Política

"Agora, o socialismo não passa de uma sequência natural da democracia", afirma o professor Paul Singer neste artigo - texto de sua aula magna na Faculdade de Economia e Administração da USP no dia 3 de março deste ano, publicado com exclusividade por Teoria e Debate. Aqui ele reflete sobre a forma como o Planejamento no governo pode intervir a favor dessa "sequência natural" e enfatiza que o papel do governo não é o mais importante. O socialismo deve decorrer, sobretudo, da vontade da sociedade

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"A resposta radical às genuínas deficiências do sistema político moderno é transformar a sociedade numa democracia amplamente participativa. O objetivo não é simplesmente dar poder à gente comum, mas envolvê-la em decisões cruciais, de modo que possam aprender e se desenvolver mediante seus êxitos e seus erros."

Geoff Hodgson, The democratic economy.

O movimento operário moderno nasceu nos países que se industrializavam na Europa lutando pelo direito à organização sindical, à barganha coletiva de salários e pelo sufrágio universal. Estes objetivos consubstanciavam a democracia política, que no entanto era subordinada a um fim maior: o socialismo. A democracia era encarada como um meio para a conquista do poder estatal pela classe trabalhadora. Supunha-se que o poder de Estado pudesse ser usado para, mediante a socialização dos meios de produção, abolir o sistema de classes, substituindo-o por uma ordem igualitária. Mas a conquista do meio não levou ao fim visado. Onde quer que o movimento operário tenha sido vitorioso na luta pela democracia, a sua passagem pelo poder não assinalou o fim do capitalismo, mas sua transformação paulatina e descontínua no sentido da transferência de poderes a representantes eleitos da população como um todo ou de segmentos da classe trabalhadora. Assim tem sido na Europa Ocidental, desde o fim do século passado, e assim tende a ser no Brasil no fim do atual.

De meio, a democracia se transformou em fim aparentemente, substituindo o socialismo como meta final. Para alguns basta a instauração da democracia política, constituída pelas liberdades civis, pelo governo representativo, pelo sistema multipartidário e pelo sufrágio universal. Para outros, no entanto, a democracia não pode ficar restrita ao campo político institucional, devendo ser energeticamente estendida à vida social e econômica. O que significa introduzir regras democráticas de exercício do poder nas instituições da sociedade civil, desde a escola, a Igreja, a família, até a empresa. A versão mais radical desta visão acabou, deste modo, reencontrando o velho ideal socialista, mas por uma via inesperada. A sociedade sem classes seria produzida não mediante uma série de atos expropriatórios, decretados pelo poder estatal, mas como fruto de uma série de lutas pela extensão da democracia à vida cotidiana da população.

A democracia continua sendo a estrada real para o socialismo, mas sem que (como se pensava antes) a consecução deste último implique a anulação ou "superação" do andaime democrático. Agora, o socialismo não passa de seqüência natural da democracia, vivida como norma social em áreas cada vez mais amplas da vida nacional. Há aqui, com a concepção anterior, uma ruptura profunda, que por ser ainda relativamente recente, não encontrou (ao que sei) adequada expressão teórica. E aqui não é o lugar para tentá-la. Basta assinalar que na concepção anterior (que ainda subsiste aqui e acolá) a luta pela democracia se completa quando ela se institucionaliza por meio de alguma carta constitucional; a partir deste ponto, inicia-se nova etapa, a da luta pelo poder, que poderá eventualmente culminar, dependendo das resistências encontradas, na "superação" da democracia, lograda na etapa anterior. A nova concepção rejeita tais etapas e encara o combate pela democracia como um processo que não se esgota no plano político, devendo se estender a todos os domínios da vida social. Está claro que a institucionalização política da democracia representa sempre uma conquista de grande significado, que abre novas possibilidades à luta pela sua extensão a outros âmbitos. Mas, nesta luta, o papel fundamental não é dos governos, mesmo quando em mãos de partidários da democracia total, mas das mulheres e dos homens comuns em seus lugares de trabalho e de moradia (e de estudo e de prática artística e esportiva etc.). A luta decisiva sempre é pela transformação da vida cotidiana, pela crescente satisfação das necessidades materiais e pela crescente participação direta ou indireta de todos na tomada de decisões que afetam significativamente a vida de cada um.

