Internacional

Um dos mais importantes trotskistas da atualidade visita a URSS da perestroika, conhece a neta de Trotsky, participa de uma manifestação pela reabilitação do "profeta banido" e conclui: "o fio da história está sendo reatado"

Como professor universitário, especializado no estudo de Trotsky, das oposições no interior da União Soviética e das seções da Internacional Comunista, acabo de viver uma experiência inesquecível.

Os meus leitores mais antigos precisariam ser lembrados, e os mais jovens conseguiriam imaginar em que condições trabalhava um professor que havia escolhido tal campo de "pesquisa"?

Não havia meios de se chegar às fontes e nem mesmo ao país em questão, a URSS. Os estudos que não exibissem o carimbo oficial tendiam a ser classificados como marginais, devido à desconfiança dos meus próprios colegas. Havia dificuldades para a obtenção de recursos, e esse tipo de estudo nem sempre gozava de credibilidade. Temia-se que jovens pesquisadores pudessem ser levados para a aventura ou para o impasse. Essas foram as condições materiais e morais de um longo e paciente trabalho, de difícil e cara dedicação.

No entanto, tudo mudou de repente no último outono, aqui na França.

Eu me preparava para o lançamento do meu último livro, Trotsky, que me havia absorvido durante anos; graças a essa biografia, publicada pela Fayard, que recebera ampla cobertura da imprensa antes mesmo de sua publicação, eu me tornara o "biógrafo" de Trotsky. Foi então que encontrei um velho companheiro de sindicato, socialista e membro da Associação França-URSS. Era a noite de estréia de um filme sobre Trotsky, do qual eu havia participado como consultor histórico. Ele me perguntou se eu estaria disposto a viajar para a URSS, caso o visto me fosse concedido. Ele tomou todas as providências e me garantiu, alguns dias depois, que tudo estava certo.

Falei claro com ele: como historiador interessava-me ter acesso às fontes originais e principalmente aos arquivos até então fora de alcance dos pesquisadores. Queria também me encontrar com pessoas próximas de Trotsky, com filhos de amigos dele, inclusive com membros de sua própria família, como sua neta, irmã mais velha de meu amigo Sieva Volkov1, que hoje vive no México. Sieva lembrava-se dela, de quem nem sequer sabia mais o primeiro nome. Por acaso ele descobriu que ela morava em Moscou... uma cidade muito grande. Sieva não tinha a menor informação a seu respeito.

Consegui o visto e viajei para a URSS no dia 13 de novembro de 1988, com um grupo da Associação França-URSS.

Tudo começou rapidamente. Chegamos ao Hotel Cosmos em Moscou. Era noite. Na manhã seguinte fiz alguns passeios em grupo e à noite fui jantar com amigos na casa de Bernard Guetta, correspondente do Le Monde, amigo de meu filho, cujo pai é um velho companheiro meu. Bernard atendeu o telefone e, sorrindo, disse que a ligação era para mim. Confesso minha surpresa. Quem, em Moscou, poderia saber que eu estava jantando na casa de Bernard àquela hora? Descobri então que as notícias circulam rápida e clandestinamente. Uma voz de mulher, num francês perfeito, perguntou-me se eu era o professor Broué e convidou-me para participar no dia seguinte - uma terça-feira, 15 de novembro - de uma reunião pública, organizada pelo grupo Memorial, no Instituto da Aviação (MAI), na sala do Palácio da Cultura, ocasião em que seria reivindicada a reabilitação de Trotsky. De manhã cheguei ao local marcado com quase uma hora de antecedência, acompanhado de cinco amigos. A sala estava cheia. Os quatrocentos lugares tinham sido vendidos de uma só vez, quinze dias antes, sem cartazes ou anúncios na imprensa. A divulgação se deu boca a boca. E os responsáveis pelo evento informaram que milhares de pessoas procuraram por ingressos. Muitos desses "excluídos da reunião" se consolaram com as fotos e com enormes painéis expostos no hall de entrada do instituto. Painéis que recompunham a vida de Trotsky: imagens familiares para um homem como eu, mas surpreendentes para um soviético.

Das fotos do exílio, as de Natalia Ivanovna2 e Leon Sedov3suscitavam maior curiosidade. As pessoas se amontoavam procurando ler as legendas das fotos. Precisávamos entrar. Sem demora passei pela segurança, agitando meu livro de capa vermelha com a foto de Trotsky. Logo atrás minha companheira Isabelle explicava quem éramos aos curiosos. Creio que fomos convincentes, pois nos instalamos na primeira fila, bem debaixo da tribuna, frente a frente com os jovens que organizavam pacificamente a reunião.

