Tenho duas opções neste debate. A primeira é contar o trabalho que estamos desenvolvendo na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Outra é tratar de maneira mais genérica o tema que me foi proposto: "Cultura, Socialismo e Democracia". Escolhi a segunda via, colocando-me à disposição de vocês para responder questões específicas sobre a administração da cultura num governo de esquerda.
Se formos às origens da palavra cultura, veremos que ela significa o cultivo, o cuidado. Inicialmente, era o cultivo e o cuidado com a terra, donde agricultura, com as crianças, donde puericultura, e com os deuses e o sagrado, donde culto. A idéia é a de uma ação que conduz à plena realização das potencialidades de alguma coisa ou de alguém; é fazer brotar, frutificar, florescer e cobrir de benefícios. Essa é a concepção original de cultura: fazer desenvolver alguma coisa. No correr da história do ocidente, esse sentido vai-se perdendo até que, no século XVIII, a palavra cultura ressurge, mas como sinônimo de um outro conceito, torna-se sinônimo de civilização. Sabemos que civilização deriva-se de idéia de vida civil, portanto, de vida política e de regime político. Durante o século XVIII, a cultura é o padrão ou o critério que mede o grau de civilização de uma sociedade. Assim, a cultura passa a ser encarada como um conjunto de práticas (artes, ciências, técnicas, filosofia, os ofícios) que permite avaliar e hierarquizar o valor dos regimes políticos, segundo um critério de evolução. No conceito de cultura introduz-se a idéia de tempo, mas de um tempo muito preciso, isto é contínuo, linear e evolutivo, de tal modo que, pouco a pouco, cultura torna-se sinônimo de progresso. Avalia-se o progresso de uma civilização pela sua cultura e avalia-se a cultura pelo progresso que traz a uma civilização. Esse conceito iluminista de cultura, e por isso mesmo tão profundamente político e ideológico, reaparece no século XIX, quando se constitui um ramo das ciências humanas, que é a antropologia, o estudo do homem. No início da constituição da antropologia, os antropólogos guardarão o conceito vindo do século XVIII colocado pelos iluministas, ou seja, o de evolução. Por tomarem a noção de progresso como medida de cultura, os antropólogos precisarão de um padrão para medir a evolução ou o grau de progresso de uma cultura, e esse padrão será, evidentemente, o da Europa capitalista. As sociedades passam a ser avaliadas segundo a presença ou a ausência de alguns elementos que são próprios do ocidente capitalista e a ausência é considerada sinal de falta de cultura ou de uma cultura pouco evoluída. Que elementos são esses? O Estado, o mercado e a escrita. Todas as sociedades que desenvolvam formas de troca, comunicação e poder diferentes do mercado, da escrita e do Estado ocidentais são definidas como de cultura "primitiva".
A noção do primitivo só pode ser elaborada se for determinada pela figura do não-primitivo, portanto da figura daquele que realizou a evolução. E isso implica algo ainda mais complicado, porque não é só o fato de que nós passamos a emitir, queiramos ou não, um juízo de valor, falando em culturas primitivas e culturas plenas, porém mais do que isso, passamos a tomar aqueles critérios como definidores da essência necessária da cultura, de tal modo que consideramos que aquelas sociedades que "ainda" estão sem mercado, sem escrita e sem Estado chegarão necessariamente a esse estágio, um dia. A cultura européia capitalista se coloca como Telos, como o fim necessário do desenvolvimento de toda cultura ou de toda civilização. Podemos imaginar a quantidade de preconceitos e de ideologias montadas a partir dessa visão eurocêntrica da cultura em que o ocidente capitalista se apresente como modelo e finalidade universais.
Será apenas na segunda metade do século XX que os antropólogos europeus, seja por terem uma formação marxista, seja por terem um profundo sentimento de culpa, irão desmontar essa visão finalizada e evolutiva da cultura, inaugurando a antropologia social e a antropologia política, considerando cada cultura uma individualidade própria, dotada de uma estrutura específica. A partir de então, o termo cultura passa a ter uma abrangência que não possuía antes. Mesmo no caso do século XVIII, quando a cultura passara a designar a totalidade da vida civil (da civilização) e envolvia artes, técnicas, ofícios, filosofia, ciências e regimes políticos, ainda assim o conceito não era suficientemente abrangente porque implicava que uma parte da sociedade fazia cultura e a outra não. A partir da segunda metade do século XX, com a antropologia, expande-se o conceito de cultura. Passa a ser entendida como produção e criação da linguagem, da religião, dos instrumentos de trabalho, das formas de lazer, da música, da dança, dos sistemas de relações sociais, particularmente os sistemas de parentesco e as relações de poder. A partir de então, a cultura passa a ser compreendida como o campo no qual a sociedade inteira participa elaborando seus símbolos e seus signos, suas práticas e seus valores, definindo para si própria o possível e o impossível, a linha do tempo (passado, presente e futuro), as distinções no interior do espaço, os valores como o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o justo e o injusto, a noção de lei, e, portanto, do permitido e do proibido, a relação com o visível e o invisível, com o sagrado e com o profano; tudo isso passa a constituir a cultura no seu todo. Ocorre, entretanto, que essa abrangência da noção de cultura esbarra, nas sociedades modernas, num problema muito concreto que é o fato de serem as sociedades modernas, justamente, sociedades e não comunidades.