O papel dos governos

Salientei antes deliberadamente que o "papel fundamental não é dos governos" porque o exercício do poder governamental, mesmo no capitalismo democrático, continua sendo essencialmente autoritário. O fato dos ocupantes deste poder serem escolhidos por métodos democráticos e se confrontarem com as limitações decorrentes dos direitos políticos da oposição e dos cidadãos comuns não retira o caráter autoritário da ação governamental enquanto tal. Esta ação consiste, em sua essência, na defesa duma ordem pública desafiada permanentemente por dois tipos de adversário: as camadas desprivilegiadas politicamente organizadas, que procuram, mediante ações coletivas, alterar a distribuição da riqueza ou da renda; e indivíduos ou agrupamentos que tiram proveito de atividades ilegais, moralmente condenáveis ou não. Considera-se óbvio que o governo deve defender a ordem pública, utilizando sempre que necessário seu monopólio da violência ostensiva, mesmo porque sua autoridade - e portanto a continuidade de sua existência - depende daquela ordem.

É simplesmente impossível atribuir ao mesmo organismo a defesa da ordem pública e a sua transformação. O governo, mesmo que almeje a democratização das instituições civis, não pode intervir nelas sem violar sua autonomia, tornando ilegítimas, inautênticas e, afinal, inoperantes as reformas que viesse a impor. Assim, o Estado poderia por exemplo instaurar por lei um regime democrático e participativo na universidade. Mas se este regime não for resultado da luta de alunos, professores e funcionários, se as categorias que compõem a comunidade universitária não quiserem se dar o trabalho de participar nas decisões que afetam a vida coletiva, a democracia universitária será uma forma sem conteúdo, possivelmente acobertando a dominação de minorias. A democratização das instituições civis pressupõe ampla mobilização das coletividades diretamente interessadas, a qual não pode ser promovida pelo Estado, mas apenas reconhecida e institucionalizada pelo mesmo.

Isso não quer dizer, porém, que os governos não tenham qualquer função na luta pela democratização da sociedade. Esta passa inevitavelmente também pela mudança do próprio aparelho de Estado e de suas relações com os diversos segmentos sociais. Trata-se em essência de reduzir o considerável arbítrio do Executivo e/ou da burocracia na condução da máquina governamental, mediante a intervenção sistemática de cidadãos organizados em movimentos (o que os alemães chamam de "Bürgerinitiative" - iniciativa de cidadãos) ou de representantes de segmentos sociais, integrando foros de negociação ou conselhos deliberativos. Os Estados democráticos capitalistas continuam basicamente estruturados do mesmo modo que seus antecessores liberais, como se sua atividade primordial continuasse sendo a defesa da ordem pública (o que não deixa de ser verdadeiro, até certo ponto, como já vimos).

Mas, hoje, o Estado administra um vasto setor público da economia, que provê de serviços básicos os cidadãos e de infra-estrutura (energia, transporte, comunicação, saneamento) as atividades privadas. Em essência, o Executivo administra a economia social sob sua responsabilidade com métodos semelhantes aos que emprega para comandar forças armadas e polícia, em defesa da ordem pública. Tais agências devem ser hierarquizadas e disciplinadas para obedecer a um comando único, e os mesmos princípios são aplicados à administração pública como um todo. A lógica estatal é autoritária, concentrados de todo poder de decisão na cúspide.