Na tribuna havia seis pessoas: um professor de filosofia, orador inflamado, chamado Djarasov; um historiador da guerra civil, Iuri Heller; Bulgakov, um jovem historiador que - fato raro - havia estudado Trotsky; V. Lyssenko, um jovem professor, que presidia a reunião com uma tranquilidade excepcional; uma senhora idosa, Nadejda Joffé4; e Igor Piatnitsky, filho de um velho bolchevique5 que havia sido tesoureiro da Internacional Comunista.

Nadejda Joffé atraiu imediatamente minha atenção. Eu ignorava que a filha de A. A. Joffé6, amigo de Trotsky, que havia se suicidado, tivesse sobrevivido. Ela poderia dar um depoimento precioso em função da longa amizade mantida entre seu pai e Trotsky. No primeiro intervalo da reunião, tive a oportunidade de me aproximar dela e lhe perguntar se conhecia a neta de Trotsky, irmã de Sieva, filha de Zinaida7. Afável e sorridente, a velhinha de 82 anos surpreendeu-se com a pergunta, pois o homem com quem ela acabara de falar era o marido da mulher que eu procurava: Aleksandra8, "Sacha". Nadejda deu-me prontamente seu endereço e telefone.

Minha viagem já estava ganha: havia encontrado a neta de Trotsky e a filha de Joffé, seu amigo. O fio da história estava sendo reatado.

Sob esse ponto de vista, a reunião me traria muito mais.

Primeiro, o público. Este não se comparava a nada que eu já tivesse visto. As duas primeiras filas estavam ocupadas por mulheres, as mais novas com cerca de sessenta anos, e ficaríamos sabendo, logo em seguida, que se tratava de ex-"filhas de inimigos do povo". Elas eram descendentes de velhos bolcheviques. Haviam sido detidas no final da década de 30 e/ou em 1949, e todas tinham passado anos na prisão, submetidas a trabalhos forçados, por serem filhas dos companheiros de Lenin. Lominadzé9, Antonov-Ovseenko10, Vujovic11, Krestinsky12, Lomov13, Smilga14; não consegui me lembrar de todos os nomes pronunciados, mas sabia que eles evocavam a velha-guarda bolchevique liquidada por Stalin.

Arco-íris de gerações

Além dessas "velhas figuras", cujas intervenções ardorosas iriam demonstrar que eram "jovens", a sala reunia mulheres e homens de todas as idades, vestidos com simplicidade como a maioria dos soviéticos. Havia um arco-íris de gerações, com muitos velhos e muitos jovens, dos que viveram os tempos de Lenin aos mais moços, para quem Stalin representava um personagem de outra era.

Da tribuna abriu-se o debate sobre a reabilitação de Trotsky. Polemizavam contra as insinuações da imprensa de Gorbatchev, segundo a qual Stalin e Trotsky eram "dois ursos", ambos nocivos, que haviam travado uma luta puramente pessoal, sem raízes ou fundamentos sociais, considerações que, sabemos, são também veiculadas no Ocidente. Aparentemente ninguém acreditava nas monstruosas calúnias levantadas no período stalinista.

Bulgakov fez uma breve apresentação de Trotsky, citando fatos e datas revelados em toda a sua nudez e simplicidade, verdades elementares que procuraram ocultar sempre.

Iuri Heller ateve-se aos comentários sobre a crueldade de Trotsky durante a guerra civil que circulam hoje na imprensa.

Djarasov e I. Piatnitsky polemizaram contra aqueles que deformaram o pensamento de Trotsky, dedicando-se a restabelecê-lo em seu contexto e integridade.

Nadejda evocou o amigo de seu pai e pai de seu velho companheiro, Sedov.

As reações na sala foram as mais diversas. Um dos presentes, talvez por ingenuidade ou má-fé, perguntou se era verdade que Stalin tinha dado a Trotsky um vagão de ouro antes de ele deixar a URSS. Ouvimos apelações e acusações anti-semitas contra o "judeu Trotsky" ou o "carrasco Trotsky", perseguidor dos "verdadeiros russos", provavelmente vindas de membros da Associação Pamiat, portadora de uma ideologia reacionária - na verdade, um instrumento de provocação nas mãos dos piores elementos da polícia política.

