Política

De fator de ameaça ao capitalismo, o PT poderia estar ameaçado de se tornar cúmplice dos capitalistas?

Após as últimas eleições, há poucos meses ainda, o PT estava tomado por incontida euforia. O relativo sucesso eleitoral, o crescimento e consolidação da CUT, a afluência de militantes, intelectuais e políticos de outros partidos, a ampliação de espaços nos meios de comunicação de massa, tudo concorria para anunciar um ano com grandes avanços e, por que não, a conquista da Presidência da República. Problemas, reconheciam todos, havia, mas, para a maioria, não passavam de consequência natural e inevitável da "crise de crescimento".

Agora, após as primeiras dificuldades da campanha eleitoral e alguns reveses em nossas prefeituras, fica claro que hoje como ontem temos graves problemas.

De onde vêm eles? Simples: o crescimento por que temos passado não é feito exclusivamente de acumulação de forças; um de seus componentes fundamentais consiste na incorporação [pelo] PT de forças e dinâmicas cada vez mais heterogêneas.

As forças sociais, as correntes políticas e as perspectivas ideológicas que se incorporam e desenvolvem no PT estão longe de ser neutras na determinação da direção que tomará o partido. Algumas são resultantes da extensão e radicalização das lutas populares; outras dirigem-se ao PT pela coerência de nosso democrático e pela desagregação (momentânea?, definitiva?) de projetos sociais-democráticos e reformistas. Isto explica por que para enfrentar nossos problemas não basta crescer ou ganhar eleições; pelo contrário, isso só tenderá a reforçar nossa composição heterogênea, aprofundando, no interior do próprio partido, a velha e conhecida oposição: reforma ou revolução.

Entre a reforma possível e a revolução necessária as mediações são infinitas. E sempre é bom lembrar que a criação de condições que podem tornar a revolução, além de necessária, possível não está ao alcance de nossas vontades. Tampouco surgirá da monótona, mesmo que bem-intencionada, repetição de que caminhamos para o socialismo. Afinal, no caminho para o socialismo, como no que leva ao céu, tem de tudo: conservadores assustados com a miséria do povo, extremistas que ficaram "maduros" e "responsáveis", intelectuais modernizadores, aventureiros voluntariosos e voluntaristas etc.

E nós, o PT, para onde vamos? Para onde queremos ir?

Responder com clareza e rigor a estas perguntas não resolverá todas as nossas dificuldades de campanha. Mas talvez ajude a perceber que muitas delas não estão nem no Collor, nem no Brizola, nem na Rede Globo, mas em certas diretrizes e estratégias que, mais implícita que explicitamente, se vêm instalando no partido.

O PT é uma ameaça

A campanha eleitoral se desenrola no bojo de uma crise econômica, política e institucional, que favorece a polarização das forças sociais em torno de duas perspectivas ou projetos. De um lado, temos a consolidação da transição neo-republicana, com seus dois componentes inevitáveis: gestão da crise econômica por meio de arrocho e recessão; desorganização e repressão do movimento popular. De outro, está a perspectiva da ruptura com a transição aliancista-democrática, a afirmação da emergência das massas populares como protagonistas do processo político e, necessariamente, a busca de uma política econômica que deflagre uma maciça e rápida transferência de riqueza.

O PT não pode hesitar. E deve ter claro que uma eventual vitória de Lula, ao configurar a possibilidade de vitória da segunda alternativa, não virá atenuar, antes pelo contrário, o confronto social. Por isso também devemos compreender que não bastam belos programas. Precisamos de uma intensa mobilização popular se quisermos vencer as eleições; e necessitaremos ainda mais dela se pretendemos, em caso de vitória, levar adiante as grandes reformas sociais com as quais o PT está comprometido.