No sistema presidencialista, que nos rege, apenas o chefe do governo (federal, estadual ou municipal) é eleito, recebendo um mandato explícito para mandar. Toda vasta hierarquia de escalões descendentes - do primeiro ao enésimo – retira sua autoridade duma delegação direta ou indireta do mandatário. Supõe-se que o interesse dos contribuintes e beneficiários da ação governamental esteja representado sobretudo no Parlamento, que teria poder para legislar, portanto, para determinar a orientação da atividade governamental, à qual o Executivo não poderia deixar de se subordinar. Esta suposição está longe de se realizar na prática das democracias políticas hodiernas. Faltam ao Parlamento agilidade e conhecimentos para poder exercer o papel que as constituições lhe atribuem. Sendo basicamente um foro geral de negociações e disputas, o Parlamento não pode negar às suas minorias o direito de se manifestar e de prolongar os procedimentos decisórios. A democracia, inclusive a parlamentar, exige tempo (como veremos mais adiante). Por isso, a vigência das decisões mais importantes praticamente força o Legislativo a delegá-las ao Executivo, cuja "agilidade" decorre precisamente de sua estrutura autoritária, da ausência de qualquer oposição ao detentor da autoridade suprema.

A democratização da vida cotidiana passa pela mudança do aparelho de Estado em dois sentidos: na abertura de processos decisórios, sob responsabilidade do Executivo, à participação direta ou indireta dos interessados; e na participação dos trabalhadores do setor público na gestão das empresas ou entidades a que pertencem. (Em muitas instâncias, a democratização requer a formação de comissões tripartites, que reúnem representantes do governo, dos trabalhadores e dos usuários. Trata-se assim de confrontar e reconciliar os pleitos de trabalhadores e usuários no contexto da ação global do governo.) Esta mudança não deve, porém, acarretar a fragmentação do Estado enquanto centro condutor da economia social, o que significa que a participação de interesses setoriais ou corporativos em diferentes níveis decisórios tem que ser enquadrada numa ação global necessariamente articulada e consistente. O planejamento é essencial para que este enquadramento possa se dar. Em vez de procurar demonstrar essa proposição abstratamente, prefiro discuti-la à luz de minha experiência como secretário de Planejamento do governo municipal de São Paulo.

Transformação do aparelho de Estado

Numa sociedade urbana extremamente desigual quanto aos padrões de vida e atravessando prolongada crise socioeconômica, como a paulistana, a ação governamental é o tempo todo solicitada por demandas difíceis de atender e que podem facilmente se transformar em ameaças à ordem pública. São "marreteiros" ocupando o centro da cidade, são famílias ocupando prédios semi-acabados, são greves em diversos serviços públicos, são grupos de moradores bloqueando vias de intensa circulação para protestar contra enchentes ou contra acidentes de tráfego. Isso sem contar as demandas menos agressivas de pessoas ou firmas querendo receber, querendo isenção de algo, querendo informações, providências, vagas em creches, escolas, hospitais ou no serviço público etc.

Face a tantas demandas, quem exerce o poder governamental dificilmente resiste à tentação de impor sua autoridade, decidindo a cada momento, por critérios subjetivos e individuais, quem será atendido e quem será reprimido. Conhecido alcaide gostava de reprimir primeiro para eventualmente atender depois. Certos políticos podem ter prazer orgástico em exercer o poder, assim, como apanágio pessoal. E não há dúvida de que o autoritarismo é não só aplaudido mas exigido por muitos. A sua recusa por quem está no governo é identificada por estes como indecisão, falta de firmeza, quando não como covardia.

Na realidade, para o governante a recusa do autoritarismo exige muito caráter, pois contraria as expectativas dos demandantes. Para democratizar o processo de decisão governamental é necessário submetê-lo a um sistema de consultas e negociações. As consultas destinam-se a conhecer todos os interessados em cada demanda e a intensidade de seus anseios ou de suas necessidades. As negociações são necessárias sempre que demandas são mutuamente incompatíveis, o atendimento de uma impedindo o de outra. (O que é o caso quando o atendimento das demandas requer fundos públicos, que são limitados. A incompatibilidade se exprime no fato de que um cruzado usado para atender a demanda, por exemplo, de limpeza de galerias pluviais é um cruzado a menos para consertar prédios de escolas ou melhorar os vencimentos da Guarda Civil etc.) Neste sentido, é comum a oposição entre interesses setoriais ou corporativos e interesses gerais e muitas vezes mais difusos. Não dá, por exemplo, para atender a quem ocupa terras de mananciais de água e garantir a preservação dos mesmos. Tampouco dá para atender aos numerosos ambulantes, que se aglomeram em dadas vias, e os pedestres que precisam se deslocar por elas. E não dá para atender aos inúmeros pedidos para colocar "lombadas" nas vias de grande circulação e manter o fluxo do tráfego na cidade como um todo.

