Em fins da década de 80, é urbano o Brasil que, depois de trinta anos, elegeu diretamente seu primeiro presidente.
Se em 1950 apenas 36% da população do país morava em cidades, em 1990 essa proporção chegará a 75%. Essa população urbana não está apenas concentrada nas grandes metrópoles, mas se espalha através de uma vasta rede de centros urbanos de todos os tamanhos, que cobre hoje quase toda a extensão do país.
O movimento de conquista do território brasileiro pelo modelo urbano-industrial é, sem dúvida, um dos grandes responsáveis por essa configuração. Se em 50/60 se acenava com a criação de um mercado unificado através de um projeto de penetração no interior do País (que teve nas construção de Brasília sua ponta de lança), em fins de 80 isso é uma realidade. O país é unificado fisicamente (através das estradas, da circulação de mercadorias e, sobretudo, da mídia, de sofisticados meios de comunicação).
Nestas décadas de urbanização acelerada, embora tenham crescido cidades de todos os tamanhos, o ritmo de crescimento mais intenso se deu nos centros urbanos de cinqüenta a cem mil habitantes e não nas metrópoles. O exemplo de São Paulo é ilustrativo desse movimento. O eixo de expansão da indústria paulista se deslocou da capital para a região metropolitana e, dali, para as cidades médias do interior do Estado. A explosão urbana de Campinas ou São José dos Campos é efeito imediato desse processo.
Por outro lado, transformações ocorridas na agricultura foram também responsáveis pelo crescimento acelerado de cidades pequenas e médias. Na região Sul, por exemplo (oeste do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e norte do Paraná), a concentração da propriedade, a mecanização e o predomínio da produção de grãos para exportação induziram fortes fluxos de migração para as cidades das redondezas ou para as regiões Centro-Oeste e Norte - a chamada frente de expansão. Nesta, ao longo de grandes rodovias se concentra a população em áreas de mineração, em torno de pólos exportadores e junto de grandes obras de infra-estrutura. Marabá, Altamira, Santarém, Vilhena, Ji Paraná mostram que agora a fronteira também é urbana e se distribui ao longo de uma rede de cidades.
Nessa trilha se produziu uma espécie de população errante pelo país e um rastro alarmante de devastação ecológica e miséria urbana.
Em 1980, dos 120 milhões de brasileiros que responderam ao censo, trinta milhões se encontravam fora de seu lugar de origem. A migração continuou, portanto, sendo um fenômeno vivo e determinante do crescimento urbano, mas seu desenho não corresponde mais à tradicional corrente do Nordeste e regiões pobres do Sudeste para o Sul, especialmente para o eixo São Paulo-Rio. São Paulo (município) não cresce mais por migração mas por crescimento vegetativo. A seca nordestina do início dos anos 80 expulsou muita gente para as cidades do próprio litoral do Nordeste; assim como as mudanças nas regiões de trabalho na agricultura têm fixado trabalhadores rurais na periferia das cidades do interior.
Por outro lado, as décadas de crescimento urbano acelerado correspondem - até o início dos anos 80 - a um ciclo de crescimento econômico e expansão do emprego no setor formal: na indústria de transformação, no setor de transportes, nos ramos de produção de energia, na construção civil e telecomunicações. Foram décadas também de modernização e ampliação de mercados de consumo e, portanto, de geração de novos empregos no setor terciário. Assim, uma grande população trabalhadora se constituiu nas cidades.
Estes movimentos - de crescimento econômico, expansão urbana e unificação do mercado - foram de tal maneira acompanhados por um processo de concentração de renda que hoje não há paralelo possível entre os níveis de miséria urbana e os de emprego, isto é, fazem parte hoje da pobreza urbana trabalhadores ou desempregados, migrantes ou nativos, vendedores ambulantes ou operários industriais.
Essa rede urbana multicentrada e moderna, marcada pela miséria da concentração de renda, sob que política urbana se produziu?
