Política

Há correntes políticas que por si mesmas se revelaram corpos estranhos no interior de nossa organização: a Convergência Socialista, a Causa Operária e o PCBR (Partido Comunista Revolucionário). Ad referendum das instâncias mais altas, a Comissão Executiva Nacional deve, a meu ver, a curto prazo, tornar pública sua exclusão de nossas fileiras. Essa medida deve ser precedida, naturalmente, do Diálogo fraterno e franco com seus dirigentes, dentro do mais alto respeito à sua condição de dirigentes revolucionários

Teoria & Debate retoma, em boa hora, o debate sobre a identidade do PT, seu caráter, seus traços originais.

Parabéns à nossa revista: é uma iniciativa excelente e extremamente oportuna. Ela abre espaços, ao mesmo tempo, para uma nova avaliação crítica, rigorosa e construtiva de nossa trajetória recente. E chama, com urgência, a reiniciar a busca das causas e raízes das flutuações graves que, nestes últimos anos, turvam ou esmaecem as características e a imagem típica do nosso partido.

Há, na verdade, nesse sentido, um longo hiato em nossa prática militante. A partir de 1982, descasamos a tarefa primordial de preservar - e enriquecer, na prática e na elaboração diárias - a qualidade nova que o PT procura trazer ao conjunto das esquerdas, antigas e recentes.

É uma ausência tanto mais estranha quanto, já ao nascer, o PT não é um partido comum - e não surge tampouco de uma conjuntura qualquer. Brota, ao contrário, num contexto diferente, em que se combinam elementos novos e originais: uma classe operária de composição majoritariamente jovem, concentrada em grandes e médias empresas, e armada de níveis novos e mais altos de consciência de classe e de experiência política; uma profunda crise dos modelos anteriores de "vanguarda", no interior dos partidos e organizações de esquerda; e um vazio de alternativas políticas, ante os problemas e aspirações da população trabalhadora. Como tela de fundo, o novo ascenso político de massas que marca o final dos anos 70 e a crise aguda do regime de ditadura militar.

Expressão natural dessa nova situação histórica, o PT desfruta, desde o nascimento, de condições privilegiadas: tem audiência ampla e crescente junto às novas correntes operárias, populares e democráticas que emergem da luta contra a ditadura militar. Ao mesmo tempo, acolhe em suas fileiras faixas sensíveis das correntes políticas revolucionárias do período anterior. São componentes nitidamente diferenciados. O PT é assim: em parte, continuidade; em parte, ruptura e inovação. Esses elementos contraditórios vão, desde o início, marcar sua trajetória.

Nada mais natural, portanto, que a acolhida calorosa que encontra - algo inédito ainda na história de nossos movimentos populares -; só comparável, meio século antes, ao crescimento impetuoso da Aliança Nacional Libertadora, teste inicial da política das frentes populares em nosso país.

Essa receptividade popular explica, em primeiro lugar, a ampliação quase vertiginosa de suas fileiras. Em maio de 1980, três meses após sua criação, o PT conta já com cerca de trinta mil filiados; em agosto de 1981, seus efetivos beiram os trezentos mil: uma torrente de adesões que o jovem partido mal tem quadros e meios para acolher e organizar.

Ela explica também, como um segundo traço de originalidade, sua larga e crescente abrangência social. O PT não se limita a suas bases operárias de partida, no ABCD paulista, na Bahia e em Minas Gerais. Em pouco tempo, desborda para as demais classes e camadas sociais exploradas e oprimidas da cidade e do campo. Em 1983, num conjunto de 23 Estados, seus filiados, distribuem-se quase harmoniosamente através do Brasil: em dez Estados (parte do Nordeste, toda a faixa do Norte), eles se concentram, em sua enorme maioria, nas áreas rurais; em onze outros (Sudeste, Centro-Oeste, extremo Sul), essa maioria já se situa nos centros urbanos, com absoluto predomínio das classes e camadas médias; nos dois Estados restantes (Santa Catarina e Sergipe), os efetivos partilham-se, igualmente, entre a cidade e a área rural. O jovem PT já não é apenas um partido de âmbito nacional. Abrange, agora, faixas amplas da intelectualidade, dos estudantes, do jornalismo e das áreas de cultura, profissionais liberais, setores pequenos e médios do comércio e da produção. É assim, por sua composição, uma entidade policlassista de ampla abrangência popular. É bem o Partido dos Trabalhadores, em sua mais larga e autêntica acepção.

