Mundo do Trabalho

"Se não conseguirmos incorporar os camponeses na luta sindical, que é uma luta econômica, uma luta imediata, imagine incorporá-los na luta estratégica pelo socialismo!" Entrevista com João Pedro Stédile

Como surgiu o MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra? Qual sua relação com a CUT, com o PT e com a Igreja Católica? Estas questões, assim como as diferentes formas de assistência no campo e o papel de modernas técnicas agrícolas e gerenciais para os assentamentos, são debatidas nesta entrevista.

João Pedro Stédile, membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores e um dos principais representantes do MST, é um gaúcho meio camponês de Lagoa Vermelha que só conseguiu estudar porque sua mãe mandou-o para um seminário. Terminado o ginásio, voltou para sua terra natal, onde trabalhou na serraria de um tio até completar o curso secundário. Vendo que não tinha futuro, partiu para Porto Alegre, onde era obrigado a trabalhar à noite para pagar seus estudos de economia. Fez estágio e trabalhou como técnico da Secretaria da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul. Desde 1978 assessorou a CPT e, juntamente com outros companheiros, começou a organizar o MST, hoje implantado e atuando em todo o território nacional.

João Pedro, alguns dizem que o MST surgiu do movimento sindical; outros, que surgiu independentemente do movimento sindical. Afinal de contas, de onde veio o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra?
Na nossa avaliação, ele nasceu da premissa de que a luta pela terra tem de ser de massa e da conjugação de vários fatores. Primeiro, do ponto de vista econômico: na década de 70 houve um processo de intensa modernização do campo, com o avanço sobretudo da mecanização nas regiões Sul e Sudeste, da monocultura da soja, a expansão da lavoura da cana. Esse processo aglutinou um monte de gente que antes trabalhava de parceiro e arrendatário no café, no algodão, nas regiões Sul e Sudeste, e que de uma hora para outra foi substituída pela máquina e expulsa para Rondônia, Mato Grosso etc.

Em que ano foi isso?
Começo de 1970, com o boom da soja. O segundo foi o fator político em 1976/1978, quando começa todo aquele processo de revolta popular no meio urbano contra a ditadura, como as grandes greves no ABC, que levou o camponês a perder o medo. (O medo é uma marca muito grande da repressão no interior do país.) O terceiro fator foi a influência da Igreja Católica, tanto do ponto de vista social quanto ideológico. A criação da CPT - Comissão Pastoral da Terra, em 1975, provocou uma mudança ideológica no trabalho pastoral da Igreja. Antes, a Igreja conservadora dizia: "O sofrimento é natural". A CPT veio com outro discurso: "Nós queremos terra aqui na Terra, porque no céu nós já temos garantido" e "Deus só ajuda quem se organiza". E o quarto fator foi o surgimento das oposições sindicais rurais e alguns núcleos do sindicalismo combativo.

A bandeira "a luta pela terra" estava presente nesses sindicatos?
Não, não estava presente. A maioria dos sindicatos de pequenos agricultores até hoje não abraça a bandeira de luta pela terra.

Tem algum marco histórico que caracterize o surgimento do MST?
Há dois marcos. Um, mais interno, foi o congresso de fundação do movimento, em 1985. A primeira fase do movimento, de 1978 até 1985, foi de articular as lutas localizadas pela terra: as primeiras ocupações no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, em 1980; a resistência dos colonos desalojados pela Itaipu; a ocupação da fazenda Primavera, em São Paulo; as ocupações no Mato Grosso do Sul e em Goiás. Em 1984 fizemos um encontro no Paraná, com lideranças de massa dessas várias ocupações. Cerca de 80% dos presentes nessa reunião já eram sindicalistas, também no sentido de ocupar cargos dentro do sindicato. Então foi uma decisão de dentro do próprio movimento sindical. Mas um movimento que se articulava independentemente da institucionalidade do sindicato. A partir dessa reunião fundamos o movimento. Convocamos um congresso com toda a militância que estava lutando por terra no Brasil inteiro. Em janeiro de 1985, em Curitiba, vieram 1.500 delegados de todo o país e aí, nesse congresso, fundamos o Movimento dos Sem-Terra.

Um marco.
Só que ainda um marco orgânico, com certa força política. Mas foi um marco histórico importante porque rompemos a primeira barreira ideológica que havia na cabeça dos camponeses e em certos setores da Igreja que ainda relutavam. Até o congresso de 1985, ou seja, de 1979 a 1985, a bandeira principal era "Terra para quem nela trabalha", defendida pela CPT e assimilada pelos camponeses. No congresso de 1985, a grande bandeira lançada e que pegou a massa foi "Ocupação é a única solução". Agora, para fora, para a sociedade em geral, eu acho que o segundo marco foi no final de 1985 e 1986, quando adotamos uma política diferenciada em relação à Nova República. Diferenciada da Contag e de todo o sindicalismo reformista influenciado pelo PCB, pelo PC do B e por outras forças de esquerda, que passaram a acreditar que o Plano Nacional de Reforma Agrária ia ser implementado e que o movimento camponês deveria ter uma atitude colaboracionista com o governo. Em troca - todo mundo hoje sabe -, o governo da Nova República financiou todo o congresso da Contag, em 1985.

