Política

Uma reflexão consistente sobre a necessidade de se conciliar alguns valores ditos "burgueses" com a prática revolucionária

Neste período particular da vida partidária, a espontaneidade pode ser inimiga das tarefas históricas do PT

No momento em que o PT cumpre tarefas históricas fundamentais – a gestão de várias administrações municipais pelo Brasil afora e sua primeira campanha presidencial (que por sinal é a primeira na vida de milhões de brasileiros)–, é importante refletir sobre aquilo que, para além da legenda, das idéias e das principais lideranças, se constitui no próprio corpo do partido, de que dependem todo o seu êxito e também suas derrotas: o conjunto dos militantes e sua prática cotidiana. Se a força militante do PT, movida por entusiasmo e convicção, é capaz de levar Lula à presidência; se só a soma do trabalho individual de cada militante, encarando seriamente as pequenas dificuldades do cotidiano, é capaz de converter tarefas das gestões municipais num trabalho a longo prazo pela transformação mais radical da sociedade; também é verdade que um possível descaso dos petistas pelas tarefas freqüentemente chatas e inglórias do dia-a-dia pode enfraquecer a prática partidária como um todo e resultar naquilo que a ideologia costuma chamar de incompetência, ou seja: uma enorme distância entre o campo das idéias que constituem o programa do PT e sua aplicação concreta.

O artigo que se segue é uma reflexão consistente sobre a necessidade de se conciliar alguns valores ditos "burgueses" com a prática revolucionária, de modo que possibilite que cada militante esteja inteiramente integrado como ser humano naquilo que faz, e não dividido em papéis sociais incompatíveis entre si (não é nessa divisão, nessa não-integração do indivíduo, que consiste aquilo que chamamos de alienação?).

Aqui, Tarso Genro desafia os petistas a pensarem em alguns conceitos que o marxismo tradicional esqueceu ou despejou pejou na vala comum das ideologias pequeno-burguesas: a subjetividade, a responsabilidade cotidiana fora dos grandes momentos em que a militância se torna heróica, a posição de cada militante diante não só das tarefas específicas do partido mas do mundo e de cada ser humano em particular. Se a afetividade e a sensibilidade subjetiva forem encaradas como entraves à boa práxis revolucionária, a ação espontânea passa a ser regida pelo que está reprimido e se transforma naquilo que é freqüente no caso da militância das esquerdas em geral: uma fonte de confusão, de obscurecimento das idéias, uma busca de emoções compensatórias numa prática política, em que tantas vezes se faz necessário saber esperar, se conter, se frustrar. É a repressão da afetividade, e não sua integração na vida consciente, que torna a espontaneidade incompatível com a responsabilidade, porque (citando o autor do artigo), "na política, o indivíduo capaz de promover mudanças ao seu redor ou aparece por inteiro ou simplesmente sucumbe".

Maria Rita Kehl é editora-assistente de Teoria & Debate.

 

A discussão marxista sobre a vida cotidiana começa a adquirir um verdadeiro estatuto teórico-filosófico principalmente a partir de Karel Kosik e Agnes Heller, depois de incursões ingênuas de Lenin e Trotsky, que na verdade, no particular, portam-se quase como bons presbíteros jacobinos. Ordinariamente, o cotidiano, para o militante marxista, constitui-se como um espaço de "descanso", uma espécie de "repouso da História", em que a fragmentação, determinada pelo conjunto das relações sociais, aparece no indivíduo como uma fatalidade que requer uma espécie de suspensão do "espírito".

Questões muito simples - mas vitais - porque integram a própria possibilidade de projeção do indivíduo na História, como a preocupação ("pré-ocupação"), a indecisão ou a segurança, simplesmente não merecem registros de profundidade no terreno filosófico, posto que o marxismo decretara, por omissão espontânea (de forma positivista), a separação entre a vida psicológica do militante e a sua visão de mundo não espontânea, ou seja, sua filosofia e sua "práxis".