A marca de uma comunidade é a indivisão interna, o sentimento de uma unidade de destino, ou de um destino comum, a definição de um bem comum e a encarnação em determinadas figuras do espírito da comunidade. Ora, é isso que no mundo moderno desaparece. Ele desconhece a comunidade. O que o mundo moderno introduz é a sociedade. A primeira marca da sociedade é a percepção do isolamento; a atomização de seus membros, atomização que força o pensamento moderno a ter que explicar a origem do próprio social e conduz à invenção da idéia de pacto social, dos indivíduos isolados terem feito um contrato para viver juntos. A segunda grande marca da sociedade, aquilo que faz uma sociedade ser sociedade, é a sua divisão interna. Se a comunidade se percebe regida pelo princípio da indivisão, a sociedade se concebe pelo princípio da divisão interna. E uma divisão que não é um acidente. Não é uma divisão produzida pela maldade de alguns e que nós possamos corrigir; é a divisão originária, aquilo que faz com que exista sociedade. Essa compreensão do social se exprime pela primeira vez com Maquiavel, quando escreve: "toda cidade é dividida pelo desejo dos grandes de oprimir e comandar e o do povo de não ser oprimido nem comandado". A marca da sociedade é a existência da divisão social, isto é, da divisão de classes.
Como, então, mantermos um conceito tão generoso e tão abrangente de cultura, como o proposto pela antropologia, diante de uma sociedade dividida em classes? É a partir da sociedade de classes que se passa a elaborar a idéia de divisão cultural no interior da sociedade. Essa divisão recebe nomes diversificados: pode-se falar em cultura dominada e cultura dominante, em cultura opressora e cultura oprimida, como se pode falar em cultura de elite e cultura popular. Seja qual for o termo que se estiver empregando, a idéia é de que há um crivo no interior da cultura entre aquilo que se convencionou chamar a cultura formal, que é a cultura letrada, e a cultura propriamente popular, que é aquela que corre nos veios da sociedade enquanto povo. Ora, cultura popular também não é um conceito tranqüilo. Basta lembrarmos os três tratamentos principais que ela recebeu. O primeiro, o romântico, diz que a cultura popular é a cultura do povo bom, verdadeiro e justo, que exprime a alma da nação e o espírito do povo; o segundo, o tratamento iluminista que considera a cultura popular o resíduo de tradição, folclore, superstição e ignorância que tem que ser corrigido pela educação do povo; e o terceiro, o populista, que mistura a visão romântica e a iluminista; da visão romântica mantém a idéia de que a cultura que o povo faz, só porque foi o povo que fez, é boa e verdadeira, e da visão iluminista mantém a idéia de que essa cultura, por ser feita pelo povo, está atrasada com relação ao seu tempo e precisa de um processo pedagógico para se atualizar. E cada uma dessas concepções da cultura popular configura opções políticas bastante determinadas.
Assim como a simples valorização da cultura popular não significa que todos estamos no mesmo barco, a simples desvalorização da cultura popular também não significa que todos estamos nele. A questão que se coloca não é mais a de perguntar pela cultura dominante e pela cultura popular. Sabemos que, a partir das análises de ideologia, o lugar da cultura dominante tornou-se muito claro. É o lugar a partir do qual o exercício da dominação política, da exploração econômica e da exclusão social se realiza; e a cultura popular também se torna mais nítida a partir desse lugar, isto é, ela é aquilo que é possível ser elaborado pelas classes populares e, em particular, pela classe trabalhadora segundo o que se faz no pólo da dominação.