Mais ainda: por circunstâncias históricas, também no plano político, ele adquire traços originais. Acolhe e incorpora remanescentes de organizações de "vanguarda" em refluxo. Atrai para suas iniciativas faixas amplas de participantes das Comunidades Eclesiais de Base. Abre ainda sua estrutura à adesão de entidades políticas de extrema-esquerda, antigas e recentes, estruturadas e atuantes, sob diferentes modelos ideológicos e de organização. O PT não nasce, portanto, senão parcialmente, à margem da crise de vanguarda que mina, nos decênios recentes, o movimento operário e popular. Sente, ao contrário, desde seu surgimento, os efeitos diretos de sua influência, através do isolamento político de suas correntes diversificadas, seus laços e modelos externos, suas marcas de origem e suas contradições.

Aparentemente complexo, o convívio do PT com as Correntes de esquerda vai ser, no entanto, relativamente fácil, numa conjuntura inicial em que as reivindicações sociais e econômicas dão a letra e o tom de suas propostas táticas, majoritariamente voltadas ainda para os problemas e aspirações de suas fontes sindicais recentes. As bandeiras políticas cingem-se, fundamentalmente, nesse primeiro período, ao fim rápido do regime de ditadura militar - e, em linhas ainda gerais, ao retorno à prática de um regime de democracia.

Mais que isso: por si mesmo o PT procura trazer a essa coexistência interna um calor solidário, sincero e exemplar. Seu núcleo dirigente guia-se, naturalmente, por princípios de confiança mútua e critérios de ética que considera inseparáveis das relações entre entidades de esquerda. O PT é um anfitrião que sabe abrir a seus hóspedes sua casa ainda em construção, sob um halo de confiança integral. Para ele, os referenciais que contam são os combates políticos recentes contra os mesmos inimigos - e por objetivos comuns.

Pensa ter, aliás, boas razões para isso: uma imensa confiança em sua identidade original, em seu perfil novo e definido de partido político, na floração e no papel de seus núcleos de base, em sua audiência junto à população; e em sua vocação democrática e socialista, fruto de suas próprias raízes sociais; e no patrimônio de inovações e de esperanças que pensa inserir nas lutas e aspirações dos trabalhadores - e, com eles, no campo amplo da esquerda em geral. Em síntese, um potencial que não é apenas seu, mas dos trabalhadores que o criaram. E que deseja fazer crescer sob o aval das forças novas da sociedade.

Não ignora, por certo, que a convivência com as correntes de esquerda está eivada de contradições. Avalia mal, talvez, seus efeitos prováveis e sua profundidade. De qualquer forma, não aceita a mínima idéia de impasse ou de ruptura. "Não admitimos atestados de ideologia", proclama Lula, em alto e bom tom, no instante mesmo de sua criação. Seu relacionamento fixa-se numa única condição: o respeito à sua identidade própria, a seu caráter, a seus critérios de organização e funcionamento. Antes e acima de tudo, confia na superação progressiva das contradições existentes, através do confronto franco e aberto de opiniões. Sonha, inclusive, com a contribuição positiva que o debate político interno poderá trazer à correção dos vazios e indefinições que carrega consigo. Sabe que tem ainda lacunas profundas, particularmente na definição de sua tática, sua estratégia, sua visão dos caminhos e da imagem do socialismo.

Aliás, entre as fontes potenciais de seu enriquecimento, pensa poder contar com três componentes bem definidos. Antes de tudo, dá um lugar especial aos novos ciclos de lutas populares que se prenunciam e aos níveis altos de consciência de classe e de experiência política própria que deve trazer aos trabalhadores. Conta também com a profunda fidelidade e força de criação de suas lideranças, caldeadas nas lutas sindicais e políticas, e sobretudo com sua disponibilidade ampla à assimilação dos novos ensinamentos e experiências em curso. Enfim, pensa poder esperar das correntes políticas de esquerda a contribuição significativa de sua experiência anterior. O PT encara pois as contradições internas como fatores de avanço e enriquecimento. Conhece também a condição-chave para a conquista dos resultados: a revelação clara e o debate fraterno das divergências mais graves; a busca de suas raízes; e o encaminhamento em comum de suas soluções. Em síntese: a predisposição clara a um relacionamento fácil e leal.

