao universo do rock. O que a revista cuidou de não levar em conta é que, em se tratando de rock'n roll, converter-se num ídolo com tamanho poder incendiário como Cazuza é, em si, uma proeza estética. Não se avaliam artistas de rock pela análise fria do conteúdo de sua obra apenas, mas a partir da compreensão de que vida, obra e agitação se confundem numa única performance que atravessa toda a carreira do artista. Se é que se pretende avaliar a genialidade de alguém no universo do rock, esta ótica deveria dar a tônica. Veja, no entanto, preferiu fundamentar-se numa tortuosa profecia, a de que as músicas compostas por Cazuza, ao contrário, por exemplo, das composições de Noel Rosa, desaparecerão com o tempo. "É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está ao momento presente", diz a reportagem.

Ora, é o caso de perguntar, será que os trinados de Elvis Presley perdurarão? Será que ainda perduram? Será que ele em um cantor de excepcionais dotes vocais? E será que, apesar disso tudo, ele não pode ser tratado como um gênio do rock? A "crítica ligeira", por estar escravizada à função de afirmar teses morais, desconhece, por regra, o objeto sobre o qual se volta. Oculta-o, desnatura-o, despoja-o de sua razão de ser. Cazuza, como o próprio rock’n roll, não precisa ter parte com a eternidade e nem com habilidades literárias para vir a ser, eventualmente, considerado um gênio. Mas esta discussão se desloca para outro campo, um campo onde o texto de Veja não trafega.

A situação chega a ganhar toques de sádica ironia. Cazuza cantou que queria uma "ideologia pra viver". Veja presenteou Cazuza com uma matéria que pôde ser lida por ele como um artefato ideológico pra morrer.

E possível ir mais adiante. Tanto é verdade que a razão autoritária não é razão e que a "crítica ligeira" não é crítica que, tão logo desautorizadas, ambas assumem comportamentos histéricos - irracionais, portanto. Confira-se, por exemplo, na matéria de Veja da edição de 10 de maio, aqui já mencionada, que afirma categoricamente: "Constatação óbvia: Maluf e Sarney estão mais preparados para o convívio democrático e civilizado do que boa parte do mundo artístico brasileiro". Histeria pura, principalmente quando nessa "boa parte do mundo artístico" se incluem Fernanda Montenegro, Marília Pera e os tantos outros que assinaram o manifesto contra a reportagem sobre Cazuza. Pela via inversa, é interessante notar, o "irracionalismo" dessa "boa parte do mundo artístico" - que reagiu de forma por demais emotiva, é fato - acaba se colocando do lado da razão genuína.

É inútil dedicar-se a responder à pergunta: como, então, deveria ter sido o texto da reportagem de Veja? Inútil porque é uma pergunta ingênua, que não conduz a lugar algum. A reportagem foi o que deveria ter sido, talvez um bocado deselegante, talvez não, mas foi o que tinha de ser, e isso não é nem mau e nem bom. Produto ideológico, a revista faz o que faz e ponto final. Faz, aliás, muito bem-feito. As perguntas que se devem fazer são outras, e muito mais complexas. Por que razão os intelectuais brasileiros, os artistas, os militantes e as pessoas comprometidas com a liberdade de informação e a liberdade de criação artística não conseguem articular uma reflexão aprofundada sobre este episódio e a permanência absolutista de um veículo de imprensa na sociedade? De que forma subsiste a verdade autoproclamada segundo a qual a revista "está empenhada em mostrar as coisas como elas são" e de que forma a verdade jornalística, colocada dessa maneira, pode estar a serviço de falsear a compreensão da realidade política, material e cultural? Finalmente: a vigência da livre concorrência do mercado, que determinaria a saúde e o sucesso dos órgãos de imprensa à medida que os consagrasse a partir da aceitação dela pelo consumidor, não passa de um fetiche num país onde o capitalismo não é livre, onde os grupos econômicos de concentração de capital encontram-se na base da existência de jornais e revistas viáveis, numa sociedade em que poder político, poder público e poder econômico se confundem, atuando de um mesmo lado, a despeito de eventuais divergências internas. Se não é o mercado, quais são as forças ativas e quais as necessidades passivas da sociedade que determinam a permanência e o aprofundamento do caráter monopolista e autoritário do espectro editorial, fenômeno este marcante no caso de Veja? O Advento da revista Veja, no que traz um evidente progresso técnico e jornalístico, que representa um avanço do poder de comunicação e integração na sociedade nacional, não contribuiria também para o agravamento e a manutenção do estado geral de atraso dessa mesma sociedade, no que diz respeito à sua capacidade de transformações?