A pergunta que considero mais interessante para nós, neste momento, é: O que pode ser uma cultura tratada do ponto de vista da democracia? O que seria uma cultura da democracia e o que seria uma cultura democrática (que não é a mesma coisa)? Quais são os problemas de um tratamento democrático da cultura, portanto, de uma cultura da democracia, e da realização da cultura como visão democrática, portanto, de uma cultura democrática? Em primeiro lugar, o problema da relação entre cultura e Estado; em segundo, a relação cultura/mercado; e em terceiro, a relação cultura/criadores. Se examinarmos o modo como, no Brasil, o Estado opera, podemos dizer que, no tratamento da cultura, sua tendência é antidemocrática. Não porque o Estado é ocupado por este ou aquele grupo dirigente, mas pelo modo mesmo como o Estado visa a cultura. Diria que ele considera a cultura de duas maneiras principais, na tradição brasileira na primeira tradição, o Estado captura toda a criação cultural da sociedade e, sob o pretexto de ampliar o campo público da cultura, transforma a criação social em cultura oficial, confundindo o público e o oficial. E faz essa cultura oficial operar como doutrina. Aparelha-a institucionalmente para irradiá-la e difundi-la pela sociedade, de tal modo que o Estado se oferece como produtor de cultura, tirando da sociedade o lugar onde a cultura efetivamente se realiza.
A outra tradição, mais recente, é aquela na qual o Estado se vê como moderno no tratamento da cultura, passando a considerar que sua figura como produtor oficial de cultura é arcaica. Por modernidade, o Estado entende repetir, por meio das instituições governamentais de cultura, os padrões, os critérios e a lógica da indústria cultural. Dessa forma, passa a operar no interior da cultura com os padrões de mercado. Se, no primeiro caso, oferecia-se como produtor e irradiador de uma cultura oficial, no segundo, oferece-se como um balcão para as demandas, porque o vocabulário agora é todo econômico. Balcão para as demandas culturais às quais responde tentando obedecer à suposta racionalidade do mercado cultural, o Estado adota os padrões do consumo e da mídia, mas, em particular, o padrão da consagração daquilo que já está consagrado. Passa a tratar a cultura como investimento, devendo obter um "retorno".
Se imaginarmos uma outra relação que os órgãos governamentais poderiam ter com a cultura, talvez devêssemos recomeçar compreendendo a cultura como aquilo que constitui um campo de símbolos, de valores e de comportamentos diferenciados no interior da sociedade, diferença produzida seja pela divisão social das classes, seja pela pluralidade dos grupos e movimentos sociais. Nessa visão múltipla da cultura, nesse campo ainda da sua definição antropológica, que mencionei no início, os órgãos governamentais passariam a ter consciência plena de que não podem produzir cultura, que há uma impossibilidade de fato e de direito de que o Estado produza cultura.
O Estado passa a ser visto, ele próprio, como um dos elementos integrantes da cultura, isto é, como uma das maneiras pelas quais a sociedade cria para si própria o símbolo, os signos e as imagens do poder. É produto da cultura e não produtor de cultura. E um produto que exprime a divisão e a multiplicidade social. A simples percepção antropológica do significado da cultura já desmontaria a pretensão dos órgãos governamentais de serem produtores de cultura, porque perceberiam a si próprios como produtos da cultura. Aqui, o aspecto da divisão de classes é o mais importante.
Um segundo ponto que poderia alterar a relação do Estado, dos governos, com a cultura, agora em relação à questão do mercado, seria o de pensá-la como um campo específico de criação: criação da imaginação, da sensibilidade e da inteligência. Um campo específico, não mais como o campo contraditório e polarizado da divisão de classes, mas como um tipo de atividade social, como atividade da inteligência, da sensibilidade, da imaginação, da reflexão que não é definido pelo prisma do mercado, pois o prisma do mercado reduz a cultura à condição de lazer/diversão e espetáculo. Não que a cultura não tenha um lado lúdico e de lazer que lhe é essencial e constitutivo, mas uma coisa é perceber o lúdico e o lazer que estão no interior da cultura, e outra é instrumentalizá-la para que ela seja apenas um momento de lazer para os outros, o instante da diversão e do entretenimento. Sob o prisma da diversão, a cultura é capturada pelos critérios do mercado, perfeitamente mensurável, dependendo do número de espectadores, do número de público e do de vendas. Mede-se o quanto uma atividade cultural vale ou não, pela quantidade de diversão que ela proporciona ou não. Ao mesmo tempo, garante-se que ela seja supérflua, uma sobremesa, algo quase irrelevante num país onde os direitos básicos não foram atendidos. Na mesma linha mercadológica, trata-se a cultura a partir do seu ponto final, o momento no qual ela se expõe ao olhar dos outros, o instante em que é exposição de um espetáculo. É o show.