Em nossa curta e rica história, temos sabido combinar a luta institucional com a luta não-institucional. Não foi um aprendizado fácil. Houve companheiros com dificuldade para entender a importância de concorrer às eleições para valer, de eleger gente para o Legislativo e o Executivo. Alguns temiam que o PT conquistasse prefeituras: outros viam na eleição de prefeitos petistas a senha para a instalação de regiões liberadas, nas quais se iniciaria a construção do socialismo. Levamos certo tempo para entender a necessidade de assumir seriamente a administração ali onde fomos eleitos.

O PT avançou. Compreendeu que as forças consagradas ao dia-a-dia administrativo e institucional poderiam ser recompensadas se tal cotidiano estivesse efetivamente voltado para o fortalecimento da organização e da consciência populares e para a conquista de melhorias concretas nas condições de vida da massa trabalhadora.

Entretanto, não podemos imaginar que a experiência e a reflexão acumuladas são suficientes. A Presidência da República não é a mesma coisa que uma prefeitura, por maior que esta seja. O controle do Poder Executivo federal abre possibilidades de ação institucional infinitamente mais amplas. Não é o socialismo, nem sua ante-sala; ele coloca na ordem do dia, porém, a necessidade de uma política governamental que busque engajar num projeto socialista amplas massas, até agora alheias ao movimento popular e à nossa mensagem. Poderemos tomar importantes nichos de poder das classes dominantes. E as reformas em que nos engajaremos, em caso de vitória, atingirão interesses articulados nacionalmente, que nossas prefeituras não conseguem nem arranhar.

O PT é uma ameaça aos poderosos porque encarna - e enquanto encarnar - uma saída alternativa para a crise, uma proposta de ruptura radical com os acordos e compromissos que impedem os partidos burgueses de alterarem a natureza política e o programa econômico da transição neo-republicana. E se o PT é uma esperança para milhões, isso se dá justamente porque ele representa uma ameaça aos poderosos.

As ameaças ao PT

O PT representa uma ameaça porque tem sido um partido coerente na defesa dos trabalhadores e não tem perdido suas características ao participar do jogo eleitoral, ao ocupar lugares no Parlamento, ao assumir algumas administrações municipais. O PT representa uma ameaça porque continua a se afirmar e a se construir enquanto partido de massa, engajado na mobilização e organização do povo.

Apesar de inserido no jogo institucional, o PT permanece uma ameaça porque, tanto dentro quanto fora da institucionalidade, expressa as reivindicações, os interesses, as necessidades da imensa maioria de excluídos da política burguesa.

Entretanto, o PT não passa incólume pela prática institucional. Ela ameaça o PT, que pode ser domesticado pelo sistema institucional, envolvido pela institucionalidade e pelos compromissos que ela cobra de seus participantes.

Não é segredo para ninguém que nosso partido é hoje muito mais institucional que na sua origem; à medida que participamos da institucionalidade, aceitamos e passamos a praticar certas regras de um jogo cuja regra principal é a aceitação das regras.

O jogo institucional, na verdade, tem duas mãos. De um lado, nós levamos para dentro da institucionalidade burguesa, numa nova vitalidade, um espírito de compromisso com os interesses da população, com transparência. De outro, a instituição traz para nós seus padrões de comportamento, seus modos de "fazer política", seus conceitos acerca do que é "possível". Enquanto partido de massas, olhamos para as instituições com o olhar de quem está de fora; enquanto partido institucional, olhamos para as massas com o olhar contaminado pelo espaço institucional.

Neste processo, são vários aqueles que começam a acreditar que os gravíssimos problemas de nosso povo poderiam ser resolvidos no interior mesmo do capitalismo, por meio de reformas da própria institucionalidade burguesa. Falam no socialismo, mas são tão socialistas quanto os pedetistas - embora, reconheçamos, sejam bem mais modernos.

Seria simplismo querer enfrentar essa questão político-ideológica denunciando "os traidores da classe operária". Na verdade, esses companheiros são apenas os sinalizadores da profunda transformação por que vem passando o PT.