O quadro da rede brasileira de cidades reflete claramente o projeto urbano da ditadura militar. O conceito-chave desse projeto é o da integração nacional: completar a ocupação e unificação do país, sob uma territorialidade capitalista. Para isso, grandes projetos de ligação rodoviária (Transamazônica; Santarém - Cuiabá; Transpantaneira; Porto Velho - Manaus) pretenderam penetrar no centro e chegar às fronteiras do país. Ao mesmo tempo, pólos econômicos foram criados (como a exploração do minério de Carajás ou o pólo petroquímico baiano de Camaçari e o complexo siderúrgico de Vitória) e investiu-se pesado em infra-estrutura (hidrelétricas, pontes, portos, que são exatamente os setores de emprego formal que mais cresceram no país no período de 60-80).
Esse investimento se deu basicamente através da centralização de recursos em nível federal e da internacionalização da economia (por meio da associação com capital estrangeiro ou do endividamento externo). O modelo se completou com a concentração de renda: mantendo-se baixos os níveis salariais, não dividindo "o bolo".
Tudo isso produziu a rede diversificada de centros urbanos no país. Ao mesmo tempo significou a produção no quadro de cada cidade, de uma espécie de "cidade paralela" - precária, clandestina, ilegal, infra-equipada - são as favelas e periferias do país.
A precariedade e a clandestinidade de vasta porção do território urbano não são privilégios das grandes metrópoles. Elas estão em toda parte, abrigando os metalúrgicos do ABC, os caboclos da Zona Franca de Manaus ou até os bóias-frias que trabalham sazonalmente, cortando a cana para abastecer os motores do país de álcool.
Esses assentamentos precários, marginais, da cidade não correspondem portanto a uma transitoriedade, desajuste ou marginalidade de seus moradores. São ilegais porque estão fora do mercado imobiliário formal e desobedecem às leis que regulam e normatizam o uso do solo urbano; são precários porque excluídos dos grandes benefícios do urbano moderno. Por outro lado, sua clandestinidade delimita uma situação permanente de oposição/confronto com a cidade legal, que muitas vezes pode se articular com outras formas de oposição às regras do jogo, como as lutas do movimento sindical, produzindo alianças desestabilizadoras. A presença da periferia na cidade representou a contradição da urbanização modernizadora.
Para compreender melhor o fenômeno do ponto de vista da política urbana é preciso analisar em que consistiu a intervenção do Estado em nível intra-urbano no período.
Em primeiro lugar, os governos da ditadura militar realizaram uma espécie de "operação desmonte" do poder e autonomia locais. Toda possibilidade de intervenção municipal na cidade foi limitada pela centralização de recursos e poder em nível federal, ao mesmo tempo que se estruturava todo um sistema centralizado e tecnocrático de trato com o urbano.
A viabilização dos recursos federais para os investimentos urbanos se deu basicamente através da criação do Banco Nacional da Habitação. Com o Sistema Financeiro de Habitação e o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo considerável volume de recursos foi concentrado e utilizado para financiar esse projeto - o que ocorreu a partir da centralização da poupança voluntária (cadernetas de poupança) e compulsória (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) do país.
No entanto, a intermediação obrigatória dos agentes financeiros (sociedades de crédito imobiliário e bancos privados) drenou boa parte dos rendimentos dos sistemas para os agentes financeiros envolvidos. Por outro lado, pela natureza da forma de captação dos recursos, mesmo os financiamentos em prazos mais longos e com taxas de juros inferiores às praticadas pelo mercado privado eram ainda proibitivos para a parcela da população de mais baixa renda (de zero a cinco salários mínimos mensais), em que se concentrava a maior parte do déficit habitacional. Assim, de provedor de habitação, o BNH acabou se tornando financiador da promoção imobiliária, que produzia para o mercado formal da construção de renda média e alta, com alto subsídio estatal.
