Internacional

Se o socialismo democrático é aquele no qual os trabalhadores podem até mesmo perder o poder pela via eleitoral, os sandinistas seriam os pioneiros da nova fórmula. Mas a verdade é outra: na Nicarágua, socialismo e democracia correm perigo

No Barricada de 17/8/90, a manchete principal foi Bush admite derrota da UNO1. O jornal sandinista citava o presidente Daniel Ortega num comício eleitoral de 60 mil pessoas em Boaco, em que ele se referiu a declarações de Bush publicadas no diário US Today. Bush acrescentou que não enviaria tropas à Nicarágua como fez no Panamá.

Na verdade, ninguém previu a vitória da UNO, nem a própria UNO, nem seus tutores norte-americanos. Poucos dias antes das eleições, o Washington Post, com base em pesquisas de opinião, também reconheceu em Daniel Ortega o candidato favorito, com ampla margem sobre Violeta Chamorro. Portanto, a derrota eleitoral dos sandinistas teve o efeito de um grande sismo, cujas ondas geraram um impacto de alcance mundial. Com grande seriedade e dignidade, o presidente Ortega foi procurar Violeta Chamorro para cumprimentá-la pela vitória e garantir que o poder do Estado lhe será passado pelo atual governo em 25 de abril, como previsto. Este gesto mereceu o reconhecimento de chefes de Estado do Hemisfério Norte, entre eles Mitterrand e Bush.

A realidade, porém, é mais complexa. Do lado da FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional), trata-se, em primeiro lugar, de partir da nova realidade. O governo sandinista fez um jogo absolutamente limpo, convidou observadores do mundo inteiro para acompanhar as eleições e perdeu-as. Por mais perplexo que esteja a respeito das causas da derrota, está decidido a entregar o poder aos vencedores. A FSLN sabe que é uma derrota relativa. Apesar de uma vantagem significativa da UNO nas eleições, o apoio popular à frente é maciço, mais bem organizado e mais consciente do que o da fração que apóia a UNO. Os próprios vencedores estão conscientes disto, tanto que não saíram às ruas para festejar a vitória. De toda forma, a medida que a FSLN foi publicando suas intenções, os dirigentes da UNO começaram a se manifestar sobre como pretendem realizar a transição do poder e o governo norte-americano começou a agir com uma postura de grande vencedor.

Mas um problema fundamental e extremamente complexo continua não resolvido: a questão militar. O governo sandinista afirmou sua decisão de transferir o poder pacificamente para a UNO, mas interpôs uma condição indispensável: que os Contra fossem desarmados e o exército fosse preservado, nos termos da Constituição. Bush e Violeta, não se sabe se para efeito publicitário ou com sinceridade, conclamaram os Contra a depor as armas e retornar pacificamente ao país. O governo dos EUA, agindo como o verdadeiro comando dos Contra, enviou seu embaixador em Honduras para visitar seus dirigentes com as novas ordens de Washington: parar com qualquer ação militar contra os sandinistas ou contra os vencedores (indicação de que em alguma medida os Contra, viabilizados pela ajuda norte-americana, hoje são contra todos). Talvez mais lhes tenha sido ordenado, mas só isto foi publicado pela imprensa. O fato é que os dirigentes da facção mais direitista dos Contra responderam que só deporão as armas se o Exército Popular Sandinista (EPS) for desarmado e desarticulado. E seguiram fazendo ações armadas no norte da Nicarágua, mesmo depois da trégua unilateral decretada pelo presidente Ortega, que resultaram na morte de camponeses e soldados sandinistas. Estava criado um impasse de difícil solução.

Do lado sandinista, a reação não se fez esperar. Desde as primeiras horas do dia seguinte às eleições, populares desfilaram nos microfones de algumas estações de rádio dizendo, em síntese: não aos Contra, armas para o povo! Tal postura não se manifestou apenas a partir daqueles que sofreram durante dez anos a fustigação terrorista dos soldados somozistas e dos mercenários financiados pelos governos Reagan e Bush e perderam jovens membros de suas famílias nessa agressão fratricida. Coincide também com a de inúmeros militantes da FSLN, que não conseguem conceber a possibilidade do desmantelamento sem resistência de tudo aquilo que foi construído com tanta bravura e sacrifício pelo governo e pelo povo da Nicarágua nestes dez anos, desde a vitória sobre Somoza.

