Economia

Para resolver o problema inflacionário, é preciso um conjunto de políticas e reformas para redefinir as bases do capitalismo brasileiro. Do governo Sarney o máximo que se pode pedir é que a explosão de preços seja adiada. O máximo que se pode esperar é que, ao fazer isso, ele não inviabilize o próximo governo

A triste experiência da Argentina e o retumbante fracasso do Plano Verão colocaram a hiperinflação no centro do debate econômico. O temor de que uma explosão dos preços possa conturbar a sucessão presidencial acabou amadurecendo uma das poucas unanimidades nacionais: a hiperinflação não convém a ninguém. Se há consenso em relação aos perigos que uma completa desorganização econômica significaria para nossa frágil democracia, reina grande confusão sobre o que se pode e deve fazer para evitá-la. Neste texto discutiremos as raízes do problema inflacionário brasileiro; a especificidade da recente aceleração dos preços; e o que se pode fazer para impedir maior deterioração da situação e estabilizar o sistema de preços.

Na década de 80 o processo inflacionário brasileiro esteve fortemente condicionado pela crise da economia mundial. A paralisação do fluxo de empréstimos nos bancos privados, a significativa elevação nos preços do petróleo e o forte aumento nas taxas de juros tiveram um efeito devastador na economia, provocando estrangulamento cambial e exacerbando as incertezas cambiais. Além do impacto direto sobre a formação de preços, através de seus efeitos sobre os custos de produção e as expectativas dos capitalistas, a instabilidade do sistema monetário internacional e a necessidade de promover grandes transferências de recursos ao exterior tiveram repercussão bastante negativa sobre a capacidade das autoridades de fazer política monetária e sobre todo o esquema de financiamento da economia brasileira, que, historicamente, teve no endividamento externo um dos eixos básicos.

Ao lado dos condicionantes externos, a inflação foi profundamente afetada pelas políticas econômicas promovidas pelo governo brasileiro desde meados da década de 70, cujos objetivos subordinaram-se totalmente às imposições dos credores internacionais e dos grandes grupos de interesses internos. Isto significou absorver perdas do setor privado, assumir sua dívida externa, apoiar setores produtivos ineficientes, sustentar uma ciranda financeira ancorada em títulos públicos e reorientar a produção interna para atender à demanda externa, de modo a viabilizar crescentes transferências de recursos reais ao exterior com o propósito de permitir o pagamento, com recursos próprios, de uma proporção cada vez maior dos juros da dívida externa.

Tais fatores levaram à acumulação de um enorme estoque de dívidas externa e interna, provocando um completo esgotamento dos dois pilares fundamentais do padrão de financiamento da economia: a mobilização de recursos através da dívida externa e da intermediação do setor público. Enquanto não houver uma profunda reforma financeira, os mecanismos de endividamento, ao invés de potencializar a acumulação de capital, funcionarão como um peso morto que imobiliza a economia como um todo e o setor público - principal devedor externo e interno - em particular.

Isso significa, entre outras coisas, que uma política antiinflacionária não pode dispensar algum tipo de desvalorização dos estoques das dívidas externa e interna e de alongamento em seus perfis de vencimento. O país não pode funcionar indefinidamente em função da necessidade de gerar dólares e superávits fiscais para o pagamento de encargos financeiros, à custa da pauperização de sua população e do comprometimento de seu futuro econômico.

A contraface do encilhamento do setor público foi um processo de saneamento das empresas sobreendividadas e de sustentação de uma especulação sem risco das unidades superavitárias, o que acabou criando uma enorme massa de riqueza financeira nas mãos das grandes empresas. A falta de perspectiva sobre as novas frentes de expansão do capitalismo brasileiro tem impedido que esses recursos sejam utilizados para alavancar um novo surto de investimentos produtivos. Como grande parte da riqueza financeira está lastreada na dívida pública mobiliaria, o temor de que o Estado desvalorize seus títulos leva os capitalistas a especularem contra a moeda nacional e a procurar refúgio em ativos reais, dólares e ouro, desestabilizando o sistema de preços. Se esse movimento assumir caráter massivo e concentrado no tempo, o país entrará num quadro clássico de hiperinflação.