Qual foi a tática do movimento em 1985 e 1986, em relação à Nova República?
Nós adotamos a tática do "pau e prosa". Não nos recusamos a discutir com a Nova República, inclusive havia até laços de amizade com os companheiros da ABRA, que estavam no Ministério. O Zé Gomes, como presidente do INCRA, convidou o movimento para colaborar no plano. Nós não nos recusamos. Ficamos, dez, doze dias lá em Brasília (uma comissão da direção do movimento), contribuindo para o plano. Demos um monte de sugestões dentro do plano. Agora, nós continuamos acreditando que a Reforma Agrária só sairia do papel se fosse fruto da nossa mobilização popular, do movimento de massas. E continuamos articulando as bases.

Em outubro de 1985, Sarney baixa um decreto e puxa o tapete da Contag. Como foi isso?
Sarney baixou um decreto em 10 de outubro que inviabilizou o plano. Aí o Zé Gomes se demitiu, e a Contag ficou com o pincel na mão. Nesse mês de outubro, nós fizemos mais de trinta ocupações em todo o país, mobilizamos em torno de 20 mil famílias; fizemos grandes ocupações e todas elas foram vitoriosas. Foi um marco para a opinião pública, porque nós nos projetamos como movimento de massas.

Até o congresso de janeiro de 1985, não havia articulação desse nível?
Não, só aquele encontro anterior; o movimento era localizado.

E esse movimento localizado era espontâneo ou tinha algum estímulo político? Havia algum elemento comum além da luta pela terra?
Em o caráter massivo das lutas. Não eram lutas de resistência como a tradição no Norte, onde meia dúzia de posseiros podia ficar resistindo com espingardas. O que aparecia como luta pela terra no Brasil entre 1968 e 1978 era a resistência dos posseiros do Norte. No Sul, eram lutas massivas e de ofensiva, para ocupar alguma terra. Ou no caso do grande movimento que saiu no Paraná contra Itaipu, contra a indenização, porque se lutava por terra e não pelo dinheiro. O grande acampamento nas margens do lago mobilizou umas 12 mil famílias, que tinham sido desalojadas pela Itaipu. Nenhuma dessas lutas era espontânea. A maioria era dirigida por militantes de várias origens da Igreja, desse trabalho da CPT. Havia também pessoas que já tinham alguma militância na esquerda ou outras experiências sindicais. Mas ninguém se conhecia. Não havia nenhuma articulação, nem sindical, nem política. Era tudo na seguinte base: "Ouvi dizer que lá no Mato Grosso do Sul saiu uma ocupação. Quem será que está organizando?". Quem ajudou a costurar isso aí foi a CPT, a grande responsável pelo nascimento do Movimento dos Sem Terra, porque ela conhecia tudo e todos.

E como são os vínculos com a CPT?
Houve muitas discussões internas dentro da CPT. Havia propostas de se fazer um movimento em que os agentes pastorais tivessem mais influência. Mas prevaleceu a idéia de que tinha de ser um movimento camponês, autônomo, sem qualquer vínculo com a Igreja.

Como vocês conseguiram se expandir por outras regiões que não tinham as características do Sul-Sudeste?
Primeiro, o movimento tornou-se uma referência de luta pela terra. Então, os militantes de outros Estados, que lutavam pela terra, mas que ainda estavam isolados, começaram a nos procurar. Outro fator foi o próprio movimento sindical, principalmente a partir da fundação da CUT, em 1983.

Havia diferenças por região?
Há muitas diferenças entre Sul-Sudeste e Norte-Nordeste. A mesma metodologia que nós usamos no Sul e que produziu o movimento de massas, para o Nordeste não serviu. Nós ficamos dois, três anos patinando no Nordeste. No Sul-Sudeste, onde a maioria dos militantes tinha origem na Igreja, íamos para as comunidades com o livrinho "Como Conquistar a Terra". Lá nas comunidades rurais, fazíamos reunião de dez, doze famílias. Havia um trabalho prévio de organização de base. Levamos essa mesma metodologia para o Nordeste e não funcionou. Os estados de Piauí, Bahia e Sergipe, que estavam articulados com o movimento desde 1985, não conseguiram fazer nenhuma ocupação em 1985, 1986, 1987. Aí nós fizemos uma avaliação metodológica. Por que nós não conseguimos fazer movimento de massa no Nordeste, onde está a maior pobreza e é maior o número de camponeses sem terra? Descobrimos que a tradição do camponês nordestino não é essa de fazer reuniãozinha de família, até por causa da dificuldade de leitura. Concluímos que o próprio trabalho de preparação das ocupações tinha de ser um trabalho de massas e não de base. Então, nós mudamos a metodologia. Fomos para as comunidades rurais do Nordeste e reunimos todo o povaréu da comunidade e a discussão se dava em grandes assembléias. Nós só continuamos com o trabalho de base no sentido da logística de ocupação e dos preparativos concretos. E aí é que começou a dar certo. Na Bahia, a partir de 1988 fizemos grandes ocupações, com três, 4 mil pessoas; hoje estamos em todos os estados do Nordeste.