A democratização do processo de decisão governamental é difícil de realizar, mesmo quando os ocupantes do poder estão comprometidos com ela, porque consultas e negociações são demoradas e as demandas, quase sempre urgentes. Grande parte delas é apresentada como "ultimatos", exigindo resposta rápida sob pena de graves ameaças à ordem pública. A única maneira de resolver a contradição entre a urgência das demandas e a inevitável demora na tomada democrática das decisões é o planejamento. Como todos sabem, planejar significa essencialmente antecipar decisões, permitindo que estas sejam estudadas, debatidas, confrontadas com alternativas e compatibilizadas entre si. A antecipação, implícita no planejamento, permite compará-lo a um jogo de simulação. O planejamento visa sempre o futuro, o qual é visualizado mediante projeções. Desenham-se diferentes cenários, cada um correspondendo a uma das opções consideradas. Deste modo, o "mandatário" ou seu delegado pode escolher o cenário mais desejável, conferindo à decisão maior racionalidade e um lastro mais amplo de conhecimentos.

Estas são virtudes "técnicas" do planejamento, que o tornam desejável sempre que um grande número de decisões interdependentes tem que ser tomado. Mas o planejamento também apresenta virtudes "políticas", do ponto de vista da democratização do aparelho de Estado. Ao antecipar decisões, o planejamento permite que delas participem os diferentes setores organizados da sociedade, basicamente porque dá tempo para que os interesses antagônicos sejam ouvidos e para que haja consultas (formais e informais) ao conjunto dos interessados, de modo a averiguar para que lado pende a maioria. Se os ocupantes do poder desejam de fato que haja participação popular, eles têm que submeter a ela questões emergentes ou que só serão resolvidas num certo intervalo, suficiente para que o processo participatório possa se desenrolar até o fim.

Além do fator "tempo", o planejamento apresenta ainda outra particularidade, que o torna indispensável como estratégia de mudança. É que planos governamentais não se baseiam em apenas uma decisão, mas numa série encadeada de decisões. Se estas fossem tomadas uma a uma, sob a pressão dos interesses contraditórios, que se digladiam, haveria grande probabilidade de que algumas destas decisões fossem mutuamente inconsistentes. Os governantes, no natural desejo de agradar a interesses contrariados, tendem a adotar decisões opostas e incompatíveis com as decisões tomadas anteriormente. O planejamento é um poderoso fator para prevenir tais contradições, porque explícita os resultados prováveis das decisões propostas, tendo em vista precisamente verificar se são ,compatíveis entre si.

É interessante notar que esta função do planejamento - de garantir a consistência interna da ação governamental - confere considerável autoridade ao planejador, que passa a representar face a cada interesse setorial ou corporativo o interesse geral. Nos regimes do "socialismo realmente existente", o planejamento central, por esse motivo, reforça de modo considerável a autocracia reinante, pois como o planejamento aí abarca quase toda a economia, a liberdade de escolha individual é reduzida ao mínimo para não ameaçar a harmonia interna do plano. O caráter globalizante do planejamento não tem que ser traduzido, no entanto, em práticas autocráticas, desde que a compatibilização dos planos parciais seja realizada não por uma equipe tecnocrática mas por representantes dos diversos segmentos da sociedade, entre os quais deve se formar uma maioria, cujos interesses teriam legitimamente de prevalecer.

Isso significa que o planejamento não pode se limitar a ouvir os segmentos da sociedade em sua fase inicial, para colher as demandas e o seu grau relativo de urgência e de importância. Como é natural, quase sempre os recursos disponíveis não são suficientes para satisfazer a todas as demandas apresentadas. Uma vez verificado e mensurado o "déficit" de meios, é preciso selecionar as demandas que serão atendidas e em que grau o serão. Se nessa etapa crucial do planejamento não houver participação dos representantes da sociedade civil, a ação governamental continuará autoritária embora menos arbitrária do que antes. Mas a renúncia à arbitrariedade, por parte do mandatário, servirá, nesse caso, de fachada para o reforço do autoritarismo, que ganhará legitimidade como intérprete do bem comum visado pelo plano.

