Política

O enigma petista em letra de fôrma

Delfim Netto acha que o PT é o último partido comunista do mundo. Prestes fala que o PT é um partido burguês progressista. Para a historiografia petista, a coisa está ruça: que Partido é esse?

O Partido dos Trabalhadores sempre teve mais dúvidas do que certezas. Provavelmente, nunca houve um partido que se perguntasse tanto sobre seus objetivos, suas correntes internas, sua estratégia, seu revolucionarismo. Numa era de incertezas, o PT assumiu de público que está à cata de respostas.

A literatura tem refletido essa busca. Há centenas de artigos, teses o opúsculos sobre o PT. Só neste ano publicou-se quase uma dezena de livros acerca do partido. Quatro se destacam.

Trabalho e Política - As Origens do Partido dos Trabalhadores, de Isabel Ribeiro de Oliveira (Editora Vozes, 144 páginas), é um estudo sobre as origens sindicais do PT. A autora estuda a evolução/ politização do pensamento dos dirigentes do novo sindicalismo, de seu surgimento até a fundação do partido. Para tanto, Isabel adota uma postura abertamente crítica ao “paradigma marxista", optando por uma versão da fenomenologia. O texto apresenta diversas contribuições originais, mas é excessivamente marcado pelo academicismo, que não poupa o leitor de citações em inglês e francês.

PT - A Formação de um Partido: 1979/1982, de Rachel Meneguello (Editora Paz e Terra, 228 páginas), traça em linha gerais o surgimento do partido, que a autora classifica como uma "novidade no sistema político brasileiro". O estudo está dividido em duas partes: a primeira analisa o PT sob o ponto de vista político organizacional; a segunda parte enfoca sua participação nas eleições gerais de 1982, em São Paulo. Um posfácio analisa a trajetória posterior do partido, até as eleições de 1988.

Pra que PT, de Moacir Gadotti e Otaviano Pereira (Cortez Editora, 370 páginas), é uma tentativa de apresentar o partido àqueles que não o conhecem, a partir de uma edição comentada de seus documentos oficiais ou para debate, o que acaba fazendo do livro uma obra para iniciados que tenham paciência de acompanhar a evolução do pensamento partidário através de suas resoluções.

Estrelas e Borboletas, de Cláudio Gurgel (Editora Papagaio, 149 páginas), é sem dúvida o melhor livro da safra. Nele, o autor discute o PT de ontem e de hoje, com os olhos postos no futuro. Como ele mesmo diz: "Origens e questões de um partido a caminho do poder".

Um balanço geral do que tem sido publicado mostra que a historiografia petista ainda está tateando. Questões como as origens do partido; sua composição social, regional e política; o traçado fundamental de sua história e de suas perspectivas ainda não encontraram um tratamento adequado.

Uma das questões não resolvidas é quanto de novidade e de continuidade existe no PT. Um passar de olhos sobre o partido, seus textos, sua estrutura organizativa e seus dirigentes, mostra que há mais continuidade do que a maioria dos autores pensa.

É claro que o PT é diferente da esquerda que o precedeu. Ele não existiria se o desenvolvimento econômico pós-64 não tivesse criado uma nova classe trabalhadora, diferente daquela que serviu de base ao PTB e ao PCB.

De um lado, o Partido dos Trabalhadores é fruto da politização do novo sindicalismo, dos movimentos populares ligados à Igreja progressista e da luta democrática contra a ditadura militar. Mas o PT representa também continuidade da batalha travada já há um século em nosso país por anarquistas, socialistas e comunistas. Continuidade que se dá tanto no terreno político – somos um partido socialista – quanto no organizativo, em que reproduzimos o caráter militante daqueles movimentos.

Ocorre que esse fio de continuidade é obscurecido pela ausência de um estudo mais detalhado acerca da esquerda brasileira no período iniciado com a derrota da luta armada e encerrado com o surgimento do Partido dos Trabalhadores. Essa pesquisa mostraria, por exemplo, que o debate sobre o "governo democrático-popular" não começou hoje.

A relação do partido com a Igreja progressista é outro tema trabalhado de maneira insuficiente pela historiografia petista (alguém já disse que nossa relação com a Igreja se Assemelha a um complexo de Édipo mal resolvido ...).

Outro tema tratado de maneira secundária é o papel que jogaram na construção do Partido aqueles companheiros que vieram do PMDB, especialmente após a campanha das diretas. Grande parte de nossos quadros intermediários, com destaque para o interior de diversos Estados do Brasil, iniciaram sua militância política nesse partido.

Enquanto não se fizer uma pesquisa sobre a composição social e regional do Partido dos Trabalhadores, será muito difícil a tarefa do historiador. Hoje, nem as Secretarias de Organização do PT possuem tais informações. Somos um partido de trabalhadores. Mas que tipo de trabalhador predomina em nossas fileiras? O operário urbano? O pequeno proprietário? O profissional liberal? O assalariado não operário? Quais desses setores têm maior peso nas direções partidárias? Que reflexos possui a composição social do partido na sua linha política?