O que significaria uma relação nova com a cultura, na qual a considerássemos processo de criação? Seria a de entendê-la não como entretenimento, diversão e fundamentalmente espetáculo, mas como trabalho. Trabalho da criação das obras culturais, não confundindo a cultura apenas com as belas-artes (há uma tendência a se considerar que a cultura é pintura, escultura, música, dança, literatura, com algumas reservas o cinema e o vídeo, reduzindo-a ao campo das belas-artes e perdendo a amplitude que ela possui). Tratar a cultura como trabalho da inteligência, da sensibilidade, da imaginação, da reflexão, da experiência e do debate, e como trabalho no interior do tempo, é pensar a cultura como criação de obras pelo corpo e pelo espírito, por indivíduos e grupos sociais e também por classes sociais. Como trabalho, a cultura opera mudanças em nossas experiências imediatas, abre o tempo com o novo, faz emergir o que ainda não foi feito, não foi pensado e não foi dito. Captar a cultura como trabalho significa, enfim, compreender que o resultado cultural (a obra) se oferece aos outros sujeitos sociais, se expõe a eles, oferece-se como algo a ser recebido por eles para entrar em sua inteligência, sensibilidade e imaginação para ser retrabalhada pelos receptores e também surgir enquanto espetáculo e entretenimento que resultam do trabalho, mas não o constituem.
Considerar a cultura como o trabalho da obra significa que não é possível esperar que o Estado seja produtor de cultura. E como o trabalho da obra cultural não se mede pelos critérios do mercado, ao contrário, ele é a recusa desses critérios. O Estado ainda pode encarar a cultura por um outro prisma pelo qual a entende como um direito básico do cidadão.
Considerar a cultura dessa forma significa, em primeiro lugar, afirmar o direito de acesso às obras culturais produzidas, particularmente o direito de fruí-las, o direito de criar as obras, de produzi-las, e o direito de participar das decisões sobre as políticas culturais.
O que quero dizer com o direito de produzir obras culturais? Se se considerar que a cultura é o conjunto das belas-artes, então isso significa, por exemplo, que está aberto a todos o direito de ser pintor. Evidentemente, que cada um de nós, um dia ou outro, tem vontade de jazer uma aquarela, um guache, fazer um desenho, no entanto isso não nos torna pintores. Pode-se ter uma política cultural que espalhe ateliês de pintura, aulas e grupos de pintam por toda a cidade para garantir o hobby da pequena pintara, não as belas-artes, mas o que poderíamos chamar de as "feias artes". Ora, não seria melhor que essas pessoas que gostam de pintura e que não são e nunca serão pintoras tivessem o direito de ver as obras dos artistas, fruí-las, telas diante de si, serem levadas a elas? Não caberia ao Estado garantir o direito dos cidadãos de ter acesso à pintura? E essas mesmas pessoas podem ser produtoras de cultura, embora não sejam pintoras nem escultoras nem dançarinas, e podem ser produtoras de cultura no sentido forte da palavra, em vez de receberem aulas em ateliês e estúdios para se divertirem, brincando de pintura, escultura ou dança. Por exemplo, elas são sujeitos, agentes, autores da sua própria memória. Por que não oferecer condições para que elas possam criar formas de conservação da sua memória, da qual elas são os sujeitos criadores? Por que não oferecer condições teóricas é técnicas para que possam ser preservadoras de sua própria criação como memória social? A idéia não é excluir as pessoas do campo da cultura, mas garantir a elas que, naquilo em que são sujeitos da sua obra, tenham o direito de produzir essa obra. Finalmente, o direito à participação nas decisões de política cultural é o direito de intervir na definição de diretrizes culturais que garantam tanto o acesso quanto a produção de cultura pelos cidadãos. Isso significa que o que se está introduzindo é a idéia da cidadania cultural, em que a cultura não se reduz ao supérfluo, à sobremesa, ao entretenimento, aos padrões do mercado, à oficialidade doutrinária que é ideologia, mas se realiza como um direito de todos os cidadãos, a partir do qual eles se diferenciam, entram em conflito, trocam as suas experiências, recusam formas de cultura, criam outras alternativas, movem todo o processo cultural. Dito isso, já que falei dê cidadania cultural, passo ao outro conceito, que é o de democracia.
Alguns traços principais caracterizam a democracia. Em primeiro lugar, legitimidade e a necessidade do conflito. A democracia é o único regime político no qual o conflito não é aquilo que precisa ser exorcizado, ocultado ou terminado, mas aquilo que vivifica o regime político, pois, ao contrário de qualquer outra forma política, a democracia tem a peculiaridade extraordinária de ser a única na qual o conflito é constitutivo de seu modo de ser. O conflito não é obstáculo; é a constituição mesma do processo democrático. Essa talvez seja uma das maiores originalidades da democracia.