É esse, aliás, o sentido da primeira iniciativa de sua Comissão Nacional Provisória, um ano apenas após sua fundação. Ela se expressa através de uma Resolução Política Extraordinária: O PT e Suas Relações com as Demais Correntes Políticas de Esquerda. As iniciativas seguintes terão o mesmo sentido: em 1982, o balanço das advertências e sugestões mais recentes; em 1983, a mobilização de quadros e militantes identificados com raízes e projetos originais do PT, sob o signo da Articulação 113; em 1987, o debate sobre a "regulamentação de tendências", um dos temas centrais do V Encontro Nacional.

A acuidade do problema pode ser esboçada em poucos traços. Nas duas primeiras instâncias, o PT guarda intacta e de corpo inteiro sua imagem de origem. Nas duas últimas – sob a pressão da articulação crescente das correntes de esquerda e sob sua exigência de mais espaços de liberdade de ação -, ele recua de sua imagem global para a figura de uma nova corrente política interna. É um reconhecimento tácito ou um primeiro gesto de recuo, ainda que parcial, à condição de uma frente política de massas. No fundo, é o recurso, talvez em condições extremas, a uma sigla auxiliar: o PT original raiz, corpo e alma de nossa organização – desfigura-se parcialmente sob a imagem de uma nova corrente política. A partir de agora, a defesa de sua identidade original e da autenticidade de seus princípios passa a ser, aos olhos das demais correntes, um privilégio concedido à nova "corrente" Articulação – ou uma discriminação arbitrária. Em certa medida, o anfitrião confunde-se com seus hóspedes.

O V Encontro Nacional, por sua vez, vai procurar clarificar (e corrigir) a dubiedade dessa situação. Suas inovações constituem, ao meu ver, uma espécie de faca de dois gumes.

Alguns de seus mais ardentes propugnadores já reconheciam, previamente, que a "regulamentação" projetada avalizara a existência no PT de elementos sensíveis de uma frente política de massas. O objetivo central, entretanto, lembravam eles, era e continuaria a ser "a integração sempre mais profunda de nosso partido com suas características originais". (Vladimir Pomar e José Dirceu, in Algumas Considerações sobre as Tendências Organizadas no PT.)

A Resolução Política Extraordinária de fevereiro de 1981 já via, na época, bem mais longe. Sem alarde, buscava as fontes potenciais de futuros atritos e contradições. Antes de tudo, mostrava que as dificuldades de relacionamento "têm como centro as condições de nascimento e construção que fazem do PT, irreversivelmente, um partido legal, ligado prioritariamente à prática de massas, e, ainda, um partido profundamente democrático - mas apoiado nos critérios de centralização necessários à garantia de uma prática política homogênea e unificada".

Daí decorrem três modelos deformantes de relacionamento no interior de nossa organização. O primeiro é a aceitação apenas formal do PT como partido político - e a luta em seu interior para transformá-lo numa frente política de massas. O segundo é já a aceitação de sua continuidade e a de seu desenvolvimento: não à base de suas características de origem, mas através de sua transformação num "núcleo de vanguarda marxista-leninista" da classe operária. O terceiro é a prática efetiva do direito de tendência, equiparado ao direito de fração.

Essas leituras diferenciadas da imagem e do lugar do PT no conjunto da esquerda revelam, com clareza meridiana, que, em relação à abertura leal e fraterna do PT, "a recíproca não é verdadeira", na consciência e na prática concretas das demais correntes.

Surpreendente e chocante, essa realidade explica-se entretanto com relativa facilidade. Na verdade, essas divergências e esses atritos, seus apêndices necessários, não nascem da noite para o dia. Nosso descaso pelo estudo das realidades que nos rodeiam está, em boa medida, na origem dessas surpresas.

Antes de tudo porque, em seus critérios de convivência interna, o PT não tem ainda o conhecimento necessário das condições históricas em que inicia sua construção e sua prática política e social. Não avalia, em conseqüência, o que foram e o que são e, sobretudo, o que pensam dele e de seu destino - as pequenas correntes de esquerda que acolhe em sua estrutura e em sua prática legal. Suas análises e propostas guardam, por isso mesmo, certo cunho de unilateralidade. Procura somar as correntes de esquerda à sua perspectiva de partido político revolucionário de novo tipo - não percebe ainda, entretanto, que propõe, simplesmente, uma soma de parcelas qualitativamente desiguais.

E é compreensível que seja assim. O PT é, em suma, o "caçula" na família da esquerda.

Convive com correntes que, já antes dele, possuíam sua identidade própria, sua história, sua leitura das realidades, seus planos de desdobramento e, em parte, relações e compromissos internacionais. E guardam, hoje ainda, as concepções típicas dos modelos de "vanguardas" dos decênios recentes: o antigo modelo de partido, o apego às velhas fórmulas de análise da sociedade e do processo da revolução, os elementos-chave da tática, da estratégia, dos caminhos de conquista do poder. E sentem-se, como os PCs da velha-guarda, portadoras de verdades e soluções definitivas.