Em outras palavras, o que precisamos ter claro é que se a participação no jogo institucional burguês pode trazer, e tem trazido, importantes ganhos do ponto de vista da luta e organização dos trabalhadores, ela pode também fortalecer - e já começou a fazê-lo - tendências no interior do partido que o impulsionam para a adesão a projetos de reformas do sistema que poderiam ser operadas sem rupturas com a institucionalidade vigente.

Nesses projetos, a ação e a organização das massas não necessariamente estarão excluídas; elas deixam apenas de ser o elemento central para se transformar em força de pressão que capacita seus representantes institucionais a negociarem em melhores condições no interior da institucionalidade burguesa. Ao invés de um partido que seja expressão e instrumento da potencialidade disruptiva do movimento de massas, um partido que funcione como canal de condução e mediação institucional dessa potencialidade.

É na direção desse processo de domesticação do PT que pressionam, dentro e fora do partido, importantes correntes políticas e sociais. E, deixemos claro, a domesticação do PT traria automaticamente sua transformação em instrumento de domesticação do movimento popular.

Se não refletirmos sobre o caráter contraditório de nossa prática, se não entendermos a natureza das dinâmicas deflagradas na periferia e no interior do próprio partido, marcharemos para a social-democracia (ou para o reformismo nacionalista) sem ao menos termos consciência do que estamos fazendo e do que se está passando.

Certamente estas ameaças ao projeto petista desagradam a muitos de nós. Podemos tentar exorcizá-las, recordando nossas lutas heróicas, nossos compromissos históricos. Podemos nos indignar com as insinuações de parcela da grande imprensa de que "o PT está ficando mais maduro e responsável'. Podemos até mesmo elevar o tom de nossos discursos ideológicos. Mas indignações e discursos, assim como a gritaria esquerdista, adiantam muito pouco e, muitas vezes, servem apenas para dar uma cobertura de aparência radical a uma prática que se adequa cada vez mais ao projeto reformista.

Não estamos numa situação revolucionária. Eis uma opinião largamente dominante no PT. Partilhamos desta avaliação e estamos convencidos de que apenas a cegueira esquerdista de alguns pode levá-los a interpretar de maneira diversa a atual correlação de forças na sociedade brasileira.

A caracterização da situação como não-revolucionária, no entanto, não é suficiente para construir uma linha política. Senão, vejamos.

Alguns companheiros partem da constatação para deduzir que tudo o que podemos fazer é apresentar um programa de reformas - as famosas "reformas possíveis" - que viabilize a melhoria das condições de vida da população e favoreça a acumulação de forças. A linha reformas possíveis/acumulação de forças, juram eles, será abandonada quando a crise revolucionária se instaurar (afinal de contas, estaremos comprometidos com o socialismo!).

Ora, essa posição desconhece um elemento fundamental da conjuntura que atravessamos: apesar de não estarmos no bojo de uma situação revolucionária, há uma série de elementos (crise econômica e político-institucional, ausência de um projeto hegemônico das classes dominantes etc.) que podem ser portadores, em gérmen, dependendo de seu desdobramento e articulação, de uma crise da dominação.

Nesse contexto, a chegada do PT à presidência pode potencializar estes germens de crise, aprofundar os antagonismos sociais e dar início a um período histórico qualitativamente distinto daquele que se abriu a partir do processo de distensão lenta, gradual e segura do regime militar.

Um partido cujo projeto não se esgota na reforma precisa de algo mais que programas de governo e declarações de que pretende caminhar para o socialismo. Ele precisa de uma estratégia política, uma linha política que contemple a transformação dos germens de crise revolucionária em crise revolucionária. O plano de governo e o programa de reformas sociais são indispensáveis, mas constituem apenas um dos elementos de uma estratégia que engaja a luta eleitoral e, em caso de vitória, o governo petista na transição ao socialismo, que conduz o governo do PT no sentido de se realizar enquanto governo de transição.

