Internacional

Pela primeira vez, desde a instauração do stalinismo, a liberdade e a democracia passam a tomar o lado das massas e do socialismo. Uma revolução política - pacífica, quase sempre, mas autêntica - ganha a cena nos países socialistas contra a burocracia estatal e partidária. Em contrapartida, importantes líderes das reformas de abertura política declaram sem titubear: "Vamos restaurar o capitalismo". Entre as incertezas e as contradições, há razões para entusiasmo e otimismo dos revolucionários com relação à virada no Leste europeu.

 

À primeira vista, uma grande contradição caracteriza os acontecimentos tumultuosos que estão ocorrendo na Europa oriental e na URSS. De um lado, há mobilizações de massa sem precedentes na República Democrática Alemã, na Tchecoslováquia, na URSS. De outro, a burguesia internacional exulta: "É o fim do império soviético, a falência do comunismo; o capitalismo ganhou contra o socialismo". O primeiro-ministro polonês Mozowiecki e, infelizmente, também Lech Walesa acrescentam: "Nós vamos restaurar o capitalismo na Polônia". Podemos então supor que milhões de pessoas, na maioria trabalhadores e trabalhadoras, se mobilizam pela vitória da "democracia ocidental" ou do capitalismo na Europa oriental?

A contradição se resolve entretanto partindo de uma constatação objetiva: os países da Europa do Leste, a URSS, a República Popular da China, estão sendo golpeados hoje por uma crise de sistema extremamente profunda, que vem de longe. Essa crise é ao mesmo tempo social, econômica, política, ideológica e moral. Pode ser resumida pela fórmula: a ditadura burocrática perdeu toda legitimidade aos olhos das massas e inclusive aos olhos de boa parte dos membros dos PCs no poder. A partir daí, ela provoca reações, mobilizações e até explosões revolucionárias por parte das massas, para obterem uma mudança radical de regime político. Provoca paralelamente reações por parte da burocracia reinante (a Nomenklatura), a fim de manter no essencial seu poder e seus privilégios por meio das mais diversas reformas - algumas implicam concessões importantes à pequena e média burguesia autóctone e ao grande capital internacional - na esperança de conseguir créditos importantes.

Entre esses dois movimentos, há uma contradição crescente que acabará por se tornar explosiva. Ou as massas se impõem, isto é, um novo poder popular, democrático, deve nascer graças à vitória de uma revolução política; ou a burocracia consolida momentaneamente seu poder sobre a base de um regime político reformado e de estruturas sócio-econômicas em lenta decomposição, o que poderia levar a muito longo prazo a um risco de restauração do capitalismo.

As correlações de forças sociais e a dinâmica política fundamental diferem de país para país. Na medida em que é possível formular um prognóstico, a primeira variante é a mais provável na República Democrática Alemã, na URSS e na Tchecoslováquia a longo prazo (a curto, o movimento de massas pode sofrer um fracasso, como foi o caso na Polônia, em dezembro de 1981, com o golpe de Estado do general Jaruzelski). A segunda variante tem mais possibilidades na Hungria e na Polônia, mas isso está longe de ser já irreversível.

Por toda parte, haverá uma forte resistência operária a vencer para eliminar o "direito ao trabalho" e a previdência social garantidos, as principais "conquistas da Revolução de Outubro", que subsistem em todos esses países. As batalhas decisivas estão à nossa frente, não atrás de nós, quaisquer que sejam as aparências e as fanfarronadas dos turiferários pró-capitalistas.

Um início de revolução na RDA e na Tchecoslováquia

Na República Democrática Alemã e na Tchecoslováquia assistimos atualmente a uma mobilização de massa sem precedentes na história da Europa desde a Revolução espanhola de 1936-1937, ou mesmo desde a Revolução russa de 1917. Os números são eloqüentes. Apenas nas jornadas de 4, 5 e 6 de novembro de 1989, dois milhões de pessoas desceram às ruas na República Democrática Alemã (das quais, perto de um milhão em Berlim Oriental, em 4 de novembro - a, maior manifestação operária da história da Alemanha). O número equivalente, levando em conta o tamanho da população, seria sete milhões de manifestantes na França, na Itália ou na Grã-Bretanha, e cinco milhões na Espanha (ou mais de quinze milhões no Brasil). Nunca se viu tal número de manifestantes em três dias, em qualquer destes países.

Em Leipzig, a capital industrial da República Democrática Alemã, durante oito semanas consecutivas, em cada Segunda-feira, entre duzentas e trezentas mil pessoas desceram às ruas. É toda a classe operária dessa cidade de meio milhão de habitantes que se manifesta a cada segunda-feira por oito semanas consecutivas. Nesse ponto, a quantidade se transforma, evidentemente, em qualidade.