Qual a solução previsível deste impasse? Impossível encontrar uma resposta satisfatória nesse momento. Mas podemos examinar alguns cenários possíveis, em busca daquele que tenha maior probabilidade de se realizar. No exercício dos cenários, porém, fiquemos atentos ao movimento da realidade. Por serem cenários dinâmicos, não teremos tempo nem espaço aqui de examinar todos os seus desdobramentos. Estimulamos os leitores que o façam brevemente, pois é quase certo que o desencadeamento deste impasse ocorrerá antes da posse de Violeta, em 25 de abril.

Cenário 1 - Os Contra são obrigados a ceder e são desarmados. Os US$ 35 milhões aprovados pelo governo dos EUA para sua "reintegração pacífica" na Nicarágua são usados com lisura para este fim. O governo Ortega transfere pacificamente o poder à UNO, tendo negociado a preservação do exército, embora seja obrigado a entrar em algum acordo com Violeta que reduza a influência sandinista sobre o mesmo, ou ainda a aceitar que os comandos sejam substituídos pelos que o governo Chamorro vier a nomear.

A primeira hipótese seria a mais desejável, pois criaria um entendimento relativamente estável entre a FSLN e o novo governo e deslocaria suas contradições do campo político-militar para o campo político-social. No segundo caso, porém, a FSLN sairá relativamente enfraquecida, pois perderá efetivamente o controle do exército. Estará criada uma situação de equilíbrio altamente instável, pois o novo comando será necessariamente composto de pessoas que dirigem ou estão/estiveram comprometidas com os Contra, enquanto o corpo do exército continuará composto por militares de alto nível de consciência social e nacional, que não se subordinarão facilmente a ordens que ponham em risco as conquistas da revolução. A tendência será um processo de conflitos mais ou menos graves, que resultarão na busca de uma situação de equilíbrio mais estável. Determinante na solução deste impasse será o contexto político institucional. Se os EUA deixarem de interferir diretamente e permitirem um processo de confrontação política franco e aberto na assembléia e na sociedade nicaragüense, a tendência é o gradual fortalecimento da FSLN, agora transformada em oposição ativa e crítica, mesmo não tendo sido majoritária no primeiro momento.

Cenário 2 - Os Contra são obrigados a ceder, mas o governo Chamorro insiste em dissolver e reorganizar o exército. Neste caso, se os sandinistas aceitarem tal decisão, o EPS será desfeito e a FSLN perderá a força militar que construiu legitimamente durante a insurreição popular e nestes dez anos de reconstrução nacional. Acontece que, no plano legal, esta decisão não está mais nas suas mãos, pois as eleições resultaram na sua derrota. Noutras palavras, o governo Chamorro pode, também legitimamente, decidir desmantelar o EPS e constituir um novo, bastando para isto a aprovação majoritária da Assembléia Nacional. Este impasse, portanto, terá que ser resolvido noutra esfera, seja a política, seja a militar. Na esfera política os sandinistas teriam que atuar para impedir, por meio de pressão de massa e de ação congressual, que tal decisão seja legitimada. No caso do insucesso neste esforço, haveria então a hipótese de resistência armada.

Cenário 3 - Os Contra não depõem as armas. Ou então depõem num primeiro momento mas, depois de seus membros já terem sido reintegrados à Nação, são rearticulados como o novo exército. Neste caso, a via de resistência armada da FSLN e de parcelas ponderáveis da população se torna a mais provável. Com uma agravante: existe, então, a possibilidade de Violeta sinalizar para o governo Bush, pedindo ajuda militar para "defender a democracia", e é quase certo que Bush não hesitará no envio de tropas. É prevendo isto que alguns dirigentes sandinistas têm se referido à resistência como uma via de holocausto.

Um acontecimento recente vem reforçar as probabilidades do primeiro cenário. Em 28/3/90 o governo sandinista e a presidente eleita selaram um acordo sobre a transição política no país, prevendo a despolitização das Forças Armadas e da polícia em troca do respeito à hierarquia militar no próximo governo. O mais importante do acordo é que se, de um lado, os sandinistas concordam em reduzir a influência política das Forças Armadas, em troca disso recebem a garantia da extinção dos Contra e de que o comando militar continuará em mãos sandinistas. Isto confirma a impressão de que os vencedores das eleições de fevereiro têm contradições com os Contra e estão dispostos a usar o poder para desmontá-los. No entanto, se isto for apenas um golpe publicitário, ou se os EUA decidirem continuar financiando os Contra, a tendência é que eles continuem matando e aterrorizando o campo nicaragüense. Quanto à decisão de deixar sob controle sandinista o comando militar, isto pode afastar efetivamente o risco de uma guerra civil entre a FSLN e o governo e até criar urna área de efetiva colaboração no combate aos Contra, caso estes continuem a agir à revelia.