Não admira, pois, que não queiram assimilar o novo que o PT traz à esquerda, na nova situação histórica de hoje. Passam, ao contrário, a encará-lo como uma entidade secundária e subalterna - já que, efetivamente, não dispõe de uma tática e uma estratégia definidas, uma concepção estruturada de partido, uma doutrina social. Ou, então, como simples organização política de frente, colocada sob a hegemonia de posições reformistas, aprisionada nos marcos da ideologia burguesa.

Em síntese, um relacionamento aético, expresso em sua prática desrespeitosa, desleal e utilitarista, no interior de nossa organização. Não se trata apenas da degradação gratuita da imagem de nosso partido. Trata-se de sua transformação em instrumento de manobras, a curto e a médio prazos. Para algumas delas, "o PT é uma simples legenda, eventual ou de aluguel". Em essência, mera iniciativa de alcance tático. Para outras, "vale a pena investir em sua construção, esperando impor ao conjunto sua hegemonia e seu modelo de partido revolucionário". Outras, ainda, integram-se nele "para desintegrá-lo". ("As Organizações de Esquerda e o PT". Editorial do jornal Em Tempo, agosto de 1983.)

As correntes de esquerda têm organização, orientação política e disciplina próprias. Para elas, não pode haver centralismo numa organização institucionalizada e frentista – como é o PT. Tentar impô-lo seria nada mais nada menos que dar prova de anticomunismo.

É álibi gratuito às infrações diretas à centralização política à prática de desrespeito aberto à disciplina e a nossos estatutos. E, assim, à prática dos fatos consumados. Em resumo, o jogo sinuoso das duas lealdades - de conteúdo e alcance desiguais: uma, quase absoluta, em relação às suas "vanguardas" de origem; outra, reduzida e problemática, em relação ao PT.

Os anos 80 viriam mostrar uma nova fonte de divergências. Já não apenas o caráter do PT como partido político, legal e de massas, democrático e democraticamente centralizado, mas também sua tática política geral. Mais particularmente, a recusa ou as ressalvas abertas das "correntes" a seu entrosamento com as normas institucionais.

É o período de longa caravana de consultas eleitorais - 1982, 1985, 1986, 1988 e, agora, 1989 e 1990. Elas abrem espaços amplos à experiência política dos trabalhadores e à expressão autônoma da vontade popular.

A proposta do PT traz a marca definida de suas raízes no movimento social: um programa de liberdades e reformas democráticas, a criação de todo um sistema de alianças e, sob a visão da participação crescente dos trabalhadores, a conquista de um governo democrático e popular. "A democracia é um dos problemas fundamentais de nossa sociedade", proclamava, já em fevereiro de 1989, seu primeiro manifesto à nação. Sob a transição conservadora e a Nova República, ela é, agora, o problema-chave primordial na vida política do país.

Aqui, a fonte de nova faixa de atritos com as correntes de esquerda. Antes de tudo, por sua dificuldade em distinguir os objetivos táticos, a curto e a médio prazos, dos objetivos estratégicos finais.

Não por acaso, todos apostam, de imediato, na "desestabilização" do regime vigente. A explicação é simples: para algumas delas, "já estão dadas as condições gerais para a criação de um Brasil socialista". Para outras, "amadurece, rapidamente, um situação revolucionária". E a velha propensão de nossa esquerda, antiga e recente, à confusão fácil entre os desejos e as realidades.

A debilidade teórica de nossos militantes e dirigentes, o conhecimento reduzido de nossa sociedade em movimento, as de nossas visões de tática e estratégia e da sociedade socialista que propomos, deixam lugar, hoje ainda, a essas influências. Na verdade, nossas definições políticas mais recentes continuam a confundir, em maior ou menor medida, alternativa de governo e alternativa de poder; reformas democráticas e reformas socialistas; reforma e revolução. A propaganda de um "governo de trabalhadores" sugeria, ainda há pouco, por sua composição, uma quase ante-sale do socialismo. Na bandeira justa dos "Conselhos Populares" confundem-se, freqüentemente, instrumentos de participação e consulta e órgãos permanentes de poder. A dinâmica de agitação e propaganda superpõe-se, à visão clara das conjunturas e à dinâmica da prática política de massas.