Sua segunda característica é a de ser o único regime político que se apóia não na noção de privilégio, mas na noção de direito. Não apenas o direito como Estado de Direito, isto é, como definição e garantia de alguns direitos, mas sim como criação de direitos novos. Por seu vínculo constitutivo com o conflito, a democracia não cessa de fazer surgir novos sujeitos políticos que emergem dos conflitos e esses sujeitos são criadores de direitos novos. A democracia é, fundamentalmente, não o Estado de Direito liberal, mas o processo de criação dos direitos; é essa também a grande originalidade da democracia. Por isso mesmo a democracia é fundamentalmente história e histórica, porque é um processo de abertura temporal contínua pela criação de novos direitos.
A terceira característica da democracia, justamente porque opera com o conflito e com a criação de direitos, é a de não ser um setor específico da sociedade no qual a política se realiza, mas determina a forma das relações sociais e de todas as instituições; a vida social se pauta pela própria democracia; ou seja, é o único regime político que é também a forma social da existência coletiva. Isso faz com que apenas na democracia seja claro o princípio republicano da separação entre o público e o privado, porque define o estatuto coletivo da lei (feita pelos cidadãos e por eles obedecida) e a impossibilidade do governante de identificar-se com o poder e dele se apropriar. Finalmente, é aquela forma da vida social que cria para si própria um problema que não pode cessar de resolver, porque a cada solução que encontra, reabre o seu próprio problema, qual seja, a questão da participação.
Como poder popular (demos = povo; krathós = poder), a democracia exige que a lei seja feita por aqueles que irão cumpri-la e que exprima seus direitos. Nas sociedades de classe, sabemos, o povo, na qualidade de governante, não é a totalidade das classes nem da população, mas a classe dominante que se apresenta através do voto, como representante de toda a sociedade para a feitura das leis, seu cumprimento e a garantia dos direitos. Assim, paradoxalmente, a representação política tende a legitimar formas de exclusão política sem que isso seja percebido pela população como ilegítimo, mas é percebido por ela como insatisfatório. Conseqüentemente, desenvolvem-se, à margem da representação, ações e movimentos sociais que buscam interferir diretamente na política sob a forma de pressão e reivindicação. Essa forma costuma receber o nome de participação popular, sem que o seja efetivamente, uma vez que a participação popular só será política e democrática se puder produzir as próprias leis, normas, regras e regulamentos que dirijam a vida sócio-política. Assim sendo, a cada passo, a democracia exige a ampliação da representação pela participação e a descoberta de outros procedimentos que garantam a participação como ato político efetivo que aumenta a cada criação de um novo direito.
Podemos dizer que a democracia propicia, pelo modo mesmo do seu enraizamento, uma cultura da cidadania à medida que só é possível a sua realização através do cultivo dos cidadãos. Se podemos pensar numa cidadania cultural, podemos ter certeza de que ela só é possível através de uma cultura da cidadania, viável apenas numa democracia. Isso abre o tema complicado de uma democracia concreta e, portanto, o tema do socialismo.
Sabemos todos que o socialismo foi colocado sob suspeita. Em primeiro lugar, porque foi, de fato, ou para fins ideológicos, interpretado exclusivamente como um economicismo, e a conseqüência da visão economicista, isto é, de que o socialismo vem exclusivamente pela mudança das relações de produção, fez com que o resultado fosse o estatismo e não o socialismo. Além do engano do economicismo, há o engano oposto, o do politicismo, que desembocou na idéia de que o socialismo vem exclusivamente pela ação de grupos armados em atos de vontade revolucionária que arrastariam toda a sociedade. No primeiro caso, no do economicismo, abandonamos a idéia de ação política pela de uma mecânica incrustada no interior da história que se realiza automaticamente, embora, contraditoriamente, esperemos a presença de um agente para "tocar a máquina" da história. Como esse agente nunca aparece para fazer esse "serviço" e ao mesmo tempo, temos certeza de que a "máquina" irá funcionar apesar da ausência do agente, substituímos o sujeito histórico (a classe universal) pelo partido de vanguarda que se consolida através do Estado total. Se esse é o primeiro engano a respeito do socialismo, o segundo é o contrário: é o da suposição de que, mesmo sem alterar as relações de produção, nem a ideologia e nem as relações políticas vigentes, bastará a ação imediata, através das armas, para que o socialismo se instaure. Se o socialismo foi colocado sob suspeita por causa desses dois enganos, isso não quer dizer que as críticas feitas a ele sejam corretas. É preciso examinar o equívoco dessas críticas. Ou melhor, porque as esquerdas adotaram a posição da avestruz, recusando-se a fazer a crítica de seus próprios equívocos, deixaram que o campo político-ideológico fosse ocupado pela direita que, então, realizou à sua moda a "crítica" do socialismo.
