Nacional

Quando morreu, aos 92 anos, Luís Carlos Prestes virou herói de Roberto Marinho e dos senhores mais reacionários do Brasil. "Um homem de princípios", proclamaram. Será? Vale conferir nesta retrospectiva sobre o maior personagem da esquerda deste país.

Com a morte de Luís Carlos Prestes, aos 92 anos de idade, desapareceu uma personalidade que marcou por quase setenta anos a vida política brasileira.

Desaparece, igualmente, o último remanescente importante de uma geração de quadros da Internacional Comunista, integrado por homens e mulheres do porte de Palmiro Togliatti, Maurice Thorez, Ho Chi Minh, Josip Broz Tito, Giorgi Dimitrov, Dolores Ibarruri e, evidentemente, o próprio Josef Stalin, sob a sombra do qual todos se criaram e atuaram boa parte de suas vidas.

Prestes conspirou em 1922, ainda que não tenha se envolvido diretamente na revolta do forte de Copacabana. Dois anos mais tarde, em 24, dirigiu o levante de sua guarnição em Santo Angelo e, à frente dos rebeldes, rumou para São Paulo. Meses depois teria início a legendária Coluna Prestes-Miguel Costa. Foram 25 mil km percorridos durante dois anos pelo interior do Brasil, travando combates com o Exército ou com forças estaduais e grupos civis arregimentados pelo governo de Artur Bernardes. Invicta, a Coluna termina sua aventura na Bolívia, onde se refugiaram algumas centenas de combatentes.

Mesmo no exílio, Luís Carlos Prestes continua como ponto de atração da política brasileira nos anos 20. O já legendário capitão sofre, o assédio do pequeno Partido Comunista, que envia delegados à Bolívia e mais tarde ao Uruguai para contatá-lo. Mas ele é também uma referência central para a Aliança Liberal, a oposição a Washington Luís, a qual haviam aderido quase todos seus companheiros tenentes. Expressão dessa visibilidade política é o convite que Getúlio Vargas lhe faz, em uma reunião secreta realizada em Porto Alegre, para que comande o movimento militar que derrubaria a República Velha. Pouco antes não faltaram os que propusessem seu nome como candidato à Presidência nas eleições de 1930.

Ele recusa o convite de Vargas e critica o movimento em termos radicais, o que revela a aproximação de Prestes das idéias comunistas, ainda que neste momento estivesse influenciado pelos trotskistas, como se pode depreender de sua proposta de criação de uma Liga de Ação Revolucionária (LAR). A Liga terá duração efêmera e será duramente criticada pelo PCB como "pequeno-burguesa". Iniciava-se a luta "contra o prestismo" no Partido Comunista que duraria até fins de 1934, quando Prestes ingressa no PCB contra a vontade de sua direção.

Mesmo após sua partida para a União Soviética, em outubro de 1931, depois de renegar seu projeto de formar a LAR e reconhecer que o PCB era a força dirigente da revolução no Brasil, Prestes continua uma referência importante na década que se iniciava.

Anos mais tarde, em 1935, quando se organiza a Aliança Nacional Libertadora (ANL), expressivo movimento de massas de caráter antifascista e progressista, o nome de Prestes, refugiado na URSS, é aclamado como seu presidente de honra.

O resto da história é conhecido. O "Cavaleiro da Esperança", como já era chamado, retoma clandestinamente ao Brasil com um grupo de agentes da Internacional Comunista e se põe à testa da fracassada insurreição de 27 de novembro de 1935, no Rio de Janeiro, que havia sido precedida de movimentos igualmente derrotados em Natal e Recife, dias antes.

Preso em 1936, tendo sua mulher Olga Benário deportada para a Alemanha nazista, onde será mais tarde executada na câmara de gás de um campo de concentração, Prestes se mantém no centro dos acontecimentos destes anos tormentosos.

Para a direita, ele é o símbolo do vende-pátria", do agente a soldo de Moscou que não hesitou em mandar matar seus ex-companheiros de farda enquanto dormiam. As Forças Armadas tiveram nos acontecimentos de novembro de 1935, não importa se deturpando os fatos realmente ocorridos, uma fonte inesgotável para a postura anticomunista que iria marcar sua trajetória desde então.

Para a esquerda, à imagem do "Cavaleiro da Esperança" junta-se a do mártir que permanecerá por quase dez anos nos cárceres da ditadura. A legenda que cerca Prestes é de tal ordem que ele chega a ser eleito in absentia secretário geral do PCB, na célebre Conferência da Mantiqueira que reorganiza na clandestinidade o partido em 1943.

