Internacional

A transição para a democracia representativa convive com a consolidação de um sistema econômico-social cujos sinais de crise tendem a acentuar cada vez mais seu caráter excludente.

A eleição de Carlos Saúl Menem em 14 de maio para a presidência do país pelo Partido Justicialista, independentemente de qualquer julgamento político em relação ao candidato e ao partido, tem um significado importante: a última vez em que um presidente eleito de acordo com as normas definidas pela Constituição de 1853 entregou o poder a um novo presidente eleito foi em 28 de outubro de 1928, quando Marcelo de Alvear empossou Hipólito Yrigoyen, candidato da União Cívica Radical.

No entanto, a relevância do fato no que se refere à estabilização do sistema político-institucional se vê obscurecida pelo contexto socioeconômico de crise que vive o país.

Embora se conheça o processo de decadência econômica que afeta a Argentina há várias décadas - a expressão "crise sem precedentes" acompanhou o discurso de posse do conjunto dos governos (institucionais ou não) que se sucederam no país nesse período -, parece opinião unânime que desta vez a expressão faz jus à situação.

Se analisarmos um pouco a história para entender o que acontece atualmente no país, notaremos que essa "crise sem precedentes" em termos de profundidade também é muito peculiar quando se trata de se pensar em saídas.

Entre 1955, ano da derrocada do segundo governo de Perón, e 1976, quando a junta militar encabeçada por Jorge Rafael Videla derruba o governo justicialista de Isabel Perón, a instabilidade política e a decadência econômica estão sempre associadas a um problema de fundo, como a disputa de grupos hegemônicos em tomo da definição de um modelo de acumulação dominante e o controle do Estado. Três projetos socioeconômicos1 se apresentam como alternativa para o país:

1) o projeto nacional-populista, representado basicamente pelo peronismo, que advoga em favor de um desenvolvimento capitalista com base nacional, com restrições ao capital estrangeiro e ao poder de manobra do setor agroexportador, favorecendo os grupos industriais nacionais por meio de estímulo e proteção do mercado interno e ampliação do consumo popular.

2) o projeto desenvolvimentista, preocupado com o fortalecimento do capitalismo, com base nos setores de infra-estrutura e bens de capital, contando com o capital estrangeiro como um dos elementos dinâmicos da economia. Este projeto teve defensores no âmbito dos partidos políticos (Movimento de Integração e Desenvolvimento, de Arturo Frondizi, eleito presidente em 1958) e dos militares, uma vez que os regimes ditatoriais até 1976 nunca questionaram o papel preponderante da indústria como alavanca do desenvolvimento econômico.

3) o projeto liberal, que basicamente faz a crítica do processo de industrialização iniciado em 1930, questionando a idéia de que a base do crescimento da economia está no desenvolvimento industrial, criticando o intervencionismo estatal e propondo a integração sem protecionismo na economia internacional. Embora planos econômicos de estabilização de orientação liberal tenham sido implementados em 1958 e 1966, nos governos de Frondizi e Onganía (militar), pode-se dizer que é a partir da ditadura militar do período 1976-1983 que esta política se coloca como orientação central nos rumos da economia.

Se a disputa pela implementação desses projetos socioeconômicos descritos comprometeu o desenvolvimento do país nas últimas décadas e tomou extremamente instável o sistema político, dada a profunda inserção destes antagonismos na sociedade argentina, podemos afirmar que ela se definiu no último período militar: o processo de internacionalização da economia (o que não significa necessariamente crescimento), tendo como fatores dinâmicos o setor agroexportador e os grandes grupos industriais e financeiros nacionais e estrangeiros, se apresenta hoje como fato indiscutível.