A primeira crítica feita ao socialismo identifica socialismo e totalitarismo. Esse equívoco é muito mais profundo do que parece. Se é verdade que é um processo ideológico - no sentido em que a ideologia é inversão - que leva a identificar o socialismo e o totalitarismo para fins de propaganda, o engano dos teóricos do totalitarismo não está em terem propositadamente feito essa identificação. O engano reside em outro lugar (engano muito importante para nós, porque é teórico, é um engano político substancial). Os teóricos do totalitarismo, sobretudo no afã de distinguir o autoritarismo patrocinado pelo capitalismo e os regimes ditos socialistas, no esforço para justificar as ditaduras (a ditadura espanhola, a portuguesa, as da América Latina, as africanas), inventam, a partir dos anos 50, a teoria do totalitarismo, diferenciando totalitarismo e autoritarismo, dizendo que o autoritarismo é algo conjuntural, episódico, sem ideologia, e por isso, um belo dia, acaba. O totalitarismo seria o oposto disso. É colocado como resultado imanente e necessário do socialismo; é definido como pura ideologia; e é considerado como imóvel. Enquanto o autoritarismo seria um episódio político destinado a terminar um dia, o totalitarismo seria o fechamento absoluto da história, a impossibilidade de as contradições fazerem um caminho e produzirem uma transformação sociopolítica. Qual o erro teórico profundo cometido nessas teorias? O de identificar a aparência social (a imobilidade social resultante da identificação da sociedade com o partido e do partido com o Estado), oferecida através do Estado, com a realidade política, escondida nas lutas e contradições internas aos países ditos socialistas. E a experiência veio mostrar o equívoco da teoria com a aparição da Perestroika e da Glasnost, do Solidariedade e tudo quanto vem se tornando de nosso conhecimento. Não é porque nós sabemos disso agora que os processos que conduziram a tais fatos também só existiriam agora. A teoria desconsiderou a existência da sociedade e da política nos países ditos socialistas e isto porque só tinha os critérios liberais para fazer suas análises. Mas por isso, vamos dizer que não existe totalitarismo? Não! Existe. Porém não o que a direita considerou como sendo totalitarismo. Qual é o problema para nós? A marca do totalitarismo não é nem a imobilidade, nem a ideologização e nem que seja conseqüência imanente do socialismo (ele é a impossibilidade do socialismo, para início de conversa); sua marca é a identificação entre o Estado e a sociedade pela mediação de uma burocracia partidária. Isso é um regime totalitário. Significa que esse regime está sujeito às contradições e à história e que, portanto, ele próprio não é um ponto terminal necessário da utopia socialista. Além de mencionarmos o engano do economicismo, do politicismo e das teorias liberais do totalitarismo, que colocam o socialismo sob suspeição, existe também o equívoco da social-democracia, que considera o socialismo idêntico ao Estado do bem-estar social e que, uma vez este estabelecido, o socialismo estaria implantado. Não vou comentar o equívoco social-democrata porque já o fiz em outras ocasiões.