A grande massa de recursos financeiros, com elevada liquidez nas mãos dos grandes oligopólios, a crise fiscal e a situação de elevada vulnerabilidade externa foram paulatinamente corroendo a eficácia dos instrumentos de política econômica e comprometendo a capacidade do Estado de arbitrar a concorrência entre as diferentes frações de capital de maneira consistente com os interesses estratégicos de longo prazo do conjunto dos capitalistas.

A impotência frente aos grandes blocos de capitais reflete, na realidade, a crise do Estado desenvolvimentista e do pacto político que lhe dava sustentação. É a ruptura do bloco de poder montado em 1964, que não sofreu modificação qualitativa com a chegada da Nova República, bem como a ausência de um pacto alternativo que explicam a incapacidade do Estado de organizar e orientar a sua ação e que permitem a submissão da política econômica aos interesses de curto prazo dos grandes blocos de capitais e dos grupos de interesses incrustados na burocracia pública. A privatização do setor público é a principal razão do imobilismo e da ineficiência do Estado brasileiro.

Em suma, a aceleração do processo inflacionário na década de 80 é apenas uma das dimensões da crise do padrão de desenvolvimento montado em meados da década de 60. Tal processo está associado à incerteza cambial gerada pela dívida externa, aos efeitos do esforço de ajustamento externo destinado a gerar mega-superávits comerciais, ao impacto da crise fiscal sobre o comportamento dos capitalistas, à crescente perda de eficácia dos instrumentos de política econômica e, finalmente, ao movimento de generalização dos mecanismos de indexação da economia. O processo inflacionário deve ser interpretado como a dimensão financeiro-monetária da crise do atual padrão de desenvolvimento. Por isso, as medidas antiinflacionárias não podem estar desvinculadas de uma estratégia mais ampla para a superação dessa crise.

Não se trata, portanto, de um problema de falta de vontade e firmeza política para combater a inflação, nem - muito menos - de falta de proposta técnica. É evidente que uma solução para o problema inflacionário pressupõe o equacionamento adequado dessas questões.

Porém, antes disso, trata-se de um problema político. Enquanto não houver redefinição do pacto de poder capaz de fixar rumos para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, não haverá remédio capaz de resolver a crise econômica.

Os efeitos extremamente perversos do Plano Verão nas finanças públicas e no sistema de preços relativos, a grande lentidão do governo para reindexar a economia e o risco de que o imobilismo das autoridades diante do processo de fuga de capital e de queima de reservas pudesse precipitar uma crise cambial acabaram provocando forte instabilidade e ameaçando o país com a irrupção de um processo hiperinflacionário. Ainda que, em meados do ano, a reindexação da economia, a centralização cambial e a posição das autoridades de defenderem as reservas cambiais - até mesmo com a suspensão dos pagamentos da dívida externa - tenham contribuído para arrefecer os ânimos mais exaltados, o fantasma da hiperinflação está longe de ter sido definitivamente afastado.

A expectativa de que o país não consiga escapar da hiperinflação decorre, de um lado, dos temores de que o governo Sarney não suporte as pressões dos grandes bancos internacionais, das multinacionais e dos setores que eventualmente possam especular retendo exportações, permitindo a queima de reservas cambiais; bem como do medo de que a transição de governo possa provocar a total paralisia na administração, deixando-a completamente impotente diante da conjuntura. De outro lado, o medo da hiperinflação provém do receio de que o resultado eleitoral possa provocar a fuga dos títulos públicos, em função do temor dos grandes grupos empresariais de que o novo presidente promova alguma forma de desvalorização da dívida interna mobiliária.

Os efeitos de uma situação, como essa, no país seriam dramáticos, pois se a inflação crônica funciona como um câncer que vai desorganizando paulatinamente a economia, a hiperinflação é como um infarto fulminante que provoca a total desorganização dos preços e o colapso do sistema econômico. Na inflação crônica, a economia desenvolve uma série de mecanismos de indexação que permite a realização de contratos e o funcionamento relativamente tranqüilo das transações econômicas correntes de produção e circulação das mercadorias.