Os "filhos dos inimigos do povo" fizeram intervenções documentadas, convincentes e, por vezes, emocionantes. Galina Antonov-Ovseenko lembrou que a análise do trotskismo consistia na pesquisa sobre a própria história da Revolução de Outubro. Tatiana Smilga falou com muita emoção de seu pai, Ivar Smilga, executado sem julgamento, de Muralov15 e do próprio Trotsky. Piatnitsky defendeu a honra de Zinoviev16 e Kamenev17 contra as acusações lançadas durante os processos de Moscou, mas relembrou o quanto eles tinham causado de dano por sua aliança com Stalin no começo dos anos 20.

Boris Kagarlitsky demonstrou que Bukharin18 não era a encarnação da única alternativa para o stalinismo.

A crítica também estava presente. Piatnitsky se perguntou sobre as razões que levaram Trotsky a não dar continuidade ao projeto acertado com Lenin.

Houve também comentários sobre a personalidade de Trotsky, o peso que a repressão exerceu sobre ele durante a desumana guerra civil, da qual nunca mais quis falar.

Várias questões foram levantadas, do passado e do presente. Muitos queriam saber por que as obras de Trotsky não eram publicadas ou republicadas na URSS e se as suas críticas ao regime não seriam, na verdade, o motivo da interdição. Outros pediam informações sobre a IV Internacional, à qual Trotsky havia dedicado diversos anos de sua vida.

A questão da "reabilitação" preocupava a todos. Alguém salientou que ela teria contra si, além dos "conservadores", a maioria esmagadora dos historiadores que estariam desacreditados para sempre.

As vezes a discussão se concentrava em assuntos mais amenos. De repente, um dos presentes se ofereceu para emprestar Minha vida e A revolução traída, para quem quisesse lê-los, e distribuiu seu número de telefone para contato.

Uma questão, no entanto, era recorrente: como obter os documentos, as fontes, os arquivos, as provas. A verdade histórica precisa de fundamentos científicos e o público soviético reclama por eles.

Depois de um longo duelo na sala com os anti-semitas da Associação Pamiat, que tentavam monopolizar a reunião, o presidente da sessão se desculpou por não ter podido responder às questões documentais e me deu a palavra para que eu falasse a respeito. Foi assim que fui levado a dar um verdadeiro curso sobre os arquivos de Trotsky, as fontes no Ocidente, em Amsterdam e, evidentemente, Harvard. Terminei oferecendo a Nadejda Joffé o livro nascido do trabalho nestes arquivos e destinado a combater "os assassinos da memória". Fomos aclamados quando ela o ergueu, garantindo que em seus 82 anos de vida nenhum presente lhe tinha trazido tanta alegria. Imaginem a emoção de um historiador de Trotsky ao ser aplaudido em Moscou apresentando Trotsky em 1988.

Mas é evidente que essa reunião nos trouxe outras lições. Na minha volta à França quiseram saber se os participantes eram "trotskistas". Isso não me parece relevante. É claro que os presentes neste dia, aqueles que não puderam entrar e, sem dúvida, milhões que não souberam de nada, lutam para reconquistar seu passado. A resistência a Trotsky é inquietante, não só para reconquistar o passado mas para posicioná-lo no presente e no futuro.

A seriedade com que querem fundar suas novas noções, o apetite por documentos de homens e mulheres que estão bem distantes da profissão de historiador dão prova da solidez das suas aspirações à verdade.

A segunda observação que faço é a de que Trotsky não constitui um caso particular: todos os que buscam a verdade - e a reivindicaram em 15 de novembro - têm consciência de que defender Trotsky é defender não só a Revolução de Outubro mas a história da URSS. A composição dos "filhos dos inimigos do povo" presentes a esta reunião demonstrava claramente a união em torno de Trotsky dos descendentes daqueles que tinham sido seus adversários antes de, por sua vez, acabar como vítimas de Stalin.

A reunião terminou com a votação de uma resolução que reivindicava o abandono de todas as acusações lançadas contra Trotsky durante os processos de Moscou, a restituição de sua nacionalidade soviética, da qual fora destituído por Stalin, sua reintegração no partido, a republicação de seus livros já editados na URSS e a publicação de suas obras escritas no exílio.

É significativo que esta reunião tenha ocorrido e, no meu caso particular, que o "historiador de Trotsky", que se apresentava aos jornalistas, tenha encontrado a oportunidade de falar livremente. Também não é menos significativo que minhas palavras sobre a reunião à imprensa soviética, como no artigo escrito para As Notícias de Moscou, tenham sido suprimidas por uma censura que não me consultou nem me informou: é possível organizar esse tipo de reunião em Moscou, mas a emancipação do silêncio está organizada em torno dela.