Além desse setor, os municípios e Estados também se tornaram os "clientes" do banco, com a obtenção de financiamentos para a produção de infra-estrutura urbana, sobretudo nas áreas de saneamento e sistema viário.
Essa política teve como efeito encarecer o custo da terra urbana, incentivando a especulação imobiliária e produzindo cada vez mais a ocupação de uma parte da cidade - como as favelas - totalmente à margem do mercado. Ao mesmo tempo, foram esses recursos que pagam as empreiteiras que construíram os grandes projetos, financiaram a infra-estrutura, construíram as Ipanemas e Barras o as parcelas "modernas" de rede urbana do país.
No nível do discurso, a política urbana passava pela retórica do planejamento urbano, que seria capaz de levar a cabo o projeto de integração modernizadora, dando conta de enfrentar a contradição representada pela ilegalidade que esta produzia. O conceito-chave desse planejamento no período autoritário é de "desenvolvimento integrado", que constituiu palavra de ordem para o planejamento municipal. Foi nessa época que se produziram os Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado, obrigatórios para a obtenção de recursos federais para investimentos urbanos, cada vez mais inacessíveis para as administrações locais, na medida em que se processava a centralização política e financeira do país.
Durante esse período, com o esvaziamento do Legislativo e a desarticulação da sociedade civil, o planejamento foi cada vez mais se tecnificando e isolando, enquadrado e limitado pela visão centralizada e tecnocrática que dominava o sistema de planejamento e a gestão do país como um todo. O isolamento do planejamento e a sua separação da esfera da gestão provocaram uma espécie de discurso esquizofrênico nas administrações - de um lado, os planos reiteravam os padrões, modelos e diretrizes de uma cidade racionalmente produzida; de outro, o destino da cidade ia sendo negociado, dia-a-dia, com os interesses econômicos, locais e corporativos através de instrumentos como cooptação, corrupção, lobby ou outras formas de pressão utilizadas pelos que conseguiam ter acesso à mesa centralizada de decisões.
O produto dessa intervenção esquizofrênica é o quadro que apresentamos no início: cidades informatizadas, conectadas nos circuitos internacionais de consumo, se ligam à rede de cidades do planeta. Essa cidade globalizada penetrou em todos os cantos, sobretudo com a multiplicação das imagens das TVs. Complexas e modernas, são nossas cidades um desastre do ponto de vista ecológico e social: a ocupação predatória do território foi responsável pelo quadro precário do espaço construído - hoje está tudo poluído, erodindo, desbarrancando e inundando ao menor sinal de chuva.
A precariedade ecológica atinge a cidade como um todo, porém assume forma mais trágica nas favelas e periferias.
Até meados da década de 70, boa parte dos trabalhadores urbanos autoconstruiu sua casa através do acesso ao lote popular, muitas vezes clandestino. Ao se transferir para um barraco no lote que pagaria em prestações mensais durante anos, se livraria do aluguel. Ao levantar um segundo cômodo para alugar e assim poder ir construindo a casa, oferecia uma alternativa de moradia a outro trabalhador, que ainda não possuía um lote. Assim, ao longo do anos 60-70, foi se gerando uma periferia autoconstruída e sem ultra-estrutura.
Esse padrão se expandiu até o final dos anos 70, quando o "milagre brasileiro" entra em crise, o projeto do governo militar é questionado e se inicia a transição democrática. Do ponto de vista econômico, as curvas de crescimento que se mantiveram ao longo da década de 70 começam a estagnar, assim como despontam os primeiros sinais de aumento da taxa de desemprego e dos índices de inflação. A partir da crise econômica internacional e da política recessiva adotada pelo governo, os salários vão perdendo cada vez mais seu poder de compra, o que é reforçado (na lógica da receita do FMI) pela contenção do crédito.