Nesse sentido, na atual conjuntura de crise, o modelo econômico nos seus grandes linhamentos não é o que polariza as discussões nos dois principais partidos, Radical e Justicialista, sendo o debate direcionado para questões como inflação, perdas no poder aquisitivo, recessão, dívida externa, reativação industrial etc. Portanto, o que chama a atenção e torna a situação peculiar é outro fenômeno - mesmo sem divergências irreconciliáveis entre os setores dominantes nas grandes questões que dizem respeito ao modelo de acumulação (papel do capital nacional, do capital estrangeiro, do setor industrial, do agropecuário, do Estado); sem os grandes perigos para a estabilidade do sistema existentes nos anos 70, dada a capacidade de mobilização da esquerda e do peronismo revolucionário; mesmo com a participação permanente dos empresários na definição dos rumos da política econômica no período do governo Alfonsín; coexistindo com uma CGT (Confederação Geral do Trabalho) que pouco fez para alterar uma das tendências mais claras da estabilização econômica do governo radical (a de considerar o salário a principal variável de ajuste contra a inflação); com o apoio da comunidade financeira internacional e do governo dos Estados Unidos aos diversos planos de estabilização implementados - mesmo com este conjunto de situações "favoráveis", a economia permanece estagnada e os indicadores conjunturais da crise, como inflação, deterioração salarial e desvalorização da moeda, chegam a níveis que colocam em pauta a questão da governabilidade. Quem culpar desta vez?

Embora consideremos que este impasse na situação econômica não coloca em risco a transição política, levando em conta a tradição anterior do país, é possível afirmar que a normalização institucional está resolvida com a eleição de Carlos Menem?

Neste artigo, pretendemos mostrar que a transição para a democracia representativa na Argentina convive com a consolidação de um sistema econômico-social cujos sinais de crise tendem a acentuar cada vez mais seu caráter excludente. Mesmo na situação de impasse em que se encontra a economia, a estabilidade institucional se sustenta, devido à capacidade que os partidos Radical e Justicialista detêm enquanto aglutinadores de mais de 80% do eleitorado, sem que isto signifique o afastamento em relação aos interesses dos grandes grupos dominantes, o que permite a redução da disputa política ao problema da gestão dá crise, sem entrar em discussões que coloquem em questão o próprio modelo econômico e suas bases sociais de sustentação.

Se o contexto político dos anos 70 na América Latina se caracterizou pelo advento generalizado de regimes ditatoriais, os anos 80 nos colocam, na maioria dos países do continente, frente à perspectiva da transição para a democracia representativa.

Existe certo consenso em associar o fenômeno das ditaduras militares na América Latina à necessidade de consolidação do processo de internacionalização das economias sob o impulso do capital multinacional, iniciado nos anos 50. Também existe certo consenso em afirmar que a grande tendência em favor da democracia política não expressa geralmente uma ruptura com a ordem econômica anterior.

Como entender, neste caso, a convivência continuada em países como Brasil e Argentina dos novos regimes institucionais com uma crise econômica para a qual não se vislumbram saídas a médio prazo?

Nesse sentido, uma análise da produção teórica recente, que procura estudar o fenômeno da democracia na América Latiria, nos permite verificar uma particularidade importante: o predomínio de um discurso que valoriza a estabilidade política como meta importante e até prévia a qualquer discussão em torno das questões de ordem econômica e social. Neste caso, a contradição autoritarismo-democracia aparece como dilema fundamental de experiências que abarcam desde os países do Terceiro Mundo até o Leste Europeu, levando à conclusão quase imediata de defesa da democracia política como saída inicial obrigatória.

Este é o caso do cientista político polonês Adam Przeworski ("Ama a incerteza e serás democrático", in Novos Estudos, Cebrap, 1984, SP, nº 9), que coloca a seguinte questão: "Estou convencido de que a lógica da transição para a democracia - as alternativas presentes nos diferentes estágios e as condições sob as quais a democracia é possível - pode ser analisada utilizando-se termos similares, ainda que se esteja falando da Europa ocidental do início do século, da América Latina ou da Europa oriental."

Nessa perspectiva, qual seria o "receituário ideal" de uma transição bem sucedida no atual quadro de crise?