Estômago eleitor
O povo votou com o estômago, não com o coração. Este comentário de um dos observadores norte-americanos da eleição nicaragüense sintetiza com perfeição o sentido mais profundo da derrota eleitoral da FSLN. O mesmo observador comenta que logo após a apuração ele e colegas seus ouviram diversos eleitores expressarem arrependimento por terem votado em Violeta Chamorro.

Contudo, os jornais brasileiros e estrangeiros que temos lido revelam-se intencionalmente superficiais a este respeito, com raras e louváveis exceções. Falam no desejo de democracia dos nicaraguenses, na sua rejeição à ditadura sandinista e coisas do tipo. Para aqueles que olham com realismo e conhecimento vivencial a Nicarágua hoje, os fatores mais fortemente determinantes da derrota eleitoral da FSLN foram, por ordem de importância, a guerra e o boicote econômico, ambos tendo como ator principal o governo dos EUA. Portanto o ator determinante foi, com toda a força destas palavras, o imperialismo norte-americano. Os atores locais aliados dele tiveram um papel importante em termos imediatos, mas sem a política econômica e militar imperialista dos governos Reagan e Bush, certamente eles não teriam vingado.

A guerra dos Contra, que dura praticamente dez anos e é inteiramente financiada pelos EUA, somada ao boicote econômico e comercial, realizou uma combinação de guerra de alta e baixa intensidade, que minou as bases da economia e da sociedade. O governo Ortega foi obrigado a construir um exército numerosíssimo (70 mil, que no Brasil corresponderiam a 3 milhões), o qual teve de ser mantido mediante a utilização de mais de 50% do orçamento federal nos últimos anos, além do recrutamento obrigatório de dezenas de milhares de jovens em idade de serviço militar. A economia estava esgotada e a população revelou-se decidida a tentar outra via.

Os erros do governo sandinista também terão influído, mas em plano claramente secundário. Lembremo-nos, primeiramente, de que a herança do somozismo em 1979 foi um país destroçado, uma economia em ruínas e 50 mil mortos numa guerra fratricida, na qual os EUA permaneceram afiados da ditadura de Somoza até o fim. O povo nicaragüense ainda tem estas imagens muito vivas ainda na memória. E outras, como a dos seus familiares chacinados pelos Contra, ao longo desses dez anos. Além do governo dos EUA, outros aliados potentes se perfilaram para garrotear a economia nicaragüense o FMI, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento eliminaram todo crédito à Nicarágua em obediência ao mais rico país membro, os EUA.

Assim mesmo, o governo sandinista fez progredir o seu projeto de um regime pluralista, uma política externa não-alinhada e uma economia mista, na qual têm importância tanto os pequenos e médios produtores - individualmente ou cooperativados - quanto os grandes produtores privados, vinculados principalmente ao setor de exportação. O governo sandinista chegou a compor colegiados com o setor privado da economia. A própria Violeta Chamorro fez parte de um deles.

Observemos, porém, que nem sempre a política econômica foi acertada, conforme reconheceram os próprios sandinistas. No setor agrícola, a atração por grandes projetos agro-industriais, na forma de enclaves, produziu resultados sociais, e até econômicos, negativos. A reforma agrária impôs aos lavradores a formação de cooperativas e só o assédio dos Contra fez o governo perceber que era necessário atender à antiga demanda dos trabalhadores rurais por terra para suas famílias. Por outro lado, a reforma de fevereiro de 1988, marcada por forte influência monetarista, gerou um processo recessivo agravado pela política de compactação do aparato estatal, que provocou milhares de demissões de funcionários. O processo inflacionário e a deterioração da economia, causados pela guerra e pelo boicote comercial, fizeram surgir uma vaga crescente de atividades econômicas clandestinas, que debilitaram ainda mais a capacidade das autoridades econômicas de superar a crise.

No plano político-social, talvez o maior problema tenha sido a carência de uma nítida distinção entre a FSLN e o governo, que repercutia de várias formas, como na prática de baixar linhas e de manter uma forte influência sobre as entidades representativas da sociedade, prejudicando sua indispensável autonomia de opinião e de ação.