Estar "pré-ocupado" é estar com a subjetividade tomada pelo conjunto das experiências passadas, vacilante perante futuro imediato. Os atos espontâneos da vida cotidiana - e a espontaneidade é a apropriação do "instinto" adquirido em função de toda experiência - são fundamentais para que o indivíduo consiga refletir acima das necessidades ordinárias, para respondê-las de forma não espontânea. É preciso, por exemplo, saber saudar uma pessoa ou mesmo abrir uma porta, para que se seja considerado uma pessoa que mereça ser ouvida. A preocupação é o caminho através do qual o indivíduo responsabiliza-se não só pelo supérfluo e o inessencial como também pelo que é profundo e essencialmente humano.

Um dos problemas mais importantes da militância marxista é a questão da responsabilidade. Esta, como não poderia deixar de ser (à semelhança de outras categorias concretas da vida cotidiana), adquire uma dimensão verdadeiramente revolucionária quando colocada sob um prisma da negação da espontaneidade: da ótica do sujeito que está preocupado em superar a "responsabilidade" adquirida pela ditadura do senso comum e a transforma num momento de decisão e escolha entre alternativas; numa práxis não alienada que, como diria Kosik, se não muda o mundo, muda a posição de um homem diante do mundo.

A responsabilidade do senso comum é o cumprimento da incumbência. Ele decorre do desenvolvimento "natural" das relações sociais. Fazer o que é reservado pelas exigências dos fatos. O nexo que se estabelece entre o indivíduo e o ato que lhe é exigido é puramente lógico, por isto ele se constitui como simples fator de encadeamento de um processo em que este indivíduo não interferiu e que dele não recebe qualquer determinação consciente.

A responsabilidade, do ponto de vista marxista, deve ser inferida filosoficamente a partir de duas das Teses sobre Feuerbach, a saber: a questão central da filosofia tomada como conhecimento/ mudança do mundo, elegendo o marxismo, a "práxis", com seu eixo ontológico; e a compreensão de que o educador deve ser educado, do que decorre que educador e educando, na sua dialética troca de papéis, devem se reconhecer como capazes.

Sentir Responsabilidade

Os sentimentos humanos mais comuns, que vão da tendência ao movimento mais cômodo, à paixão mais exacerbada e tortuosa, são percorridos pelo sentimento de responsabilidade. Quando este sentimento é tomado a partir da "práxis" (como questão central do marxismo), a saber, que o indivíduo pode confrontar-se com a alienação e mesmo no interior do seu cotidiano globalmente alienado o indivíduo pode construir-se acima da alienação (tomada a responsabilidade com esta dimensão), ele pode optar por decidir sobre os caminhos da sua vida e pode resolver por interferir sobre os destinos da sociedade.

Do ponto de vista histórico, a responsabilidade, partindo do marxismo, adquire formas qualitativamente diversas, porque refere-se a homens em situações históricas diversas. Em períodos de clandestinidade, a responsabilidade, estoicismo e heroísmo, compõem um mesmo quadro de interferência humana. A ausência de uma opção (a omissão de um movimento meramente mecânico do indivíduo) pode determinar a tortura e a morte, sua e de outros indivíduos que dele dependem.

Nestes períodos, a responsabilidade e a tragédia combinam-se para conferir a cada decisão do indivíduo certo sabor ontológico. Joga-se, em alguns momentos, a "última definição" do indivíduo. Cada ato seu pode representar radicalmente toda a acumulação de valores que a humanidade realizou até o presente: o arriscar-se a própria vida; o doar a vida conscientemente; o enfrentamento da morte com dignidade, mesmo longe de qualquer público.

O indivíduo optou, nesses casos, pela representação de um papel social que lhe conferiu a própria trajetória do ser humano, de indivíduo meramente singular e isolado do gênero à condição de ser histórico universal integrante do gênero humano.

A superlatividade da violência reacionária sempre exalta a responsabilidade que forja, em determinadas condições concretas, tipos humanos referenciais para a humanidade daí para diante. Não é preciso ser marxista para constituir-se como esta referência. Basta lembrar Espártaco, Jan Huss, Chauthenoc e Giordano Bruno. Os referenciais modernos do período histórico da revolução socialista podem ser relacionados às centenas: Julius Fucik, Nazim Hikmet, Salvador Allende, Gramsci e tantos outros.