Não admira, assim, que só em abril de 1984 - pela primeira vez - o III Encontro Nacional se defina por uma "alternativa de governo". Um primeiro passo de aproximação com a realidade concreta do país. Mesmo assim, seria formal e inviável, porque limitada à perspectiva isolada de apenas "um governo do PT". O "purismo ideológico" e o messianismo, herdados da esquerda tradicional, dificultam ainda o avanço para a política de frentes, inclusive no tocante às alianças fundamentais.

Não é de estranhar, assim, que, paralelamente, o princípio de liberdade de ação e a opção pelos fatos consumados gerem toda uma cadeia de agressões à identidade do PT e a suas linhas de orientação.

De início, ainda em 1983, um documento oficial da Convergência Socialista - ou de parte de seu organismo nacional de direção - degrada e insulta a imagem do PT e de seus dirigentes. E a defesa arrogante da tática do "entrismo". Logo depois, as vitórias pioneiras nas eleições municipais de Fortaleza e Diadema abrem espaços a práticas políticas deformadas. Pouco antes, o assalto ao banco da Bahia, em Salvador, praticado por participantes acobertados sob a filiação ao PT choca a opinião pública, turva a credibilidade do partido, engolfado, na época, em dura batalha eleitoral.

A recusa à centralização política não se detém, entretanto, nessa primeira série de episódios. Ela terá novas expressões mais recentemente, sobretudo no curso da campanha presidencial. Bastaria lembrar a bomba que, na agência do Bradesco, em Recife, num momento de greves reivindicativas, explode nas mãos de um funcionário do banco do Brasil, filiado ao PT. Em agosto último, organismos dirigentes da Causa Operária, em documentos oficiais, insultam o PT, sua política e sua direção: uma atitude que, segundo a Secretaria Geral Nacional de nosso partido, "já se insere, de corpo inteiro, no quadro de um antagonismo frontal". A mesma direção da Causa Operária recusa-se a participar da campanha eleitoral - a menos que o PT se defina sobre a tese estratégica da "ditadura do proletariado" (Jânio de Freitas, "Ameaça Eleitoral", in Folha de S. Paulo, 30 de dezembro de 1989). Após 17 de dezembro último, a ala sindical da Convergência Socialista, em São José dos Campos, tenta convocar uma greve geral, prevista para o mês de janeiro de 1990.

Para parte sensível da opinião pública, nosso PT aparece, assim, como um partido bifronte, com duas faces distintas em que ações isoladas de certas correntes de esquerda, guiadas por sua visão de soluções radicais a curto prazo, convivem, contraditoriamente, com a imagem original e os compromissos públicos assumidos em nome do conjunto da organização.

Esta dualidade está também presente no plano interno. Não apenas no justo e necessário confronto de opiniões mas sobretudo na disputa encarniçada de nossos candidatos às funções majoritárias, na recusa à política de alianças ou no empenho de limitação drástica de seu alcance; em traços radicalizantes, na definição das funções e dos programas de governo; na subestimação da abrangência das novas responsabilidades, uma vez conquistadas certas administrações municipais.

Na campanha eleitoral recente, o PT pagaria um preço infinitamente mais alto pela prática isolada e insensata de correntes de esquerda. Os adversários encontraram, na prática agitacionista das soluções radicais a curto prazo, terreno fértil e largamente adubado para suas calúnias e chantagens. Não por acaso, metade do eleitorado nacional, abrangendo amplas faixas da população pobre e oprimida, além de setores amplos das classes e camadas médias, mostrou-se ainda acessível a um anticomunismo primário - recolhido, amoralmente, no lixo da ditadura militar e do Estado Novo.

O PT e a esquerda em seu conjunto foram o alvo direto dessa chantagem. Estão chamados, agora, não só a buscar suas raízes como também a definir os fatores que os tornaram possíveis. Alguns observadores políticos adiantam conclusões que soam como advertências: "A Lula (isto é, ao PT) cabe arrumar sua retaguarda". É a alusão "aos grupos radicais que se infiltraram no partido, desde que ele se apresentou como momentânea opção legal pelo socialismo" (Jornal do Brasil, 12/12/89, "Coluna do Castelo"). Há, ainda, "milhares de associações de pequenos e médios empresários temerosos de uma esquerdização do país". Outro analista político lembra que o novo presidente "foi eleito por minoria; 60% dos eleitores não lhe deram o voto. E, dos que deram, boa parte o fez não porque nele depositasse suas esperanças mas por temor do outro candidato". "Há, portanto, no eleitorado, um enorme potencial de oposição" (nota da Secretaria Geral à Comissão Executiva Nacional, agosto de 1989).