Se considerarmos que os atuais regimes democráticos aparecem como síntese de três fatores básicos - 1) crise econômica profunda, embora maior ou menor no plano estrutural, dependendo do país; 2) crise geral da sociedade, dada a incapacidade dos regimes militares em apresentar soluções para os problemas que contemplem a totalidade do espectro social, limitando-se a impor pela força políticas excludentes; 3) crise geral do sistema político, dada a continuada destruição ou controle das diversas formas de organização e representação da pluralidade de interesses -, é possível a estabilização institucional a partir da aceitação, por parte dos atores políticos e sociais e dos setores econômicos com capacidade efetiva de intervenção, de algumas precondições:

a) a democracia política tem de ser pensada como questão particular cujo destino não depende necessariamente das condições adversas ou favoráveis nos planos econômico e social. A atenção deve estar voltada prioritariamente para o fortalecimento das formas institucionais de competição política;

b) o tratamento da crise econômica, que age como elemento desintegrador, deve se apoiar em acordos, a curto e médio prazos, entre trabalhadores, capitalistas e Estado. A consolidação de um processo de negociação dessa natureza deve responder a algumas precondições importantes: a médio prazo, a concordância, nos três setores, a respeito do modelo econômico para o qual apontam as várias estratégias; a curto prazo, o consenso em torno de medidas que distribuam "eqüitativamente" os sacrifícios necessários para superar a crise;

c) a elasticidade do sistema partidário, no sentido de facilitar a integração das forças de consenso em grandes partidos hegemônicos, que tornem menos conflitiva a passagem da reivindicação setorial para a formulação política global, isolando, dessa maneira, as forças desintegradoras à esquerda e à direita;

d) uma relação de adequação entre os grupos dominantes ao nível do modelo de acumulação e do Estado, que tenha continuidade na organização da hegemonia no plano do regime político.

Estes quatro fatores contribuem efetivamente para a estabilização da democracia política, porém, ao mesmo tempo, ficam claramente delimitados os alcances deste tipo de regime, no que se refere ao caráter das mudanças que podem ser toleradas pelo sistema. Por exemplo, o modelo de desenvolvimento capitalista associado ao capital estrangeiro não pode ser colocado em questão, pelo menos, pelas forças políticas com possibilidades de acesso ao poder. A disputa de interesses no plano econômico-social não deve extrapolar a esfera da distribuição, pois poria em risco esse modelo de democracia, cuja função é integrar, e não questionar, a existência de classes sociais com interesses contraditórios.

Isso não elimina a importância desse discurso, na medida em que ele se incorporou como elemento constitutivo das práticas políticas dos atores principais nos processos em curso, configurando-se como dado político de peso nas próprias análises relativas à transição.

No caso argentino, o governo Alfonsín, como veremos, procurou vestir o figurino da transição pactada. Os êxitos e fracassos de sua gestão, se medidos apenas pela relação entre objetivos e realizações, demarcam claramente os limites deste tipo de discurso. No entanto, se adotarmos uma perspectiva de análise que coloque em destaque os efeitos sociais da política do governo, perceberemos claramente que a democracia política nos países do Terceiro Mundo é efetivamente restrita, que o problema não se restringe ao confronto entre o discurso da "modernidade" e o do "arcaico". A teoria, na prática, é outra.

O governo Alfonsín

O governo da União Cívica Radical recebe uma pesada herança do regime militar, que limita bastante sua liberdade de ação. Nesse sentido, a passagem da oposição para o governo exige que bandeiras políticas como democracia, desenvolvimento econômico, soberania nacional, justiça social e fim da violência se transformem em ações concretas e visíveis para o conjunto da sociedade. No entanto, apesar da extrema gravidade da situação, diversos instrumentos de política econômica e negociação política favorecem a gestão da crise, garantindo a estabilidade do sistema político, embora, como veremos, não encaminhem soluções permanentes para o conjunto de problemas.