Mas a qualidade se manifesta também se fizermos abstração do número de participantes nos cortejos. Ela explode na extraordinária espontaneidade reivindicativa das massas. Na manifestação de Berlim de 4 de novembro, pudermos contar até sete mil cartazes e faixas diferentes, todos fabricados pelos próprios manifestantes, com poucas exceções. Em Praga, uma coisa análoga ocorreu em 21 e 27 de novembro. O espírito ao mesmo tempo sarcástico e humorístico, cético e cheio de esperança, insolente e brincalhão, antinacionalista, antimilitarista - na Prússia! - e, freqüentemente, internacionalista nos aquecia o coração. Eis a primeira geração de alemães e alemãs totalmente antiautoritária e antiburocrática. Rosa Luxemburgo ficaria feliz se visse esses manifestantes.

O espírito geral em antistalinista e pró socialista. As multidões gritavam sempre: "Ficamos aqui!" - alusão aos refugiados na República Federal da Alemanha. "Nós somos o povo. Nós somos o Estado. Nós somos o poder."

Os temas concretos foram das liberdades democráticas. "Eleições livres. Liberdade de imprensa. Liberdade de circulação. Legalização dos partidos de oposição e de sindicatos independentes. Fim do papel dirigente garantido pela Constituição ao PC. Demissão do governo. Demissão do bureau político e do comitê central do SED (Partido Socialista Unificado, o PC da República Democrática Alemã). Pôr a polícia política na produção. Revelar a corrupção dos dirigentes."

Com uma rapidez extraordinária, nunca vista no curso de qualquer revolução, as massas da República Democrática Alemã puderam obter ganho de causa para suas reivindicações principais. Nem um dia se passa, há um mês, sem uma nova vitória. As principais são: a queda de Honecker; a demissão do governo; a queda do muro de Berlim; a demissão de três bureaux políticos sucessivos e depois a do comitê central, inclusive a do triste Krenz, que tinha substituído Honecker; a realização de um congresso extraordinário do SED no meio de dezembro (recusado faz quinze dias); eleições livres em maio de 1990; desnudamento dos privilégios e da corrupção da cúpula da Nomenklatura e início de seu castigo.

Na Tchecoslováquia, os acontecimentos, estimulados pelo exemplo da República Democrática Alemã, se precipitaram a partir do meio de novembro e avançaram com uma rapidez ainda mais impressionante que na Alemanha do Leste. As manifestações de estudantes se amplificaram no espaço de alguns dias de dez mil a várias centenas de milhares de pessoas. Um chamado da oposição a uma greve geral em todo país levou a debates apaixonados nas empresas e, depois, ao sucesso total da greve, na segunda-feira, 27 de novembro. Perto de um milhão de pessoas desceram às ruas de Praga. Os operários tchecoslovacos, aliás, organizaram-se melhor que os da República Democrática Alemã. A Nomenklatura cedeu, eliminando os "normalizadores" mais odiados. Mas conserva mais trunfos de poder que na República Democrática Alemã. Uma repressão do tipo da de Jaruzelski não pode ser totalmente excluída a curto prazo. Mas levaria a uma reação popular (e internacional) absolutamente explosiva.

"É apenas um começo; continuemos a luta"

Em muitos aspectos, a explosão revolucionária na República Democrática Alemã e na Tchecoslováquia pode ser caracterizada como uma combinação de maio de 1968 francês e da Primavera de Praga. Para os que gostam das referências literárias, podemos considerar o espírito combinado de Gavroche e do bom soldado Schwejk.

O caráter massivo e deliberadamente não-violento dessas revoluções, excepcionais pela correlação de forças sociais ultrafavoráveis, chama a atenção de todos os observadores. A conclusão teórica imediata que se impõe a partir dessas revoluções em curso é que a burocracia não é uma classe dominante, nem uma classe "capitalista de Estado", nem uma "nova classe". Ela não tem nenhuma base social minimamente coerente. Seu poder parece desmoronar como um castelo de cartas. Na proporção de mil contra um, ou até de cinco mil contra um, não se precisa de nenhuma violência.

Entretanto, é preciso evitar toda euforia, todo otimismo excessivo. A amplitude das mobilizações populares e sua força de choque irresistível têm por que nos fazer perder o fôlego. São aliás um ensinamento para as massas e os socialistas de todos os países industrializados e semi-industrializados.

Mas ao mesmo tempo, essas magníficas explosões revolucionárias não se situam à véspera de uma vitória decisiva. Preferimos falar de um início de revolução. O famoso slogan de maio de 1968 - "É apenas o começo; continuemos a luta" - se aplica certamente também na República Democrática Alemã e na Tchecoslováquia, embora com um potencial de vitória superior ao da França de 1968.