A questão da responsabilidade, em períodos de legalidade da luta socialista, em que o brilho não pode ser alcançado somente pela raiva e a referência de humanidade não se sustenta na coragem pessoal e no desprezo pela vida, mas realiza-se pela participação da totalidade do ser individual na luta de classes, nestes períodos, a questão da responsabilidade é infinitas vezes mais complexa, porque menos heróica e certamente menos propícia a ser constitutiva de referenciais humanos representativos daquele trânsito do singular ao universal.

Mas a questão da responsabilidade, embora com menos "chances" de prestígio histórico nestes períodos de legalidade, tem a mesma importância das épocas heróicas, rondadas pelo trágico e pelo estóico.

A tendência, nesses períodos, ao "amolecimento" da responsabilidade da militância marxista não é gratuita. Ela integra um quadro em que foi desintegrada a possibilidade imediata de que a ausência de responsabilidade seja algo incorrigível: ninguém vai morrer, ninguém será torturado pela inépcia. A integração da militância marxista no conjunto do movimento histórico espontâneo da sociedade burguesa reduz sensivelmente a distância entre o indivíduo submergido na espontaneidade fragmentária e o indivíduo que recusa a espontaneidade e o senso comum (embora não possa recusar a viver em estreito contato com ela).

Nos períodos de florescimento da democracia burguesa, os papéis sociais ordinários, ou seja, a posição espontânea de cada um diante do mundo, adquirem necessariamente determinado valor histórico. Este valor, se não for compreendido como valor político, pode levar o indivíduo, ao mais completo isolamento e à própria ineficácia da sua ação político-social. Um péssimo médico, um péssimo professor, um péssimo advogado, um péssimo técnico serão desconstituídos no seu papel social espontâneo e necessário e não arrancarão credibilidade para opor-se à espontaneidade e ao próprio sistema irracional da vida burguesa, com outra escala de valores que seja instrumento de rejeição da própria cotidianeidade alienada.

A responsabilidade, então, como valor próprio da militância marxista, aqui, funde-se com a responsabilidade decorrente de papéis sociais espontâneos no interior da sociedade capitalista, porque na política o indivíduo capaz de promover mudanças a seu redor ou aparece por inteiro, ou simplesmente sucumbe. Aqui, é evidente, existem milhares de gradações, interações complexas, entre o papel social espontâneo e a "práxis" transformadora, mas a conexão entre a espontaneidade da "vida normal" e a ação socialista - numa democracia burguesa - é absolutamente inevitável, como fato político relevante.

É tristemente comum a incompreensão que a militância marxista tem deste problema. A questão da responsabilidade é tomada de um ponto de vista metafísico, a saber, como se pudesse ser separada em dois departamentos que não se comunicam e que contêm duas tabuletas: aquela do escritório das "responsabilidades militantes" e aquela que designa o escritório das "irresponsabilidade", decorrentes de determinado papel social espontâneo. Só que a metafísica dessa cisão expressa-se como inteira sociabilidade de uma forma imprevista: o irresponsável é ordinariamente um ser uno, que expressa ausência de opções, movimentos e decisões, tanto no seu papel social espontâneo como na sua militância política.

O irresponsável no trabalho, no diligenciamento de suas tarefas comuns, no serviço, na produção, é quase sempre um irresponsável político. O irresponsável junto ao movimento sindical (que é a oficialização da fragmentação da classe e logo a negação da responsabilidade da classe) é o mesmo irresponsável perante a política socialista, capaz de recompor a unidade da classe num nível superior.