A política de acordo socioeconômico ou "pacto social" buscou administrar a evolução da conjuntura econômica no primeiro ano do governo, quando o Partido Justicialista e a CGT, de orientação peronista, se encontravam ainda sob os efeitos da derrota eleitoral de 1983. No entanto, a especificidade da estrutura ocupacional argentina, tendo em vista os efeitos da política econômica implementada pelo regime militar (desindustrialização do país, diminuição quantitativa da classe operária e crescimento do setor informal da economia), delimita os alcances dessa política.

Do total da PEA (População Economicamente Ativa), 25% são compostos de microempresários e trabalhadores por conta própria e 18%, pelos assalariados das microempresas e do serviço doméstico (dados extraídos de Hector Palomino, "La concertación social: revelamiento de los principales grupos sociales en Argentina", 1985, Cisca, mimeo). Ou seja, 43% da PEA carecem de representação orgânica nas entidades sindicais de trabalhadores e empresários que participam do pacto social, que expressa basicamente os interesses dos setores integrados da economia, com maior capacidade de reação numa conjuntura de crise. Nesse quadro, um acordo entre a CGT, as diversas entidades patronais e o governo pode facilitar a gestão da crise econômica no plano imediato, amenizando seus efeitos para os setores diretamente representados. A parcela não diretamente representada (os 43% a que nos referimos) pode ser politicamente neutralizada se os efeitos de curto prazo da política econômica acentuarem tendências recessivas - já que dificilmente conseguirão expressar seu descontentamento de maneira articulada.

A oposição da CGT peronista ao governo radical foi constante, mesmo assim, considerando a capacidade de mobilização de que dispõe, em nenhum momento questionou efetivamente a política econômica, limitando-se a organizar paralisações de protesto de repercussão apenas circunstancial. Apesar da retórica oposicionista, a opção foi geralmente pela negociação.

Por parte do governo, apesar dos ambiciosos objetivos anunciados como parte da política de pacto social (recuperação dos salários, retomada do crescimento econômico, definição de um novo modelo de desenvolvimento), na prática esta se apresentou como instrumento de controle das expectativas econômicas, comprometendo e disciplinando os setores sociais.

O Plano Austral conseguiu gerar respaldo no conjunto da população, garantindo para o governo o apoio necessário para vencer as eleições legislativas de 1985, julgar os militares responsáveis pela violação dos direitos humanos e manter sob controle a economia durante os anos de 1985 e 1986. Uma nova sucessão de "choques heterodoxos" procurou estabilizar a inflação em níveis toleráveis nos anos posteriores (ver quadro I). Analisando os ambiciosos objetivos de médio prazo anunciados nos vários programas de estabilização, como reforma do Estado, eliminação do déficit público, privatização do crescimento econômico atraindo capital estrangeiro e repatriando capitais nacionais aplicados no exterior (calculados em US$ 40 bilhões), verificamos que os resultados estão muito aquém do que foi proposto. Apelando permanentemente para o ajuste dos salários, conseguiu-se, por pequenos períodos, estabilizar a inflação.

O bipartidarismo encarnado pelo Partido Justicialista e pela União Cívica Radical, que concentram o apoio de mais de 80% do eleitorado e representam posturas centristas no plano político, atuou (e atua) como fator de estabilidade do sistema político, na medida em que as demandas dos setores econômicos (empresários e trabalhadores) encontram nesses partidos seu espaço privilegiado de expressão. Isso explica a relativa estabilidade institucional ao longo destes anos, apesar do conjunto de fatores desestabilizadores nos planos econômico e militar e da transferência do poder nos marcos da legalidade.

A iniciativa política do presidente Alfonsín, com uma imagem individual e suprapartidária de modernizador, preocupado com a reforma do Estado, e estímulo à iniciativa privada e a descentralização administrativa, somada à estabilidade inédita da equipe econômica comandada por Juan Sourrouille (quatro anos), oriunda dos meios acadêmicos, de reconhecida capacidade técnica, contribuiu para manter a expectativa em amplos setores da sociedade de que "alguma grande mudança" devia acontecer.