O que é importante, a meu ver, é a maneira pela qual, na formulação ideológica de políticas, vieram a se combinar as teorias do totalitarismo e as teorias da social-democracia para produzir um efeito inesperado. Qual é o efeito produzido pela somatória da identificação entre o socialismo e totalitarismo e socialismo e social-democracia? O efeito é o surgimento e o reforço da ideologia neoliberal. Essa ideologia se apresenta como resposta à solução e à crítica do totalitarismo e do Estado do bem-estar social em nome da racionalidade do mercado e da irracionalidade do Estado. Por que isso é importante para nós? Porque estamos vendo candidatos à presidência da República que estão subindo nas sondagens sobre intenção de votos, porque estão mexendo com algumas coisas fundas no imaginário brasileiro (isto é, política = corrupção) e porque, no interior desse imaginário, se apresentam como representantes da modernidade neoliberal. Ora, no Brasil, sabemos que as idéias costumam ficar fora do lugar e tudo aqui vira caricatura. Se, na Europa e nos Estados Unidos, a ideologia neoliberal é estruturada por razões diferentes, no entanto é algo concreto e construído como uma forma de fazer a luta político-ideológica, a política econômica e a política armamentista com relação ao leste europeu, e também como desmontagem do Estado do bem-estar social, em nome das maravilhas do mercado e da iniciativa privada. Ora, no caso do Brasil, além de não se poder falar em política armamentista determinando a economia, também não se pode falar em luta contra o Estado do bem-estar social, porque este não existe aqui. No nosso caso, a ideologia neoliberal se estrutura em cima do quê? É montada como um discurso contra o socialismo, contra a esquerda, mas a partir da absoluta inexistência de um Estado republicano no país e não como análise da suposta irracionalidade do Estado do bem-estar social, quando comparada à suposta racionalidade do mercado. Na verdade, no Brasil, essa ideologia é montada contra a idéia de um Estado corrupto. É por isso que esse discurso neoliberal no Brasil não se apresenta como discurso da modernidade, da racionalidade do mercado; não é o da guerra das estrelas de Reagan, nem o da racionalidade do mercado de Thatcher; é contra os marajás. Eu sei que é uma piada, que é triste, mas é assim que é constituído o discurso neoliberal no Brasil, montado em contraposição ao discurso da esquerda, isto é, contra o discurso socialista, à medida que este afirma a necessidade de um Estado republicano, de um Estado democrático, de um Estado do bem-estar social e contra a privatização dos recursos públicos.
É preciso ter clareza sobre os resultados do socialismo posto sob suspeição. Se agora não é mais possível falar em totalitarismo (porque Gorbachev está tomando suas providências, apesar da questão da China), se não dá para manter o discurso raivoso sobre o totalitarismo e sobre a ineficácia e a inoperância do terrorismo, se não temos nem a presença do terrorismo nem a do totalitarismo, o que sobra como demolição do discurso socialista? A racionalidade neoliberal que, no país, se constrói contra o Estado, em favor da iniciativa privada e contra a corrupção. E isso, é uma dupla caricatura, não é? Há um motivo mais profundo para a falta de fundamento do neoliberalismo brasileiro. Com efeito, a ideologia neoliberal defende a autonomia da iniciativa privada e a não intervenção do Estado na economia. Ora, no Brasil, não há, no sentido rigoroso do termo, iniciativa privada, pois os empreendimentos privados são subsidiados e sustentados pelo Estado. Este é um Estado privatizado e o que cabe à esquerda defender é a desprivatização do Estado, uma vez que a privatização drena os recursos pelos serviços públicos para sustentar a empresa privada. Portanto, temos a estruturação de um discurso anti-socialista montado sobre duas falsidades.
Onde está a iniciativa privada racional no Brasil? E o Estado do bem-estar social, onde está?
Como se colocaria para nós a questão do socialismo? Estou convencida, em primeiro lugar, de que não se coloca, no caso da cultura, como uma nova política cultural mas como uma nova cultura política, aquela que não fala socialismo e democracia, mas é capaz de captar que o socialismo é intrinsecamente democrático porque, caso contrário, não é socialismo. E que a democracia é concretamente socialista, porque, caso contrário não é democracia. Ou seja, o socialismo se coloca como a realização dos direitos econômicos e sociais, portanto de um novo conceito de justiça e dos direitos políticos vinculados a uma prática democrática extremamente complicada que é a participação. Qual seria a nossa contribuição para pensar uma cultura política socialista? Penso que ela poderia ser oferecida a partir dos conceitos de participação, de poder e de prática política. O conceito de participação tem, na modernidade, uma origem muito precisa e quando essa origem fica esquecida, o conceito sofre duas apropriações que o alteram profundamente. Qual é a origem moderna da prática da participação? As sociedades revolucionárias. Numa sociedade revolucionária, todos os seus membros, excluídos os inimigos, são sujeitos da revolução, da história e cada ação, cada prática, desde uma lei e uma nova instituição política até a construção de uma casa, a construção de uma escola, uma aula que se dê, uma irrigação e uma colheita que se façam, urra automóvel que se fabrique, todos esses atos participam da criação da nova sociedade. A participação é o dado constitutivo dessa sociedade porque é uma sociedade revolucionária em construção pela ação de todos os seus sujeitos. Na ausência dessa sociedade existe uma apropriação do conceito de participação que o modifica. Creio que, no Brasil, conhecemos duas apropriações não revolucionárias da participação: a social-democrata e liberal, de um lado, e a da democracia cristã, de outro lado.