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Tomemos como ilustração a necessidade de compatibilizar as reivindicações dos servidores públicos com as demandas dos usuários dos serviços prestados pelo setor público. As exigências de uns e de outros acabam, como é inevitável, conflitando com a limitada disponibilidade de recursos por parte do Tesouro. De acordo com a rotina autoritária usual, os interesses dos servidores acabam pesando bastante, sobretudo dos níveis hierárquicos superiores, basicamente porque os que tomam as decisões finais pertencem a este extrato (o que não impede que os ordenados no setor público caiam, em épocas de grande inflação, como reflexo da perda de poder de compra das receitas públicas). Se contrapuséssemos à rotina autoritária um procedimento formalmente democrático, poder-se-ia concluir que, nesta eventualidade, sendo os usuários dos serviços públicos muito mais numerosos do que os trabalhadores que os prestam, os interesses dos primeiros acabariam por prevalecer. Mas esta conclusão seria precipitada, porque num processo democrático de disputa e negociação não estão representadas pessoas físicas mas "atores", ou seja, agrupamentos encarnando determinados papéis: movimento por moradia, por creches, por transporte, sindicatos de servidores etc. Como cada pessoa encarna mais de um papel, o total de atores individuais representados por movimentos e sindicatos pode ultrapassar de longe o total de cidadãos.

Lembremo-nos, por exemplo, de que os funcionários públicos são também usuários dos serviços públicos e como tais seus interesses se somam a todos os outros que dependem de tais serviços. Em São Paulo, é a população pobre a que mais depende de serviços prestados pela municipalidade: transporte de ônibus, creches, escolas e postos de saúde, obras contra enchentes etc. Cada habitante da periferia da capital pode participar de diversos movimentos reivindicatórios, que disputam entre si as verbas do erário público. Este fato torna o planejamento, como estratégia de mudança, um processo de aprendizado de novas relações de poder envolvendo os chamados setores organizados da sociedade e suas lideranças, as autoridades municipais, os vereadores, além da burocracia encarregada de programar e orientar a ação governamental. Trata-se de aprender a interagir não mais como peticionários, governantes e intermediários mas como administradores da escassez, obrigados a se responsabilizar por decisões que deixam partes das demandas e necessidades insatisfeitas.

A representação dos interesses

Em tese, todos os interesses da sociedade estariam representados na Câmara Municipal pelos vereadores eleitos mediante sufrágio universal. Mas essa representação sofre pelo menos duas limitações: 1)a maioria dos vereadores sabe de forma muito vaga e imprecisa as opiniões e preferências de quem os elegeu; 2)quase todos os vereadores se "especializam" na representação de um pequeno número de interesses locais ou setoriais, ficando indiferentes a todos os outros assuntos. Como o eleitorado também não consegue acompanhar a alocação de recursos, que se dá no bojo da elaboração orçamentária, a participação do Legislativo nesta deve ser marginal e frequentemente "fisiológica", isto é, pequenos interesses acabam por ser contemplados mediante a barganha de votos, do tipo "eu voto pelas verbas para as tuas creches e você vota pelas verbas para minhas passarelas". O orçamento como ordenação das grandes prioridades da ação governamental deve ser determinado pela tecnocracia, em conluio, não poucas vezes, com grupos de interesses capitalistas.