É que na República Democrática Alemã e na Tchecoslováquia as massa têm o tempo a seu favor - por dois anos? três anos? quem sabe? -, pela ausência de forças de repressão prontas a barrar rapidamente o movimento. Devido a todas as mudanças na situação mundial que se produziram nos últimos vinte anos, a revolução política na República Democrática Alemã e na Tchecoslováquia é a primeira revolução moderna que não está confrontada nem ameaçada por uma intervenção armada contra-revolucionária imediata. Bush e Gorbatchev deram a impressão em Malta de reestabelecer uma espécie de "condomínio" sobre a Europa central. Mas foi apenas para a galeria e a propaganda. Nem um nem outro têm os meios políticos de conter os trabalhadores alemães-orientais e tchecoslovacos. Nem o Exército soviético, nem o Exército americano, nem o Bundeswehr (Exército alemão) estão prontos neste momento a desempenhar o papel de gendarme na Europa central, mesmo se forem assustados por uma descrição de pretensas "ameaças de caos, de anarquia e de desestabilização".

As massas da República Democrática Alemã e da Tchecoslováquia dispõem então de tempo para que seu movimento revolucionário amadureça e reúna as condições da vitória; precisam muito disso. Seu movimento sofre de três fraquezas que poderão ser fatais.

Em primeiro lugar, carecem ainda de auto-organização e, em função dessa fraqueza, de objetivos claros de poder (embora, segundo as últimas notícias, começam a se formar comitês de greve e um comitê central de greve se reúne na Tchecoslováquia). O objetivo de eleições livres para uma instituição de tipo parlamentar é inteiramente correto. Merece o apoio de todo socialista revolucionário que não esteja cego pelo dogmatismo sectário. Esse objetivo tem o apoio de 99% da população. É normal após décadas de ditadura despótica.

Mas um Parlamento eleito a cada quatro anos e deliberando sem controle popular não é um substituto para o poder popular. Pode ser recuperado por frações reformistas da Nomenklatura, governando em coalisão com componentes moderados da oposição. Se órgãos de controle e de exercício de poder direto das massas não se juntarem a essa instituição, as massas poderão ter seu dinamismo gasto e correm o risco de ficarem decepcionadas. Quando o movimento de massas entrar em declínio, a Nomenklatura poderia golpear para obter uma revanche temporária.

O que se passou numa série de grandes cidades soviéticas durante a primeira sessão do Congresso de Deputados do Povo indica o caminho a seguir. Todos os dias, milhares de eleitores e eleitoras se reuniam em assembléias públicas, para exigir que seu deputado (ou deputada) prestasse contas de suas intervenções e de seus votos no Parlamento. No fim desse caminho, estão a revogabilidade dos eleitos segundo a vontade dos eleitores e eleitoras, o direito de veto dos comitês de base (comitês de cidadãos) - especialmente com relação a ameaças ao meio ambiente e a decisões contrárias aos interesses dos trabalhadores das empresas. No fim desse caminho, está o referendo de iniciativa popular que permite à massa dos cidadãos e cidadãs decidir por si mesma as grandes questões políticas.

O segundo problema é a deterioração econômica. Na República Democrática Alemã ela pode ser provocada em parte pelas próprias conquistas das massas. A liberdade de viajar ao estrangeiro provocará a hemorragia de divisas e uma forte pressão em favor de um marco alemão-oriental conversível em marco alemão-ocidental. A necessidade de melhorar o abastecimento da população em bens de consumo de alta qualidade terá um efeito análogo. O capital alemão-ocidental e a CEE - Comunidade Econômica Européia aproveitarão para exigir concessões em troca de ajudas e de créditos de toda espécie.

A população resistirá sem dúvida ao início dessa pressão. Ela não tem nenhum interesse em pagar o preço de uma política de austeridade pelos ganhos políticos que acaba de obter. Resistirá mais ainda contra uma política que faria da República Democrática Alemã em relação à República Federal da Alemanha o que a Coréia do Sul foi por muito tempo do Japão: um país de montagem industrial, exportando a partir de baixos salários e congelando-os. E isso com maior razão porque as riquezas naturais correm o risco de ser progressivamente vendidas a baixo preço em favor do capital alemão-ocidental e de outros países da CEE, com a ajuda de uma moeda com o curso fortemente especulativo e subavaliada.

Mas se a decepção política e o cansaço tomarem conta, se as esperanças de uma recuperação econômica graças a um regime de autogestão articulado e de um planejamento socialista-democrático forem frustradas, a tentação de ver na absorção da República Democrática Alemã pela República Federal da Alemanha e pela CEE um mal menor com chances de elevação do nível de vida poderá se impor. Esse risco seria maior ainda pelo fato de que uma fração - a mais tecnocrática mas também a mais corrompida da Nomenklatura - se engajaria resolutamente nesse caminho, com o apoio de uma parte moderada dos políticos da oposição.

Esses dois riscos se encadeiam a um terceiro. Para fazer face a adversários hábeis e dotados de grandes recursos - a ala Modrow da burocracia, muito flexível e hábil para manobrar; a ala liberal da burguesia alemã-ocidental, apoiada pela direita social-democrata e dispondo de enormes recursos financeiros e industriais -, é preciso uma direção política muito experiente, muito audaciosa, capaz de unificar as massas tanto em relação à defesa de seus interesses imediatos quanto ao objetivo da conquista do poder. Tal direção não existe no momento; criá-la é a tarefa principal do próximo período.