O PT é um grande partido de reformas sociais, mas é também um partido socialista. O PT é um grande partido democrático, mas é também um partido comprometido com a superação dos entraves que a dominação burguesa impõe à democracia. Por isso, sua estratégia de governo não se limita às reformas, mas inclui a luta contra a exploração; não se esgota na democratização do aparelho de Estado burguês e acrescenta a luta contra a opressão.

Esta visão redefine a natureza e o sentido das reformas constantes do programa de governo.

O PT não é demagogo; o PT não faz promessas que não pode cumprir, concordamos todos. O PT, no entanto, não se compromete a só fazer estas reformas. O conteúdo de nosso programa se altera à medida de sua própria aplicação, iremos abrindo fronteiras novas a partir de sua própria realização. Devemos governar pela ampliação permanente do campo de possibilidades, governar na fronteira do possível e do impossível, tensionando as forças populares na direção da superação dos limites que o sistema e o regime dominantes impõem a suas reivindicações e anseios.

Isto implica compreender que a política do partido não se poderá resumir a uma política de governo; o plano de governo é parte de uma estratégia de governo; e esta, parte de uma estratégia política que extrapola a ação governamental. Somente nestas condições estaremos nos preparando para, se a crise avançar no sentido revolucionário, fazer do governo do PT um governo de transição ao socialismo. E é neste sentido que o PT apresenta à sociedade brasileira, e em particular aos trabalhadores, um programa de reformas sociais para um governo de transição ao socialismo.

Será possível? Será que a correlação de forças permite?

A correlação de forças, no momento, certamente não permite. Mas apenas um partido que aderiu ao social-reformismo pode pensar a correlação de forças como um dado estático, como um limite posto externamente à própria dinâmica da luta política.

Se a vitória de Lula só é possível se ele encarnar de modo efetivo um projeto de ruptura radical com a transição neo-republicana e de profundas reformas, não é menos verdade que sua vitória traria profunda alteração da famosa "correlação". Uma ação decisiva do governo no sentido de amplas e profundas reformas, a ampliação e radicalização do movimento popular, a ampliação do espectro de alianças poderão, em determinadas condições, modificar rapidamente uma correlação de forças que, em situações normais, evoluiria de forma lenta.

Certamente, o desenlace de um processo dessa envergadura não dependerá apenas de nossa vontade, nosso compromisso, nosso engajamento revolucionário, nossas estratégias e táticas. Depende da consciência, organização e luta populares, como também da capacidade de ação e organização das forças conservadoras.

Uma coisa, no entanto, deve estar clara na cabeça de cada petista: em qualquer hipótese, nosso projeto político e mesmo a simples garantia de um governo petista reformista dependerão das massas e de suas lutas.

Enganam-se aqueles que acreditam que autolimitando a dimensão das reformas que proporemos, restringindo o sentido e o significado que podem ter a campanha e a eleição de Lula, poderemos neutralizar a hostilidade burguesa.

O PT deve assumir suas responsabilidades e compreender que recuar diante das possibilidades que a conjuntura encerra não aumenta suas possibilidades de vitória. E, mais do que isso, tornaria uma eventual vitória apenas um caminho para assumir, em nome do sistema, a gestão da crise.

Conceber o governo do PT como de transição ao socialismo, por outro lado, é o único meio de garantir, mesmo em caso de um desdobramento não-revolucionário da conjuntura, reformas efetivamente profundas e melhorias substanciais nas condições de vida da classe trabalhadora.

Estes são problemas de estratégia e linha política que não se colocam apenas quando examinamos a hipótese da vitória de Lula. Eles estão presentes desde já, na orientação que imprimiremos à luta eleitoral.