Mas é talvez em 45 e 46 que se situa o ápice da carreira de Prestes.
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Libertado pela anistia decretada por Getúlio, a 19 de abril de 1945, Luís Carlos Prestes se transforma em personagem central do processo de "redemocratização" do país, que se acelerará com a aproximação do final da guerra e, sobretudo, com a derrota do nazifascismo para a qual o Brasil colaborara enviando tropas à Itália.

O prestígio da URSS e a personalidade de Prestes alavancaram um rápido crescimento do PCB que, em 46, chega a 200 mil militantes, depois de haver alcançado expressivos 10% dos votos na eleição presidencial e de ter obtido um senador e quatorze deputados na Câmara Federal.

Prestes foi eleito deputado em cinco estados e senador pelo Rio de Janeiro, o que era permitido pela legislação eleitoral da época. Seus comícios reuniram enormes multidões e é evidente que se ele tivesse aceito ser o candidato presidencial do PCB em dezembro de 1945, os comunistas teriam obtido um resultado bastante maior do que a significativa votação alcançada por Yedo Fiúza, o inexpressivo e vulnerável engenheiro que o partido havia proposto ao eleitorado.

O prestígio do PCB e de Prestes duram pouco. Sua política de unidade nacional, primeiro em torno do ditador Vargas, em seguida em torno do efêmero governo Linhares e, finalmente, com Dutra, acaba por ser um fracasso total.

A abertura democrática de 45 libera uma grande energia do movimento operário e sindical, que vinha de anos de arrocho salarial e repressão política. Os apelos de Prestes para que se "apertasse o cinto" não surtem efeito. Uma vaga de greves se desencadeia a despeito da orientação prestista de buscar a "ordem e a tranqüilidade". A própria militância comunista participa desses movimentos, o que obriga o partido a fazer inflexões à esquerda em sua orientação.

Antes mesmo que isso ocorresse, as classes dominantes haviam desencadeado uma violenta campanha anti-PC, tratando de responsabilizar o partido e Prestes pela crescente agitação social reinante no país.

Esta campanha ganha especial importância no parlamento, onde Prestes é vítima de uma provocação. Uma ambígua declaração sua sobre a atitude que o secretário-geral adotaria no caso de um conflito armado entre o Brasil e a União Soviética, somada a outras iniciativas típicas do período de "guerra fria" que se iniciava, fazem com que o Tribunal Superior Eleitoral casse o registro eleitoral do PC em 1947. Os parlamentares comunistas perdem seus mandatos em 1948.

Nova clandestinidade

O PCB passa para a clandestinidade e, de forma pendular, adota uma posição ultra-esquerdista depois de pregar por quase três anos a unidade nacional, inclusive com as forças originárias do Estado Novo.

Ainda que sua análise da sociedade brasileira e sua estratégia correspondente mantenham as teses da libertação nacional a ser obtida por um bloco de quatro classes - proletariado, campesinato, pequena-burguesia urbana e burguesia nacional -, a posição do PCB se radicaliza com apelos à constituição de um sindicalismo paralelo e à derrubada dos sucessivos governos de "traição nacional" (Dutra, Getúlio e Café Filho) através de ações armadas.

A formulação dessa política tem em Prestes um elemento-chave e é importante observar que, apesar de diametralmente oposta àquela vigente entre 45 e 47, ela guarda um elemento de continuidade, mais além da aparente ruptura.

Em ambos os casos a orientação proposta por Prestes está em consonância com as posições internacionais do Partido Comunista da União Soviética, ainda que seja incorreto reduzir a política do PCB exclusivamente a essa determinação externa.
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No fundamental, tratava-se de desenvolver uma linha de ação no centro da qual estivesse a questão da defesa da União Soviética.

Isso se fez nos últimos meses da 2º Guerra e no imediato pós-guerra através de uma linha de unidade antifascista, inclusive com os "imperialismos democráticos", para resgatar uma expressão em curso na época. Mas a partir de 47148 este resultado só poderia ser obtido através do confronto permanente e direto com o imperialismo e com as classes dominantes locais. O partido se transforma em uma seita e aprofunda sua orientação de ultra-esquerda, conforme ilustra o Manifesto de Agosto (1950). Prestes manda votar em branco nas eleições presidenciais. Com a eleição de Getúlio Vargas em 50, abrem-se alguns espaços no movimento sindical para os comunistas, tais como a suspensão de intervenções em muitos sindicatos e eleições menos controladas, o que lhes permite uma política de aproximação prática com o PTB.