Dessa postura irresponsável, como generalidade existencial, decorre um estilo de vida que se configura como um aniquilamento do ser social individual, cujo procedimento mais comum é transferir para outrem, em qualquer nível, a responsabilidade que não cumpriu. É evidente que as raízes filosóficas, culturais - psicológicas dessas atitudes não têm vínculos de exatidão com cada sujeito individual. Cada um tem a sua gênese psicológica, a sua história pessoal e familiar. Mas alguns elementos são passíveis de serem articulados: a) do ponto de vista filosófico, o marxismo não dispõe ainda de uma teoria da vida cotidiana, e a sua visão, por exemplo, da vida familiar e da questão da ética do indivíduo perante a espontaneidade social ou traduz-se como um férreo dogma stalinista ou apresenta-se como um momento particular da experiência do pequeno-burguês fragmentado, através de uma dialética puramente negativa, logo idealista; b) do ponto de vista cultural, o marxismo e o movimento socialista genérico não geraram uma cultura nova e não se apropriaram (conservando e superando) da cultura burguesa, reduzindo-se ou a negá-la mecanicamente (como no stalinismo) ou a apropriar-se dos seus valores de forma acrítica (como procedeu a II Internacional); c) do ponto de vista do desenvolvimento de uma teoria psicológica, apta a desvendar as angústias e os dramas íntimos singulares do militante individual à parte e em parte William Reich, o marxismo não constituiu qualquer teoria satisfatória que permitisse que o militante, além de se apropriar do mundo, também se apropriasse de si.

Competência

É hora de que nos perguntemos por que, hoje, boa parte da militância é irresponsável e por que ela é, ao mesmo tempo, dinâmica, alegre e decidida, no seu relacionamento espontâneo individual, através do qual ela nega todo o mercantilismo ideológico da burguesia. E por que a própria explosão de sexualidade sadia torna-se, comumente, menos busca consciente de prazer e mais canalização irracional da angústia e da solidão? Este fato não diz respeito somente à militância dos indivíduos oriundos das camadas da pequena burguesia, pois a militância proletária, ainda que tenha causas mais concretas para a sua irresponsabilidade (como o massacre cotidiano da produção), também não foge à regra.

A responsabilidade ordinária das épocas da clandestinidade e da conspiratividade transforma-se na ordinária irresponsabilidade do período da democracia burguesa clássica, em que a "tarefa" se assume como "pena" naquele sentido de que o trabalho alienado é sempre penoso e desgastante - e passa a ser considerada com a mesma escala de valores de uma tarefa da produção capitalista. Talvez pela incompreensão da magnitude da disputa, que hoje também passa pela questão da competência perante a complexidade, do Estado e porque, também, a militância socialista (absorvida pelo fetichismo burguês passa a ser mais consumida como mais um papel social, enseja uma espontânea equiparação empírica: a tarefa da militância passa a ser axiologicamente idêntica a qualquer tarefa do processo produtivo, e como esta não merece "qualquer consideração" ou esforço criativo para um "militante consciente", a militância passa a ser - que ironia espontaneamente descartada como constitutiva de uma nova "práxis".

A questão fundamental é que nos períodos de legalidade da luta socialista na democracia burguesa, a separação entre o papel social espontâneo e a sua opção racional pela "práxis" marxista tende a desaparecer. E esta tendência, quando é combatida de maneira formal e idealista - sem compreender que o papel social espontâneo também é um apelo político - resulta no fracasso do indivíduo perante as suas duas ligações com o mundo; aquela, "profissional", oriunda da espontaneidade das relações sociais e aquela, militante, através da qual ele pretende constituir o caminho provável da sua desalienação.

O resultado ordinário desta separação da espontaneidade e da consciência individual só pode redundar num ser que é a caricatura do mau "profissional" burguês, ao mesmo tempo um militante que não deu certo. A força centrípeta do papel social decorrente da espontaneidade da vida social (o "mau" empregado, o "mau" profissional) suga e desqualifica a superioridade necessária da responsabilidade marxista; ou seja, o irresponsável totaliza uma mecânica de negação das relações burguesas dentro da lógica da própria burguesia: a lógica que traduz uma negação puramente formal do mundo burguês. O "mau profissional" é freqüentemente despedido do emprego e o militante relapso é impiedosamente despedido da História.

Tarso Genro é vice-prefeito de Porto Alegre