Olhando para trás, verificamos que nenhuma grande mudança aconteceu. Fora os constantes anúncios de reformas estruturais na economia e no Estado, o que se verifica é que o governo Alfonsín se limitou a administrar o país, atacando os sinais mais agudos da crise conforme iam se manifestando, deixando como marcas visíveis de sua gestão o funcionamento das instituições, num marco de respeito às liberdades, e o julgamento dos militares. Neste caso, a solução foi parcial.

Embora o castigo aos responsáveis pela repressão política durante o regime militar fosse uma promessa de campanha eleitoral, o governo pretendeu sempre colocar-se numa posição eqüidistante entre as reivindicações dos setores diretamente interessados - organismos de defesa dos direitos humanos e familiares de pessoas desaparecidas - e as Forças Armadas. Entre o castigo irrestrito aos culpados e a anistia, buscou fortalecer a decisão independente do poder Judiciário. As penas de prisão perpétua para a primeira junta militar, embora consideradas insuficientes pelas entidades de direitos humanos, tendiam a fortalecer a posição do governo de que a Justiça está acima das partes. No entanto, as rebeliões militares da semana santa de 1987 mostraram claramente que o presidente efetivamente não cedia às justas reivindicações de um setor da cidadania, que exigia justiça, embora se curvasse ao argumento das armas, sempre e quando empregado pelas Forças Armadas. Duas novas revoltas em 1988 parecem ser suficientes para que a anistia seja concedida. Se acrescentarmos o comportamento diferenciado do poder Executivo na repressão ao grupo de militantes de esquerda que atacou o quartel La Tablada em janeiro (rápida, eficaz, sem negociações, sem concessões) e a reação às três revoltas militares, comprovamos, finalmente, que as instituições, na gestão Radical, não funcionaram igualmente para todos.

Argentina 1989

O presidente Alfonsín consegue chegar ao final de seu mandato e transferir o cargo para o sucessor Carlos Menem, com o país imerso numa crise econômica que fugiu do controle.

A sensação de vazio de poder, com trocas permanentes de ministros, anúncio de medidas drásticas que em geral pouco ou nada interferem na evolução da crise, dada a credibilidade nula do governo, já é conhecida dos argentinos. Foi essa a sensação que acompanhou os últimos tempos do governo justicialista de Isabel Perón, só que o vazio de poder foi ocupado por uma ditadura militar.

A maioria das análises políticas relativas ao novo presidente se refere basicamente ao perfil "populista" de quem estimula um exagerado otimismo em torno de sua capacidade para reverter a crise e à pouca clareza na definição de um programa de governo.

Se isso em parte é verdade (já veremos por quê), pouco ou nada contribui para entender a situação do país neste exato momento.

Nas condições concretas da evolução da crise na Argentina, numa disputa política reduzida a duas opções partidárias, a capacidade da candidatura Menem de despertar otimismo (mesmo que sem nenhum fundamento na realidade objetiva), aparece, a curto prazo, como fator de estabilidade, ocupando o vazio de poder com uma opção de continuidade institucional, que mobiliza a maioria dos descontentes. Nessa maioria de descontentes se aglutinam desde os setores populares cada vez mais empobrecidos; os "carapintadas" de Aldo Rico e Mohamed Seineldin, que aguardam por uma anistia aos militares condenados por violação dos direitos humanos; os grandes grupos industriais e financeiros, que passam a controlar diretamente a gestão da política econômica; e o sindicalismo peronista, que passa a comandar o Ministério do Trabalho.

O chamado salariazo e a proposta de um "choque produtivo", como promessas de recuperação do poder aquisitivo do salário e do nível de emprego com a reativação da indústria e do mercado interno, mobilizam o eleitorado e contribuem para a vitória do peronismo. A isto se reduz o apelo popular da proposta justicialista. No restante, a receita é claramente ortodoxa, como demonstram as primeiras medidas implementadas pelo novo governo.