Mas o discurso do PCB sobre o governo Vargas e sobre as tarefas do movimento operário não contribui para uma reformulação mais geral da linha do partido. Assim, o Partido Comunista, em agosto de 1954, aparece objetivamente associado à mobilização golpista em curso que desemboca no suicídio de Vargas.

O impacto dos acontecimentos de 1954 sobre o PCB é enorme e contribui para a mudança de posição do partido, que tem sua primeira manifestação no apoio de Prestes à candidatura Juscelino-João Goulart, em 1955.

O secretário-geral se encontrava clandestino desde a cassação do registro do partido. Suas relações com a organização eram feitas através de Diógenes de Arruda Câmara, uma das mais nítidas expressões do stalinismo no Brasil, fenômeno que se reproduzia no conjunto do movimento comunista internacional, apesar da morte de Stalin, em 1953.

A abertura de 1958

Esta clandestinidade persiste até 1958, quando o Comitê Central do partido, com a presença de Prestes, modifica parte da antiga direção e altera a orientação política através da Declaração de Março do mesmo ano. Prestes volta à legalidade, beneficiado por uma medida judicial que revogava o mandado de prisão existente contra ele.

Nesses dez anos que Prestes passou na clandestinidade, o movimento comunista internacional teve importantes transformações. Após a morte de Stalin, em 1953, inicia-se um tímido porém significativo processo de abertura na URSS que repercutirá em todos os partidos comunistas.

O "degelo", para empregar a expressão do escritor soviético Ilia Ehremburg, também atinge o PCB e um surpreendente debate sobre os problemas que o partido enfrentava se dá nas páginas de sua imprensa. Preocupado com os rumos que a discussão tomava, Prestes acaba por encerrá-la abruptamente, temeroso de que ela fosse longe demais.

Os efeitos do XX Congresso do PCUS, quando Nikita Kruchev pronuncia seu famoso "Relatório Secreto" denunciando muitos dos crimes de Stalin, também se fizeram sentir no Brasil. A delegação brasileira enviada ao evento retornou muito tempo depois de seu encerramento e confirmou o discurso de Kruchev, que os partidos comunistas no Ocidente insistiam em considerar apócrifo, "uma invenção da CIA". A crise desencadeada pelas revelações provocou uma cisão no PCB que levou muitos militantes, sobretudo intelectuais, a abandonarem o partido. Osvaldo Peralva sai e depois escreve O Retrato, onde narra sua experiência de dirigente. Mas a perda mais visível é a do antigo tenente e companheiro de Prestes, Agildo Barata.

Entre 1958 e 1964, Luís Carlos Prestes vive um outro período intenso de sua carreira política.

Foram seis anos extremamente agitados que assistiram ao auge do movimento de massas e uma grande mobilização em busca de reformas econômicas, sociais e políticas no país. Esta dinâmica já se anuncia nos últimos anos do governo JK, persiste no breve governo Jânio Quadros e se aprofunda no período Goulart (1961-1964).
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A crise provocada pela renúncia de Quadros e o movimento "pela Legalidade" que conduz Jango ao governo leva o país à beira da guerra civil e pressagia os grandes enfrentamentos sociais que se seguiriam e o golpe militar de 1964.

O PCB, sob a direção de Prestes, sai praticamente da clandestinidade ainda que não consiga voltar formalmente à legalidade. Amplia seus quadros e sobretudo sua influência, que se faz particularmente visível nas cúpulas sindicais, no movimento estudantil, entre os intelectuais e até mesmo em certos segmentos das Forças Armadas.

É certo que a autoridade de Prestes sofre alguns abalos. Em 1961 parte dos dirigentes que haviam sido marginalizados em 1958 da Comissão Executiva do partido rompem com o PCB e formam o Partido Comunista do Brasil.

No interior do próprio PC há diferenças e alguns de seus dirigentes criticam o que consideram uma política de compromisso do secretário-geral com o governo Goulart. Daí nasce a tese da necessidade de se golpear simultaneamente a reação imperialista e latifundiária e a conciliação com Jango. Esta posição reunirá alguns dos futuros dissidentes que romperão com o partido após 64.

O impacto do golpe de 64

Prestes mergulha mais uma vez na clandestinidade que, somada mais tarde ao exílio, durará quinze anos. É um período duro que marca o início de um processo de decadência do PCB e de ofuscamento de sua própria presença na política brasileira.

Entre 64 e 67 o partido sofre uma sucessão de cisões que o priva da juventude e de significativos setores sociais, para não falar de um sem-número de dirigentes importantes.