Na hiperinflação, os mecanismos de indexação deixam de ser reconhecidos como instrumento capaz de dar certa estabilidade aos contratos e, portanto, de permitir que o sistema de preços continue funcionando tendo como base o padrão monetário nacional. Nessas circunstâncias, os empresários perdem qualquer noção dos parâmetros para a fixação de preços e há uma fuga para a moeda estrangeira.

Lições recentes

As experiências de combate à inflação na década de 80 oferecem duas importantes lições sobre o que não deve ser feito. De um lado, os remédios ortodoxos, baseados em políticas de arrocho fiscal, monetário e salarial, revelaram-se não só completamente incapazes de reverter o processo inflacionário como acabaram por acentuá-lo. Quem não se lembra da triste experiência do programa de ajuste promovido pelo FMI na época de Delfim Netto, que simplesmente dobrou o patamar inflacionário, elevando-o para a faixa de 200% ao ano; da desastrada passagem de Dornelles no início da Nova República, que, além de desestabilizar o patamar inflacionário, teve efeitos extremamente negativos sobre as finanças públicas; e da política "feijão com arroz", cujo insucesso foi responsável pelo descontrole inflacionário que antecedeu o lançamento do Plano Verão?

De outro lado, as tentativas de combate à inflação através de programas de congelamento de preços - planos Cruzado, Bresser e Verão - tampouco se revelaram efetivas. Nessas experiências, a inflação foi temporariamente abafada à custa de fortes desequilíbrios nos preços relativos e de violentos movimentos especulativos, que acabaram acentuando as incertezas da economia e desestabilizando ainda mais o padrão monetário. Além disso, os programas de congelamento revelaram-se cada vez menos eficazes para manter durante algum tempo a inflação em nível baixo. Em todos os casos, após o descongelamento a inflação voltou com maior vigor.

As lições da década de 80 mostram que não é possível combater a inflação sem atacar a questão dos estoques das dívidas externa e interna. Mas isso não é suficiente. A luta contra a inflação deve fazer parte de um conjunto de medidas destinado a superar a crise do capitalismo brasileiro, envolvendo a redefinição de seu padrão de desenvolvimento e financiamento, a reconstrução dos instrumentos de política econômica e uma redefinição do papel do Estado na economia.

Por isso, ainda que a política antiinflacionária envolva uma dimensão eminentemente financeiro-monetária, na realidade seu sucesso depende de medidas muito mais amplas, que envolvem um conjunto de políticas e de reformas nos aparelhos de Estado, destinado a redefinir as bases do capitalismo brasileiro. Na prática, isso coloca duas questões no centro do debate econômico e político. Em primeiro lugar, torna-se necessário resolver como o custo do ajuste vai ser distribuído entre os diferentes segmentos da sociedade. Em segundo, qual será a participação desses segmentos no novo padrão de desenvolvimento.

Evidentemente esse não é um problema técnico mas uma questão política, relacionada com a articulação de um novo pacto de poder capaz de dar sentido e sustentação à ação do Estado. Não há dúvida de que essa é uma tarefa muito além das possibilidades do governo Sarney e do leque de alianças que durante algum tempo deu sustentação à Nova República. Do governo Sarney o máximo que se pode pedir é que a explosão dos preços seja adiada. Espera-se que isso seja feito sem implicar uma herança tão pesada que acabe inviabilizando o novo governo.

O desafio para quem luta por uma sociedade mais justa e democrática está em evitar que o custo da crise econômica recaia sobre as camadas mais pobres da população, comprometendo a própria estabilidade de nossas incipientes instituições democráticas, e em articular um projeto político capaz de compatibilizar a recuperação do desenvolvimento com a melhoria na distribuição de renda. Isto significa que os setores sociais que têm a liberdade e a justiça social como interesses estratégicos de longo prazo têm necessariamente de aumentar a sua presença no cenário político nacional e inscrever sua vontade nas políticas e nas estruturas do Estado brasileiro.

Para um partido socialista, o desafio consiste em conciliar essa tarefa com o objetivo estratégico de longo prazo de superar o sistema capitalista.

Plínio de Arruda Sampaio Jr. é economista, pesquisador do CEBRAP, professor da Unicamp e da PUC-SP.