Escrever sobre o PT pressupõe recuperar a história de suas tendências integrantes, especialmente as chamadas "organizações".

Elas produziram dezenas de "teses" sobre o partido, além de todo um debate interno, que cabe à historiografia petista recuperar. Sem esquecer que, em algumas regiões, os militantes do partido não se alinham a nenhuma de suas "tendências" mas sim em torno de algum dirigente local "carismático".

Diante da pouca informação sobre o surgimento do partido em outros Estados, os estudiosos acabam focando as suas análises em São Paulo e no movimento sindical urbano metalúrgico. Esse "são-paulocentrismo" acaba nos impedindo de entender as diferenças regionais existentes no PT.

Falta, nos livros citados no início deste artigo, uma cronologia comentada e didática da história do partido, o que facilitaria a vida dos leitores não militantes ou simplesmente não familiarizados com o PT.

Ocorre que nem todos esses livros foram escritos para quem constrói a história do partido. Alguns deles tiveram origem em teses acadêmicas, como é o caso dos trabalhos de Isabel Ribeiro de Oliveira e Rachel Meneguello.

É preciso também lembrar que entre os autores há petistas cuja ligação orgânica com o partido é fluida, como é o caso de Moacir Gadotti. Por conta disso, foram cometidos vários equívocos, como dizer que o PT se baseia numa forte estrutura de núcleos; ou então, dizer que "nenhuma (sic) candidatura do partido, já em sua primeira campanha, mesmo para vereança no menor dos municípios, foi escolhida por questão de prestígio pessoal, capacidade de retórica etc.".

Naquelas passagens em que os autores buscam reconstruir nossa trajetória, em geral tomam como referência quase única o desempenho eleitoral do petismo. Ocorre que esses resultados só fazem sentido quando cruzados com o acúmulo que o partido conseguiu nos diversos movimentos sociais. É curioso perceber também que a historiografia petista ainda não incorporou em suas análises os estudos recentemente publicados sobre os movimentos populares, limitando-se em geral ao sindicalismo.

Em 1990 estaremos comemorando os dez anos de fundação oficial do PT. Por conta disso, há uma série de iniciativas em curso que poderão superar as lacunas aqui apontadas. Uma delas partiu do Instituto Cajamar, que iniciou este ano uma pesquisa sobre as origens, a história, a composição social e as perspectivas do PT. Caberá ao partido buscar coordenar esses esforços.

Apesar de a história apontar pistas, o futuro pertence à política. Cabe à análise histórica determinar quais papéis o PT poderá vira cumprir. Repetiremos a trajetória do Partido Comunista Brasileiro, que após um breve período em que foi de massas perdeu-se em intermináveis divisões internas, findando com uma reduzida presença no cenário político?

Quem sabe sejamos convertidos num partido social-democrata, desses que na Europa administram com eficiência gonzaleana o capitalismo? Ou será que o futuro nos reserva como tarefa dirigir uma revolução política e social numa economia capitalista desenvolvida?

Mais do que nunca escrevo este artigo a dezessete dias do segundo turno - essas possibilidades estão colocadas. A historiografia petista pode ajudar a respondê-las, especialmente se derrubar - comparando nossa trajetória com a dos partidos comunistas e sociais-democratas no Brasil e no mundo - alguns mitos que se criaram dentro do próprio PT.

Por exemplo, o de que o nosso partido nada tem a ver com a tradição bolchevique que a história mostra ter sido várias vezes um partido de massas, com tendências, frações e alto grau de democracia interna. Ou o mito de que o PT é imune aos erros dos Partidos sociais-democratas com os quais comungamos a forte âncora no movimento sindical e uma intensa ação parlamentar.

O estudo comparado pode nos fornecer pistas. Mas nosso futuro está sendo construído hoje, por nós. Nenhum partido cumpriu papel revolucionário na história apenas porque assim o desejou. Foram necessárias condições sociais que tornassem possível realizar o desejo.

Vivemos um momento em que aquelas condições estão sendo escritas através de linhas tortas, na exata medida em que mobilizamos a população na defesa de um programa de reformas radicais em nossa sociedade.

Como dizia o velho Engels, "enquanto a velha classe oprimida não está madura para promover ela mesma a sua emancipação, a maioria dos seus membros considera a ordem social existente a única possível e, politicamente, forma a cauda da classe capitalista, sua ala de extrema-esquerda. À medida, entretanto, que vai amadurecendo para a autodeterminação, constitui-se como um partido independente e elege seus próprios representantes e não os dos capitalistas. O sufrágio universal é, assim, o índice de amadurecimento da classe operária. No estado atual, não pode, nem poderá jamais, ir além disso; mas é o suficiente. No dia em que o termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão tanto quanto os capitalistas o que lhes cabe fazer".

Valter Pomar é coordenador do programa de formação política geral do Instituto Cajamar.