Qual a repercussão dessa mudança?
Com a mudança de metodologia o movimento passou a sofrer certas críticas de alguns setores da Igreja, sobretudo dos mais atrasados, que interpretaram essa nossa metodologia de trabalho de massas como pura agitação, que não conscientizava o povo, que era aventureirismo. Mas, devagarinho, acho que estamos superando também essas críticas, na medida em que essas ocupações estão dando certo.

Esse movimento, pela sua própria dinâmica, tem uma agilidade maior do que o movimento sindical. Houve alguns problemas no seu relacionamento com a CUT?
É difícil generalizar. O Movimento dos Sem-Terra sempre teve como princípio a construção de uma central combativa. O Congresso dos Sem-Terra aprovou sete princípios do movimento. O sexto princípio se refere aos esforços para organizar uma central sindical combativa de massas além de que nós apoiaríamos a construção de um partido político da classe trabalhadora.

Essa central e esse partido não eram necessariamente a CUT e o PT?
Eram. Só que nós não podíamos dizer explicitamente, porque o movimento de massas estava na fase de articular quem estava lutando por terra mas sem uma identidade ideológica com a militância. Tinha muita gente do PMDB; tinha gente que podia ter simpatias pela CGT; tinha gente do PDT. E havia também correntes dentro da Igreja, fortes na época, dizendo que o Movimento dos Sem Terra tem que ser autônomo e independente da Igreja, do partido e do sindicato. Nós enfrentamos essa discussão com setores da Igreja até o IV Encontro dos Sem Terra, em 1987. Nesse encontro ficou explícito: o Movimento dos Sem Terra é para construir a CUT mesmo. E nós nos identificamos com o PT enquanto militantes - foram inclusive desfraldadas as bandeiras da CUT e do PT. Mas tem muita gente que ideologicamente ainda não entende as diferenciações de instâncias e de métodos de trabalho. Nós temos de discutir com a CUT e o PT as linhas políticas. Se nós estamos construindo o mesmo projeto político, esse projeto deve ser discutido. Agora os detalhes devem ser discutidos em cada instância e na sua organicidade própria. Nós compreendemos que o nosso papel no movimento de massas é ajudar a construir a CUT e o PT, o que não significa necessariamente um atrelamento orgânico que, isso sim, prejudicaria a luta de massas; a longo prazo, prejudicaria o próprio partido.

Como você responde à crítica de que o Movimento dos Sem Terra estaria querendo criar a sua central camponesa e, na hora que lhe interessa, ele se aproxima da CUT. Quando não interessa, diz que é independente e autônomo.
Nós temos muitos problemas e contradições internas quando a nossa militância interpreta que a CUT e o PT só servem de apoio quando acontece uma ocupação. Nós trabalhamos com camponês que tem um monte de debilidades. É muito difícil construir um quadro, um militante, no meio camponês. Do lado da CUT e do PT, eu também acho que existem muitas debilidades. Só que aí não é da militância, é debilidade das direções. Por falta de desenvolvimento político e muitas vezes por falta de honestidade política. Envolve ciumeiras. A luta dos sem-terra ou a ocupação da terra está aparecendo mais nos jornais do que a CUT; então o presidente da CUT daquele estado fica com ciúme porque a central, teoricamente, é uma instância superior ao movimento - o que nós reconhecemos.

Como resolver esses problemas?
Quando o PT conseguir maior organicidade e maior identidade ideológica, ele vai poder contribuir mais com a luta pela Reforma Agrária. Existem posições políticas dentro do PT que afirmam abertamente que a luta pela terra só vai criar a pequena burguesia no campo. Então, se existe ainda essa posição política dentro do partido, qual é o nível de confiança ideológica que se cria no relacionamento? Nenhum, não é? Chegam ao cúmulo de insinuar que o movimento não apóia a CUT. Nós nos recusamos a aceitar essa crítica. Nós nos sentimos parte da construção da CUT e estamos dentro dessa central sindical, construindo esse projeto sindical.

A CUT hoje contempla as propostas e bandeiras dos sem-terra?
Contempla. As linhas políticas tiradas pela CUT no último congresso são política e ideologicamente iguais às do nosso último Plano Nacional. Diferem só nos detalhamentos. Então, não existem contradições político-ideológicas.

A CUT é uma central sindical que envolve trabalhadores no campo e na cidade. Na cidade, tem uma diversidade muito grande. No campo, acredito que essa diversidade seja maior. É possível manter-se uma central única com essa abrangência?
Não só é possível como necessário. É a grande contribuição que o movimento sindical brasileiro está dando à América Latina, construindo um movimento sindical cada vez mais unitário, mais amplo, sem perder a combatividade.