A democratização do aparelho de Estado requer um processo de elaboração orçamentária em que participem os setores organizados da sociedade, não mais exclusivamente como litigantes, porém como co-gestores do dispêndio público. Se os representantes daqueles setores se comportarem apenas como litigantes, cada um preocupado exclusivamente em conquistar o máximo para os seus representados, não enquanto pessoas mas enquanto atores (portadores de demandas parciais), é óbvio que se criará uma situação de "guerra de todos contra todos", para cuja solução será preciso um árbitro externo - evidentemente a cúpula do governo, assessorada pela tecnocracia. Para que isso não se dê, é preciso que os representantes dos setores organizados, ao interagir com autoridades governamentais, tecnocratas, vereadores etc., resgatem dos muitos atores o cidadão com múltiplas demandas e necessidades, cada uma das quais tendo apenas um peso relativo. Não se trata duma operação mental mas duma mudança sociopolítica, que deveria se dar nos próprios movimentos sociais, à medida que eles são alçados da condição de grupos de pressão sobre quem possui poder a participantes neste poder. Uma coisa é, por exemplo, o movimento pró-moradia, preocupado exclusivamente em resolver o problema dos que não têm onde morar, mediante pressão sobre um governo que monopoliza as decisões sobre a alocação de seus gastos. Outra coisa é o mesmo movimento se fazendo representar num foro de negociações que efetivamente influi naquela alocação. Neste foro, os seus representantes não deveriam esquecer que os membros do movimento, além de moradia, precisam também de ônibus, escola para os filhos etc.

Naturalmente, mudanças tão drásticas não ocorrem de um momento para o outro e não decorrem apenas de inovações institucionais. Há resistências provenientes de hábitos antigos de grupos sociais marginalizados, com longa experiência de promessas não cumpridas e de conquistas logradas à mobilização por objetivos parciais. O paroquialismo de muitos movimentos populares e o corporativismo de muitos sindicatos não são gratuitos; eles correspondem a comportamentos reiteradamente reforçados por pequenos êxitos face a governos autoritários, mas sensíveis a pressões. Por isso, a mudança de comportamento, requerida pela democratização do planejamento governamental, implica um processo de aprendizado. É preciso que os representantes dos setores organizados aprendam a natureza dos poderes que lhes são oferecidos, para que possam exercê-los em conjunto. É preciso que aprendam que as novas formas participativas de alocação de gastos públicos não aumentam o total destes gastos, de modo que eles não podem esperar que cada um dos interesses parciais, representados por eles, alcance maior atendimento apenas por efeito da alteração das competências.

Mas é claro que no primeiro momento é isso que eles esperam. Se a democratização do aparelho de Estado não serve para aumentar a satisfação das necessidades materiais, então para aumentar a satisfação das necessidades materiais, então para que ela serve? Embora algum aumento possa ser logrado, no primeiro momento é inevitável que ele seja modesto, muito aquém das expectativas da população pobre. Mesmo porque governos que priorizam a participação popular são eleitos, em geral, quando há crise e as finanças públicas apresentam pesados déficits. Nessas condições, a população trabalhadora tem que aprender que a vitória nas urnas, mesmo que não traga benefícios materiais imediatos, realiza uma das principais potencialidades da democracia: a de tornar a classe social majoritária a classe dominante, no nível das políticas públicas. E um aprendizado a ser realizado em teoria e na prática. Em teoria, a população trabalhadora deve perceber que a mudança no governo não é nem pode ser uma intensificação do paternalismo dirigido a ela; em vez disso, essa mudança, dentro dos limites institucionais vigentes, deve ser a primeira duma série que crie novas instituições, nas quais os representantes dela poderão efetivamente decidir, desde que consigam traduzir em prioridades concretas seu projeto para a sociedade como um todo. Na prática, os setores já organizados da sociedade serão levados a escolher representantes e a tomar conhecimento das questões que os afetam do ângulo da sociedade inteira, para definir aquelas prioridades.

Por tudo isso, o planejamento pode desempenhar, durante a implantação das formas participativas de decisão, um papel de instrumento pedagógico. A elaboração dum plano digamos anual de ação governamental não passa dum ensaio das decisões que deverão ser tomadas no ano seguinte. Nessa antecipação, as contingências concretas do ano seguinte, em que as decisões efetivamente serão adotadas, não são conhecidas; o planejamento tem que pressupô-las a partir de projeções e de hipóteses sobre o futuro. Se tais pressupostos fossem inteiramente acertados, o plano poderia ser cumprido por meio da aplicação das medidas nele preconizadas. Na realidade, no período de implementação do plano, as contingências sempre diferem algo do que se supôs que elas fossem, o que impõe uma ação de governo que, embora norteada pelo plano, dele inevitavelmente se desvia.