Quanto à camada de intelectuais e artistas da sociedade brasileira, não há muito a que investigar. Após o início da transição conservadora que sucedeu o arbítrio do regime militar, o comportamento dessa camada tem dado sinais de uma atuação mais corporativa do que propriamente de questionamento. Ela mais se mobiliza em defesa própria enquanto corpo estabelecido, ou corpos estabelecidos, do que se põe na ofensiva para mudar a ordem das coisas. Essa tendência a uma espécie de acomodação, necessariamente transitória, deve ser superada de modo positivo - o que já começa a ocorrer localizadamente - para que se dêem as condições básicas para a reversão de um quadro de sufoco cultural generalizado e para que o acesso à informação e à emissão de informações possa efetivamente se dar. A inexistência de uma crítica de imprensa e de um espaço para essa crítica de imprensa e de um espaço para essa crítica reforça em boa medida essa acomodação, cuja consequência primeira é o esvaziamento da atividade intelectual e a migração de talentos e inteligências para as grandes empresas. Em outras palavras, a de uma reflexão agressiva contribui para a paralisia crítica e criativa.

As outras perguntas aqui sugeridas podem ser pensadas em conjunto. No contexto atual, de deslocamento da inteligência a favor, que tem como instrumental o poder dos meios de comunicação centralizados e que, assim, massacra os impulsos de rebeldia com argumentos pretensamente racionais, a verdade jornalística não é mais uma leitura moralizante dos fatos, ideológica por excelência. Acontece que a este sistema correspondem uma necessidade social, uma demanda de mercado – uma demanda precária, mas que sinaliza um apetite social pelo espetáculo proporcionado pelos mídia – e uma certa indigência cultural que carece de referências e detecta no outro poderoso, e só nele, o papel de emissor. A força ativa que se aproveita dessa demanda tem um pé na economia e um pé na ideologia: os capitalistas da imprensa expandem seus negócios e asseguram para si fatias crescentes de consumidores e anunciantes e, a um só tempo, preenchem com seus produtos ideológicos a função de interpretar o real. Mais ainda: nas mãos e nos moldes de um capitalismo monopolizante esta função de interpretar o real é progressivamente a função de fabricar o irreal e substitui-lo ao mundo dos fatos.

É ilusório esperar dos meios de comunicação de massa algo qualitativamente diverso daquilo que eles vendem assim como são infundadas e inconseqüentes as teorias que procuram fazer desses meios uma utilização progressista ou que propugnam torná-los de assalto numa operação revolucionária. A relação de um receptor anônimo com um emissor mítico jamais será crítica, mesmo que esse receptor, individualmente, tenha potencialidades críticas. Da mesma forma, o conteúdo daquilo que é veiculado pelos meios de comunicação de massa jamais será verdadeiramente racional quanto aos efeitos que gerar nos receptores. A razão demole o mito, expande o pensamento. O mito, ao contrário, modula, direciona e limita a razão, impõe uma fala de mão única, moralizante e moralizadora. O que decorre disso é a dissociação entre moral e ética: existe moralismo na razão autoritária - uma moral empobrecida que dita noções veladas e explícitas de certo e de errado, de bom e de ruim - assim como não pode existir ética nesse discurso - a ética compreendida como regras comuns e recíprocas, não unilaterais, e como vontade de viver e conviver bem. Se há poucos que ditam as normas para muitos é porque há uma moral oficial - às vezes degenerada em moralismo - e porque não há uma ética, que não pode suportar a desigualdade como pressuposto da moral.

Antiética por definição, a razão autoritária, que se estabelece sobre um formidável aparato técnico, tecnologicamente sofisticado em todos os sentidos, contribui para a perpetuação do atraso da sociedade à medida que perpetua sua própria autoridade. A realidade, porém, é contraditória e dinâmica. Vendendo ideologia, a razão autoritária não deixa de vender informação. Vendendo informação, ela não deixa de fornecer dados e elementos que, por mais que insistam, não guardam forças internas para estar ilesos a leituras críticas. Sobretudo, a imprensa e seus veículos, por mais poderosos que sejam, são impotentes para reger os movimentos reais que sacodem a sociedade (regem apenas a interpretação dos fatos). Um trabalhador grevista, por exemplo, pode ser semi-analfabeto mas tem perfeita clareza das coisas quando vê uma mentira sobre si mesmo no jornal. Porém raramente compreenderá a integralidade do que se dá. É provável que se julgue vítima de algum mau-caráter maquiavélico da chamada imprensa burguesa e reaja a isso de forma emotiva, impulsiva, sem elaborar raciocínios, dá mesmo modo que os artistas reagiram à reportagem de Veja sobre o Cazuza. O desafio reside em transformar essa contradição em ação crítica permanente papel que cabe essencialmente aos intelectuais. É um desafio monumental, posto que a questão da democracia nos meios de comunicação não se resolveu de todo nem nos países capitalistas avançados e nem nas sociedades socialistas. A razão autoritária não sabe dialogar, mas o intelectual atento e comprometido com a transformação da sociedade pode desautorizá-la, deslocá-la de seu campo artificiosamente homogêneo e, com isso, abrir espaços novos para o verdadeiro exercício da liberdade de informação e expressão, onde reinem a ética, a sensibilidade e o respeito à individualidade.

Eugênio Bucci é editor da revista Teoria & Debate.