O impacto da crise sobre o urbano se manifestou através do esgotamento do padrão periférico de crescimento. Tal esgotamento se explica, por um lado, pela diminuição relativa da oferta de lotes populares decorrente de diminuição de loteamentos clandestinos em função de legislações mais restritivas e da própria inelasticidade dessa oferta, à medida que aumentava a distância entre a periferia e as zonas concentradoras de emprego. Por outro lado, a crise é diretamente decorrente da recessão e diminuição do poder de compra dos salários em conjunturas altamente inflacionárias, o que reduz a capacidade de comprometimento do trabalhador com a poupança inicial e prestações do lote.
Tudo isso aumentou consideravelmente a demanda pelas outras formas de habitação popular: a favela e os cômodos de aluguel. Apenas para citar o exemplo de São Paulo, em 1973, 1% da população do município habitava em favelas (14.650 barracos); em 1980, o número de barracos aumentaria para 71.259, para atingir 150.497 em 1987 (o número de favelados cresceu 1039% e a população, 59% no período).
O esgotamento do padrão periférico está também relacionado à crise de financiamento da construção que ocorreu com a falência do modelo do SFH, que, alicerçado no princípio de correção monetária, entrou em colapso com a recessão e alta inflacionária. Diminuiriam seus recursos (com os saques de poupança e FGTS), os agentes financeiros começariam a quebrar, pressões para a renegociação da dívida de municípios, Estados e mutuários começariam a ocorrer e, assim, o sistema se imobilizaria.
Nesse momento, com a crise econômica e o questionamento da ordem política institucional do país, a questão urbana se politizaria, entrando em cena na disputa pelo espaço atores invisíveis na política urbana até então.
A politização do urbano remonta à própria constituição de um território popular. Durante os anos de expansão das periferias, em cada bairro novo precário que se formava, micromovimentos reivindicatórios se organizavam para conseguir água, luz ou extensão de linha de ônibus para o local. O interlocutor desses movimentos foi, desde sempre, o poder público, de quem se esperava obter as melhorias desejadas. Toda uma rede de intermediações políticas se constituiria a partir daí, marcando o renascimento do clientelismo e populismo como forma de relação da sociedade civil com seus representantes, quando começava a se dar a abertura democrática. Sob essa perspectiva, bens e serviços urbanos se transformam em estratégicas moedas de barganha, capazes de assegurar votos ou determinar esferas de controle político.
Essa politização significou que a intervenção do poder público na cidade passou a ser pautada também - dependendo evidentemente do arco de alianças que sustentava cada administração - no atendimento às reivindicações formuladas pelos movimentos sociais, como resposta às pressões "da base".
É importante ressaltar que a politização da questão urbana no nível da gestão não implicou politização do planejamento. Na verdade os grandes embates na política urbana na década de 80 se deram em questões imediatas e particulares, respondendo a interesses locais e corporativos. Os princípios e pressupostos gerais do planejamento municipal não se deixaram contaminar por esses embates, até porque a sofisticação dos métodos e instrumentos de planejamento dos anos 70 se deu sobre uma concepção de cidade e de cidadania recorrente. Esta concepção remonta ao final do século XIX, momento que marca a passagem da cidade escravocrata para a cidade do trabalho assalariado e da indústria.
Cidade e Cidadania
Na cidade do trabalho assalariado, o trabalho é livre, mas a terra é mercadoria cuja única forma de apropriação é o contrato monetário de compra e venda. Assim, a terra é previamente dividida em lotes metricamente mensuráveis. Por outro lado, sob o império de produção e circulação de mercadorias, o espaço público - notadamente a rua - é capturado pela circulação, perdendo seu caráter de espaço da vida social. O contraponto desse processo é a separação entre a casa e a rua, que, a partir da tirania da intimidade burguesa, passam a ser dois termos em oposição. A forma loteamento, a contraposição casa/rua e a rua como domínio exclusivo do tráfego - elementos tão determinantes na estruturação da cidade - têm sua origem nessa forma particular e historicamente datada de apropriação do espaço.