Eu tinha, graças a Nadejda Joffé, o endereço da irmã de Sieva, Aleksandra Zakharuna. Isabelle e eu a visitamos em sua casa: essa mulher de 63 anos que está muito doente e não pode se levantar. Só fazia três meses que tinha se decidido a revelar a seus amigos que ela era a neta de Trotsky. Apesar dos riscos envolvidos nessa decisão ela acreditava que este era o único meio possível de reencontrar seu irmão.

Profundamente transtornada, emocionada demais até para chorar, Aleksandra nos recebeu com uma foto dela junto a seu irmão, apertada nas mãos.

Sacha nos falou pouco sobre si mesma. Ela me perguntou muitas coisas e eu fiquei contente por ter, como historiador, a oportunidade de conversar com ela. Foi bom poder tranqüilizar esta mulher que, há mais de meio século, estivera convencida de que a mãe havia escolhido seu irmão para sair com ela da URSS. A escolha, na verdade, fora feita por Stalin. Ela ignorava também em que condições sua mãe, Zinaida Volkova, se suicidara em janeiro de 1933 durante uma crise de depressão.

Confesso que nossa conversa foi particularmente dolorosa. Havia qualquer coisa de monstruoso em ter de informar a uma mulher mais velha que eu das condições em que sua mãe havia se matado há mais de meio século. Imaginava que numa sociedade humana só cachorros não fossem informados das condições em que morriam suas mães, e eu vivenciava, de certo modo, o interior do stalinismo e sua desumanidade. E não pude me conter ao observar o rosto de Aleksandra, marcado pela doença e pela angústia, que acompanhou uma criança inocente durante toda a vida pelo fato de ser neta do organizador da insurreição de outubro.

Velho historiador

O resto de meu tempo em Moscou não foi desperdiçado. Falei com Nadejda Joffé longamente: ela é uma mina de recordações sobre os homens e os fatos. Falei com historiadores mais lúcidos, discuti as condições em que eles se encontram, privados dos arquivos que agora estão sendo abertos a conta-gotas para alguns poucos privilegiados, não necessariamente historiadores, que não forneceram ainda inventários dos dois mananciais indispensáveis para retomar hoje a história da URSS: o Fundo KGB e o Fundo Stalin. I. N. Afanassiev me inspirou admiração, um sentimento de clareza tanto dos problemas técnicos quanto políticos. Tive ainda oportunidade de entrar em contato com estudantes e vários jornalistas. Foi também com satisfação que participei de um debate com V. F. Pissiguine, organizador nacional dos clubes Bukharin e apóstolo das "cooperativas" de novo estilo, aqueles do "lucro" e da "eficácia".

Mesmo com tudo isso, sei que estou longe de elaborar uma simples lista dos problemas que se colocam hoje na URSS e no leste europeu. Uma viagem posterior à Iugoslávia me permitiu entrever a virulência da questão nacional, tanto na Sérvia quanto entre os albaneses de Kossovo ou entre os eslovenos. Falei de Trotsky em Budapeste para uma sala repleta de ouvintes, e mais ou menos ao mesmo tempo, Otto de Habsburgo pregava a apologia de Franco pela imprensa.

Ouvi ministros fazendo publicidade das empresas que pretendem ceder aos capitalistas alemães ou americanos assim como assisti a militantes anunciando que os sindicatos independentes estão se organizando para impedir esta negociação. Encontrei também jovens da associação de estudantes de História da Universidade Eötvös Lorand de Budapeste: eles me lembraram de que o combate pela história é, antes de mais nada, um combate político.

Sou um velho historiador, mas recebi uma lição da qual jamais esquecerei.

Pierre Broué é doutor em história, professor emérito da Universidade de Ciências Socias de Grenoble, Instituto de Pesquisas Políticas. É militante do movimento operário desde os 40 anos. Foi o primeiro pesquisador a "entrar" nos arquivos de Trotsky em Harvard, em 1980. Escreveu entre outros livros, O Partido Bolchevique. Sua última obra, lançada no final do ano passado, em Paris, é a biografia Trotsky, já traduzida para o inglês, o espanhol e o italiano. Broué escreveu este artigo especialmente para Teoria & Debate.

(Tradução: Helena Reis do Amaral)

Notas Explicativas por João Machado, membro do Diretório Nacional do PT e do Conselho de Redação de Teoria & Debate.