Reforma ou Revolução

Neste contexto, a discussão acerca da orientação da campanha ganha novo sentido, bem como o programa de governo: ele é parte da política do partido para o período eleitoral, e não sua síntese. Um governo - e uma candidatura - do PT não se diferencia apenas por seu programa (tem gente do PSDB, do PDT, e mesmo do PMDB que assinaria o nosso). O que nos diferencia, mais [do] que tudo, é a maneira de implementá-lo porque o encaminhamento prático de nosso programa de governo ultrapassaria os limites da prática governamental, não se limitaria ao institucional. Nosso programa deve supor e propor a colocação dos trabalhadores em marcha.

As dificuldades, caso cheguemos lá, serão enormes. De toda parte veremos surgir restrições ao exercício do poder que nos terá sido conferido pelas urnas. Sem movimento popular, sem movimento de massas, muito pouco se poderá fazer. Por isso mesmo não basta estar disposto a cumprir o programa de governo, enquanto governo. Será necessário estimular a ampliação e radicalização do movimento em defesa das reivindicações populares, das reformas.

O PT não pode, contra seus princípios, se deixar embalar pela ilusão de que competência técnica e habilidade na política institucional permitirão enfrentar e resolver cada uma das questões que teremos pela frente. O futuro de nosso programa de governo, o futuro de nosso governo e o futuro do país dependerão decisivamente dos avanços políticos e organizativos das grandes massas trabalhadoras.

Parece fácil, mas não é. Nossa experiência em prefeituras tem mostrado que somos melhores e mais radicais no discurso que na prática. Tem mostrado que a luta institucional vai roendo o partido e sua moral e, às vezes, até mesmo desmobilizando militantes que, envolvidos na campanha eleitoral, não se encaixam na máquina governamental. Cresce o número de militantes aferrados a posições burguesas, mandonistas, prepotentes embevecidos com as migalhas de poder burguês que detêm.

Em nenhum lugar as limitações de nosso partido estão mais claras que nas administrações municipais. Durante as campanhas enchíamos a boca com "participação popular", com conselhos mirabolantes, com as massas engajadas na política e na administração. Mas até agora as prefeituras do PT, com poucas exceções, não democratizaram quase nada, não abriram nem as portas do fundo do poder para o povo. E quando algum obstinado implementa um conselho popular, de modo geral não organiza senão militantes e bases petistas. Por incrível que pareça, temos tido medo de convocar eleições para os conselhos e administrações regionais, sob o pretexto de que as forças reacionárias podem sair vitoriosas e conquistar posições que lhes permitirão boicotar a administração popular. Bela maneira de engajar as massas na luta política!

Não se trata de jogar pedra nos prefeitos que elegemos. O problema é mais grave, porque muito mais geral. Tão geral que o próprio partido não se dá conta de quanto nossas administrações têm se afastado de nossas propostas e princípios. E quando companheiros despertam para a necessidade de discutir as prefeituras, normalmente o que os preocupa é a relação destas prefeituras com o aparelho partidário.

Certamente é uma preocupação justa mas secundária. O principal problema de nossas prefeituras não está na relação com o partido mas na relação com as massas trabalhadoras, organizadas e não organizadas. O problema principal não é o da forma de participação do partido nas administrações mas o da forma de participação das massas.

Se a conquista de uma prefeitura não permite instalar o socialismo, ela favorece uma ruptura com os modos burgueses tradicionais de organizar e dirigir a vida de uma cidade. Ora, isso só é possível se o partido não se encerra no aparato burguês clássico e parte, audaciosamente, para impor mudanças nesse aparato e nas suas relações com a cidade e sua população.

Temos aqui mais uma lição da inconsistência e ineficácia do verbalismo discursivo que empolga a esquerda brasileira.

A extrema-esquerda do partido lançou a palavra de ordem dos "conselhos populares", imaginando-os como um verdadeiro núcleo de contrapoder. Como não se constitui, nem nunca se constituiu em nenhum lugar do mundo, contrapoder fora de situações revolucionárias, os "conselhos populares" do slogan se mostraram inviáveis. De seu lado, a direita partidária olhava com condescendência para as propostas esquerdistas e defendia seus "conselhos populares" justamente porque sabia que eles não existiriam nunca...