Seja como for, o ensaio prévio representado pelo planejamento obriga os seus autores a se defrontarem com os principais dilemas que têm de ser resolvidos pelos governantes. Estes decorrem do que chamamos anteriormente de "administração da escassez", ou seja, da necessidade de escolher que demandas e necessidades terão que permanecer não atendidas e não satisfeitas. Nessa etapa crucial do planejamento, a urgência e a importância de cada demanda terão de ser comparadas entre si, para que a alocação do gasto público corresponda o mais possível aos reais anseios da classe majoritária. E não só dela, pois o chamado "setor privado" continua sendo a classe dominante, no nível da atividade econômica, e seus anseios, mesmo não favorecidos politicamente pelo governo, não podem deixar de ser considerados pelo planejamento. Os representantes desta classe terão que ser chamados a participar dos foros de decisão, de modo que os antagonismos de classe encontrem espaço neles para se manifestar.

Mesmo que o governo esteja disposto a adotar as prioridades da classe trabalhadora, ele não pode ignorar as da classe capitalista. O planejamento, como ensaio geral da ação governamental, pode se tornar um palco de lutas sobre o futuro, o que apresenta pelo menos duas vantagens, do ponto de vista da democratização do aparelho de Estado: 1)dá ao governo, durante a implementação do plano, uma visão melhor dos interesses que está favorecendo e dos que está ferindo a cada decisão crucial que tomar; 2)permite negociar soluções conciliatórias, ainda na fase de planejamento, sempre que tais soluções forem preferíveis, do ponto de vista da maioria da sociedade.

Será preciso também articular a participação popular no planejamento e na elaboração do orçamento com o exame e a aprovação dos mesmos pelo Legislativo. Essa articulação é necessária para conciliar a democratização do aparelho de Estado com a divisão de poderes, consagrada pela democracia política. O ideal é que planejamento e "orçamentação" sejam conduzidos desde o início conjuntamente pelo Executivo e pelo Legislativo. É de se esperar que assim o papel do Legislativo - não o formal mas o real - mude qualitativamente. À medida que os parlamentares tomarem parte, lado a lado com membros do Executivo e representantes de setores organizados da sociedade, do que denominamos de "administração da escassez", o fisiologismo da pequena troca de favores deve ser substituído pelo embate entre os interesses dos grande agrupamentos, o que permitiria a maioria no Legislativo consagrar os desejos manifestos do que ela entendesse como sendo a maioria da sociedade. Todos nós assistimos a algo semelhante durante os trabalhos da última Assembléia Constituinte, quando os grandes interesses organizados tiveram espaço e motivação para se manifestar, eliminando o fisiologismo dos procedimentos de elaboração da nova Carta.

Penso ter mostrado que os governos podem desempenhar certo papel na mudança almejada - em direção a uma sociedade mais livre e mais igualitária - e que o planejamento da própria ação governamental pode ser uma estratégia indispensável para a transformação do relacionamento da administração do setor público e do aparelho de Estado com as classes sociais. A questão gira ao redor do "nó duro" do processo de planejamento, ou seja, do modo de decidir a alocação dos recursos públicos. A solução da mesma depende, para começar, da vontade política de quem detém o poder, é claro, mas também da mudança de postura - que poderia equivaler a uma "revolução cultural" - dos setores sociais chamados a tomar parte no exercício do poder. Essa última mudança é do tipo cumulativo: sua continuidade depende de reforços constituídos por êxitos, do ponto de vista das camadas sociais detentoras dos novos direitos. O planejamento, além de ser um instrumento pedagógico, também tem de "dar certo", no sentido de dar eficácia à ação de governo. De modo que o planejamento como estratégia de mudança exige sensibilidade política e proficiência técnica em doses igualmente elevadas. Para que a vontade de mudar na cúpula do Estado e a vontade de mudar na base da sociedade possam se somar e produzir a prodigiosa energia revolucionária que transformações verdadeiramente históricas exigem.

Paul Singer é secretário de Planejamento do município de São Paulo.

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