Porém, há que se perguntar, que governo não erra? O governo Ortega errou muito pouco. É preciso afirmar em alto e bom som que a Nicarágua é um dos únicos países da América Latina em que a democracia no sentido pleno e integral do termo está sendo construída. E os dirigentes deste processo são os dirigentes sandinistas. O governo Ortega é também um dos únicos da América Latina que tem um sentido autocrítico extremamente prático e sincero. Apesar disto, é inegável que errou na avaliação sobre em quem o povo iria votar. E não errou por falta de contato com o povo, mas sim por ter subestimado o anseio primeiro do coração do povo neste momento: a sobrevivência.

Eis o que motivou um desavergonhado senador republicano dos EUA a declarar à imprensa, logo que soube da vitória da UNO, que com muitos dólares e persuasão os EUA são capazes de fazer o governo que quiserem em qualquer país da América Latina. Bush e cia estão agora mais encorajados que nunca a usar a guerra de baixa intensidade - um jargão diabolicamente hipócrita - onde quer que queiram impedir a democracia de levantar sua cabeça acima da miséria e da repressão.

Temos lido comentários a respeito da ideologia gelatinosa do sandinismo, que não é capitalista, mas também não é socialista nem qualquer outra coisa clara e definida. Lembremo-nos, porém, que o sandinismo hoje não é apenas fruto do desejo dos seus dirigentes nem de aspirações abstratas das suas bases sociais. Ele é a resultante disto com os acontecimentos históricos concretos que serviram de contexto para o seu desenvolvimento, entre os quais predomina a hipócrita e impiedosa ação imperialista dos EUA contra um pequeno e vulnerável país do seu pretenso quintal que decide escolher autonomamente o seu destino. O perigo de tal experiência de autonomia dar certo e servir de exemplo aos outros povos da América Latina e do mundo foi, nestes dez anos, inadmissível para os EUA. Era preciso erradicá-la por qualquer meio. E o mundo assistiu a esta luta covarde e desigual com uma atitude passiva, quase sonolenta. Até quando?

Humildade
O contexto mundial certamente teve alguma influência na derrota eleitoral da FSLN. Estamos vivendo uma época de maciça propaganda ideológica pró-capitalista. Os acontecimentos da Europa Oriental estão sendo interpretados pelos governos capitalistas (inclusive o de Collor de Mello) e pela grande imprensa como o fim do socialismo, a morte do marxismo, a derrota final do comunismo. Como a realidade tem sempre (pelo menos) dois lados, um visível e outro oculto, além de ser uma realidade sempre em movimento, interessa-nos examinar a dinâmica e a profundidade destas transformações mais que apenas os fenômenos como se apresentam hoje.

É ilusório identificar o sandinismo, ou mesmo o socialismo cubano, com os socialismos da Europa Oriental. Interessa aqui sublinhar que o sandinismo é um projeto histórico de caráter não dogmático, profundamente dinâmico, que tem buscado construir-se não a partir de sua visualização ideal de nova sociedade, mas sim da realidade concreta do país e do povo. Daí os erros e as correções de políticas específicas ou mesmo de rota. Daí a flexibilidade tática - combinada com a firmeza estratégica - na lida com as contradições. Daí a quase milagrosa clarividência no tratamento das questões internacionais, que deu aos sandinistas, ao longo destes dez anos, mais vitórias que derrotas, mesmo contra o todo poderoso imperialismo norte-americano. Daí a coragem e a humildade com que se dispõem a entregar o governo, depois de uma campanha de massas que havia convencido o mundo inteiro da sua vitória. Isto não quer dizer que não há contradições internas no sandinismo. Neste exato momento, os nove dirigentes da FSLN estão se esgrimindo em torno dos caminhos mais adequados para superar os impasses que discutimos acima. O certo é que eles mostraram, nestes dez anos, haver aprendido outra lição da história: a de que a unidade é construída na diversidade, a de que a vida é a arte do equilíbrio e da harmonização sempre novos dos opostos. É com esta visão histórica que os sandinistas têm se confrontado entre si, mantendo, ao mesmo tempo, a sua unidade. Uma unidade que é fruto da clareza de que é preciso a FSLN enfrentar unida aqueles que são os inimigos do povo e da Nação nicaragüense.

Marcos Arruda é economista, coordenador do PACS (Políticas Alternativas para o Cone Sul), professor do ISAE/FGV e membro do PT.