E, enrolados num falso debate acerca do caráter que deveriam ter os "conselhos populares", não avançamos um centímetro na discussão acerca do que fazer concretamente para democratizar o poder burguês... enquanto os soviets não vêm.

Consequência: nem conselhos revolucionários, nem conselhos de tipo algum, nem formas efetivas de participação e controle popular. Limitamo-nos a administrar o aparato de administração. Governamos de forma convencional.

A verdade é essa: estamos produzindo prefeituras convencionais. São administrações melhores que as anteriores, porque mais honestas, mais sérias, mais responsáveis, mais preocupadas com os pobres. Mas não estamos introduzindo nenhuma mudança estrutural, nem mesmo aquelas possíveis nos marcos do capitalismo e do poder burguês. Aliás, em âmbito municipal não se pode exigir mais que isso; mas pelo menos isso se pode exigir.

Diante de alguns comentários acerca das administrações petistas, a imprensa noticiou que nosso candidato a presidente teria dito que o PT chegou depressa demais ao poder. Nós nos perguntamos se o problema não é o inverso, se não reside no fato de que o PT chegou muito tarde ao poder. Tarde demais, porque já corroído pelo compromisso com a institucionalidade burguesa. Tarde demais, porque já mais comprometido com a sua própria construção partidária - orgânica, eleitoral etc. - que com o avanço da luta e organização populares. Tarde demais, porque já destituído da antiga combatividade, do desprendimento inicial, do espírito de rebelião e revolta que lhe marcou a origem. Tarde demais, porque já é parte de um sistema político-institucional que pretendia revolucionar.

Quando partimos, como agora, para conquistar a Presidência da República, devemos ter claro que os votos com que contamos devem-se mais à nossa coerência, firmeza e combatividade passadas que à nossa prática atual. Estamos colhendo, no plano político e eleitoral, o que semeamos pacientemente desde a criação do partido. As sementes que estamos lançando agora com certeza nos trarão uma colheita correspondente: a perda da credibilidade junto às massas, a convicção de que o PT também é um partido igual aos outros.

A revolução, uma conjuntura de crise revolucionária, é possível. E o PT deve se preparar politicamente para esta possibilidade.

Claro que essa preparação não se dá no exercício interminável de detalhar um programa socialista. Como não se dá pela repetição, três vezes ao dia, da palavra mágica. Preparar-se para a possibilidade da crise revolucionária significa elaborar uma estratégia política e uma estratégia de governo que contemplem essa possibilidade, discutir essa possibilidade e a estratégia no interior do partido (dos núcleos até a direção), definir uma política de massas que ultrapasse os limites do governo.

Essa estratégia, claro, deve contemplar, igualmente, a possibilidade (que hoje nos parece mais provável) de que a crise atual, mesmo com uma vitória de Lula, não venha desembocar numa crise revolucionária.

O PT, por seu passado, sua disposição de luta e a dinâmica social e política que expressa, não pode apenas assistir e esperar a afirmação dessa possibilidade, não pode pensar o processo eleitoral exclusivamente no âmbito dessa possibilidade. Se o fizer, estará, na verdade, tornando o que é possível, o que é provável, inevitável. Estará, assim, se transformando num partido que retirou a revolução de seu universo político-ideológico (sejam quais forem os discursos), num partido cuja prática se transformou em mais um meio e instrumento de homologação da dominação e opressão burguesa. Um partido que abandonou a luta pelo socialismo antes de travar as grandes batalhas.

Carlos Vainer é professor da UFRJ e militante do núcleo de educação do PT-RJ.

Vladimir Palmeira é deputado Federal pelo PT-RJ.

(*Este texto reotma parte do documento apresentado por um grupo de militantes do PT-RJ sob o título "Carta aos Camaradas.")