Na linguagem da social-democracia e do liberalismo a participação torna-se sinônimo de demanda popular. Você reúne as pessoas para fazerem demandas e chama isso de participação. Reunir-se para reivindicar e para demandar é considerado participação popular. A participação é pressão popular. Na versão da democracia cristã não se trata nem de reivindicação nem de demanda; trata-se de propor a realização; aqui, a participação se transforma em mutirão. Temos, assim, duas apropriações do conceito de participação e da sua prática: ou a participação reduzida à pressão popular, ou reduzida ao trabalho popular coletivo, na forma de mutirão. Penso que uma das contribuições que uma cultura socialista pode dar é considerar que a participação de uma ação coletiva pela qual um bem para a coletividade se realiza não é a intervenção contínua no cotidiano, não é a demanda, a pressão, o lobby, e não é o mutirão. E a intervenção periódica, refletida e constante nas decisões políticas. O direito de tomar as decisões políticas, de definir diretrizes políticas e torná-las práticas sociais efetivas, isso é a participação. Por isso disse que socialismo e democracia são inseparáveis. É preciso lembrar que sempre que se diz que, nas sociedades complexas, a democracia direta é impossível, devendo ser sempre democracia representativa, porque a participação de todos é impossível, esconde-se a característica fundamental da democracia (sem o que ela não é democracia), isto é, que nela aqueles que obedecem a lei são os autores da lei. Somente quando criamos instituições nas quais se dá a participação política, é que um movimento, um grupo, uma classe, um conjunto de movimentos reunidos podem decidir qual a lei que irão obedecer e, a partir desse ponto, podem voltar-se para as formas da representação política, para o poder legislativo e o poder executivo, a fim de que transformem essa lei numa lei positiva. Quero lhes dar um exemplo do que é uma perspectiva socialista, uma perspectiva de participação no sentido da esquerda, uma participação que é democrática: o modo como foi tratado o comércio ambulante em São Paulo.
Este é um problema antigo que consta das atas da cidade de São Paulo, no Arquivo Histórico (que pertence à Secretaria Municipal de Cultura). É um problema que data do século XVIII. A tradição do tratamento do comércio ambulante, a partir da República e a partir da existência de municípios, é a da repressão a esse comércio ou o uso corrupto desse comércio por parte do poder público. O governo municipal de São Paulo convidou os ambulantes, os marreteiros - porque marreteiros e ambulantes não são a mesma coisa -, os comerciantes, a Associação dos Ambulantes e a Associação Comercial de São Paulo para discutir e regulamentar o comércio ambulante. Durante um mês houve reuniões entre grupos, plenárias, assembléias, às vezes com os secretários, às vezes sem os secretários, e, ao final de um mês, os interessados produziram, de comum acordo, o regulamento do comércio ambulante de São Paulo, que foi transformado pela prefeita num decreto, o decreto transformado numa lei sancionada pelo Poder Legislativo. Portanto, os ambulantes de São Paulo fizeram a lei a que obedecem. Isso se chama participação política, democracia direta, e isso é uma perspectiva de esquerda com relação à participação; não é demanda, não é mutirão, é intervir politicamente na cidade. Isso prepara uma cultura socialista.
Outro ponto necessário para uma nova cultura política é a reavaliação do conceito de poder. Não identificar o poder e a força, não identificar o poder e o Estado, mas considerar o poder uma ação coletiva capaz de determinar as diretrizes de decisões e ações políticas e de conservá-las, e que o poder só existe como ação conjunta dos cidadãos. Onde houver ação conjunta dos cidadãos, capazes de tomar uma decisão política e definir um rumo político, lá existe poder. Portanto, o poder está espalhado também pelo social e um dos locais onde ele é exercido é o governo, mas não só ele. Finalmente, penso que, ligada aos conceitos de participação e de poder, há a idéia da descentralização como democratização das decisões políticas, de sorte que a sociedade seja capaz de criar múltiplos lugares e focos de poder que são concorrentes, concomitantes, divergentes, conflitantes, antagônicos, contraditórios (quando forem classes sociais) e, freqüentemente, convergentes. Imagino, portanto, que se nos afastarmos da redução da política aos critérios do mercado (como no economicismo neoliberal), se nos afastarmos da redução da política aos critérios exclusivos do Estado (como no estatismo de esquerda), se tentarmos pensar na cidadania cultural e numa cultura da cidadania, talvez sejamos capazes de pensar aquilo que, do ponto de vista da cultura, permite a percepção de um vínculo interno e não de um vínculo acidental entre a democracia e o socialismo.
Marilena Chaui é filósofa, secretária de cultura do Estado de São Paulo.