Não obstante, o PT sai das eleições presidenciais recentes imensamente fortalecido. Engasta-se, mais que nunca, na estima e no respeito das faixas mais esclarecidas de nosso povo. Pela alegria contagiante e abrangência cultural de sua campanha, a justeza das linhas gerais de seu programa, a postura ética de seu candidato, sua imagem e credibilidade são hoje infinitamente mais altas. Por seu acesso ao segundo turno, ganha também a condição de centro do amplo sistema de alianças que, pela primeira vez em nossa história, se estabelece no campo da esquerda. Em síntese, um Crédito de confiança, um alto patrimônio político que é absolutamente necessário preservar e enriquecer. Não deve - e não pode - mais, em conseqüência, apresentar a imagem de uma organização dúbia, de duas faces. Mais que nunca, é tempo de o PT retomar sua identidade original e, sem flancos abertos, assegurar uma prática política respaldada na unidade de pensamento e de ação. E de voltar a ser o PT de uma só base - a cara com que nasceu nas batalhas sindicais e políticas -, enriquecida pela experiência acumulada junto às lutas do povo, nos dez anos recentes.

Já não cabem, pois, o conformismo e o compasso de espera com que vimos acalentando um processo de integração ainda hoje sem ritmos e sem prazos. O primeiro passo está, já há tempos, no pensamento de uma boa maioria de nossos militantes. Há correntes políticas que por si mesmas se revelaram corpos estranhos no interior de nossa organização: a Convergência Socialista, a Causa Operária, o PCBR. Ad referendum das instâncias mais altas, a Comissão Executiva Nacional deve, a meu ver, a curto prazo, tornar pública sua exclusão de nossas fileiras. Essa medida deve ser precedida, naturalmente, do diálogo fraterno e franco com seus dirigentes: dentro do mais alto respeito à sua condição de militantes revolucionários, integrados de corpo e alma com suas opções preferenciais. E dentro, ao mesmo tempo, da fidelidade de nosso PT à sua identidade e ao caráter que lhe vem de sua origem e de seu processo de formação.

Não seria tampouco um isolamento absoluto. Podemos ainda atuar juntos sob uma justa e efetiva política de frente, já agora em organizações distintas e em níveis de relacionamento obviamente iguais.

No interior de nosso PT, a consulta aos militantes seria encaminhada, posterior e normalmente, por nosso Diretório Nacional. Essas iniciativas privarão, sem dúvida, o PT de contingentes sensíveis de militantes e quadros políticos de direção. Particularmente, em Estados e municípios onde essas correntes participam da atividade de nosso partido desde sua criação. Aos militantes concernidos nessas faixas de nossa estrutura caberá, num debate fraterno de idéias, a definição final de suas opções.

Sem dúvida, no interior do PT, outras correntes mantêm, ainda hoje, reservas ou resistências abertas à prática da democracia centralizada. Nossos núcleos dirigentes devem estabelecer com elas um diálogo particular e permanente, corrigindo todo um longo hiato anterior. Nestes últimos oito anos, só nos lembramos delas (e de nossas contradições) quando nos vimos diante de um fato consumado, quase sempre chocante - e, às vezes, brutal.

Ao mesmo tempo, o PT necessita iniciar, sem delongas, uma viragem efetiva na elaboração de seu perfil político e ideológico. "Cajamar" poderia bem iniciar um ciclo de estudos, seminários e debates sobre os temas que marcam nossas mais graves indefinições: uma tarefa de extrema urgência que cabe, igualmente, dentro dos limites correspondentes a cada núcleo de base e organismo de direção. E a nossa Fundação Wilson Pinheiro, cujo lugar - uma "cadeira cativa" - espera, há tempos, por ela, neste rico campo de criação.

A aproximação à realidade de nosso país; a clarificação das características originais que o PT recebe de suas origens; a definição precisa da imagem de um governo democrático e popular nosso objetivo tático de hoje; e, em particular, as resoluções entre democracia e socialismo são o desafio imediato. E nossas tarefas primordiais comuns.

Apolonio de Carvalho, 78 anos, foi dirigentes do PCB e fundador do PCBr, do qual se afastou em 1979. Combateu na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa. Teve cassada a sua patente de tenente do Exército Brasileiro em 1936. Agora, após a anistia aos militares, aguarda decisão judicial para se reintegrar ao Exército como general da reserva.