O ministro da Economia, Nestor Rapanelli, executivo do grupo empresarial Bunge y Born, tem na credibilidade para atrair investimentos um ponto de apoio fundamental, haja vista o fracasso de seus antecessores radicais. Paradoxalmente, Bunge y Born é um tradicional adversário do peronismo. (Em 1949, o então presidente Perón procurou intervir no quase monopólio da exportação de cereais sob controle do grupo. Em 1974, o Movimento Peronista Montonero seqüestrou os irmãos Jorge e Juan Born, recebendo um resgate de mais de US$ 50 milhões.) Seu plano econômico define alguns objetivos claros: o papel do Estado deverá ser reduzido a três responsabilidades - educação, saúde e defesa; o ingresso de capitais estrangeiros será incentivado; a política de preços e salários se definirá nos marcos do pacto social.

O ministro do Trabalho, Jorge Triacca, representa a ala mais conservadora do sindicalismo peronista. Seu perfil ideológico e sua trajetória são claros: foi testemunha da defesa no julgamento das juntas militares durante o governo Alfonsín; como um dos representantes dos trabalhadores no pacto social em 1985, declarou-se partidário da ideologia liberal.

O assessor do presidente para a dívida externa, Alvaro Alsogaray, é o dirigente máximo da União Democrática de Centro, partido da direita liberal, e apoiou todos os regimes militares que se instalaram no país após 1955. Durante o julgamento das Forças Armadas, declarou ser favorável à política de extermínio de opositores implementada pela ditadura, devendo se repetir cada vez que a ordem estivesse ameaçada. (Ver a este respeito Ayerbe, Luis Fernando e Pacheco, Carlos A. O Choque Econômico e a Transição Democrática: Brasil e Argentina. Editora Vértice, São Paulo, 1986.)

A opção conservadora da gestão da crise, expressa brevemente nos exemplos anteriores, se dá num marco de desagregação econômico-social tão grave e ao mesmo tempo tão vertiginoso, que parece adormecer a capacidade de reação crítica da sociedade argentina. Nunca medidas tão controversas foram aceitas com tanta facilidade em tão pouco tempo.

O salário mínimo desceu de US$ 100 para pouco mais de US$ 50 em poucos meses - o conjunto dos salários acompanha este nível de desvalorização. Diminui cada vez mais a produção industrial, acompanhada de quebras e falências de empresas. Uma mão-de-obra qualificada, percebendo níveis salariais afroasiáticos, uma indústria pouco competitiva e um governo com respaldo do movimento sindical e dos grandes grupos econômicos compõem um quadro que pode se tornar atraente para os investidores. Na atual situação, qualquer melhora é possível e visível a curto prazo, e o salariazo pode limitar-se por bastante tempo à recuperação dos níveis salariais de janeiro de 1989.

Se há um ano o debate econômico relevava questões como crescimento econômico, retomada dos investimentos, elevação do nível de emprego e de salários, atualmente uma estabilização "a la boliviana" consegue apaziguar os ânimos. Dada a dinâmica da crise nos últimos anos, resulta difícil entender uma evolução tão dramática como a dos últimos meses. Se considerarmos os efeitos políticos do aprofundamento da crise e o fortalecimento da presença no Estado dos grupos econômicos dominantes e da direita política, se acentua a desconfiança em relação às verdadeiras forças motrizes que a alimentam. Até que ponto o descontrole da economia é decorrência do fracasso de último momento de uma gestão que durante quatro anos manteve a economia "funcionando" dentro de uma determinada lógica?

Um pensamento perverso, dirão os que insistem em associar "iniciativa privada" com "modernidade" e "progresso". Basta também dar uma olhada nas preferências eleitorais dos agentes econômicos e sociais partidários da "livre iniciativa" no Brasil, para percebermos como os interesses setoriais se sobrepõem ao tão exaltado espírito público" na definição das escolhas. Foi assim também com o apoio aos regimes militares.

Com este quadro, para que ditadura?

Luis Fernando Ayerb é professor da área de História do Departamento de Economia da UNESP – campus de Araraquara.