Mesmo assim encontra forças para realizar na clandestinidade seu VI Congresso, em dezembro de 67, que sanciona a política de união "das forças patrióticas contra a ditadura" e condena os grupos de esquerda que haviam optado pela luta armada.

A repressão que se fez sentir em 1968 contra os operários e os estudantes concentra-se em 69/70 sobre os grupos de esquerda que, na sua maioria, desenvolviam ações armadas. Não tardará a vez do PCB, que até então havia sido relativamente poupado e se beneficiava de uma estrutura de clandestinidade um pouco mais experiente.

Mesmo assim, em 1971, o Comitê Central decide que uma parte de seus dirigentes deve abandonar o país para se proteger dos rigores da ação policial-militar da ditadura. Prestes vai para a União Soviética e a primeira vaga de repressão contra o Partidão ocorre já no ano seguinte em São Paulo. Será em 1974 e 75, contudo, que o PC sofrerá seu mais duro golpe, que lhe custará a vida de dez membros do Comitê Central.

Confinada no exílio, a direção se debate com conflitos sérios. A própria posição de Prestes é contestada. O secretário-geral, formalmente no posto desde 1943, não consegue, como havia feito no passado, desempenhar o papel de mediador dos conflitos que atravessam o Comitê Central. Agora, ele mesmo é parte desses conflitos e vai ficando em uma posição cada vez mais solitária, contando apenas com o apoio de sua filha Anita Leocádia e de Gregório Bezerra.

Menos de um ano depois de sua triunfal volta ao Brasil, ele rompe com o PCB lançando sua Carta aos Comunistas, na qual denuncia o que considera a orientação "burguesa" do partido ao qual pertencera durante 45 anos. Transforma-se em um livre-atirador reagrupando setores de esquerda disperses, originários do PCB, de grupos armados dos anos 60/70 ou mesmo de muitos que emergiam mais recentemente para a política.

Aproxima-se de Brizola desde as eleições de 1982 e o acompanha até o primeiro turno das presidenciais de 1989. Olha com desconfiança o PT, no qual identifica tendências social-democratas. Critica Lula por seu "empirismo" e "falta de cultura marxista". Mesmo assim o apóia no segundo turno de 89.
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Prestes demonstra durante toda esta última década de sua vida uma enorme energia, apesar de seus mais de oitenta anos, deslocando-se por todo o Brasil para conferências, entrevistas, campanhas eleitorais etc. Revela uma loquacidade até então insuspeitada num homem que sempre fora reservado sobre sua trajetória política, para não falar de sua vida privada. Assim o demonstram suas várias entrevistas à televisão; ao Pasquim; aos jornalistas Dênis de Moraes e Francisco Viana (transformadas no livro Prestes: lutas e autocríticas - Editora Vozes) e em depoimentos a pesquisadores como os que deu a Fernando Moraes para que este escrevesse seu Olga.

Semanas antes de sua morte participou da tradicional homenagem que seus admiradores sempre prestaram por ocasião de seu aniversário, em janeiro.

A morte de Prestes desencadeou uma surpreendente (e suspeita) unanimidade nacional. É natural que seu corpo tenha sido acompanhado por milhares de simpatizantes e por importantes dirigentes de esquerda do país que destacaram sua presença na vida política nacional e lamentaram sua perda.

Menos natural é que a grande imprensa, que nutriu por Prestes e sobretudo pelo que ele representava uma enorme antipatia e hostilidade, professasse um respeito e admiração à sua "figura histórica", "coerência" e outros atributos que antes nunca a haviam sensibilizado.

"O mal que os homens fazem sobrevive a eles, mas o bem quase sempre é enterrado com seus ossos", disse Marco Antonio no célebre discurso shakespeariano diante do corpo inerte de Júlio César. Tudo se passa com Prestes de forma inversa. Pareceria que o mal é que foi enterrado com seus ossos e que o bem acabou por sobreviver. Para ser mais pedestre: "comunista bom é comunista morto."

Trata-se, pois, de restituir Luís Carlos Prestes à sua dimensão real, longe da unanimidade nacional estabelecida da esquerda à direita quando cessou de bater o coração deste homem quase centenário que, como se viu no relato acima, protagonizou momentos significativos da história republicana por quase setenta anos.

Prestes é uma figura sui generis no movimento comunista internacional. Quando Guralski, o agente da Comintern, o atrai para as idéias socialistas no exílio de Buenos Aires, no começo dos anos 30, ele já era uma personalidade relevante da política brasileira, diferentemente de seus grandes contemporâneos na Internacional, que invariavelmente haviam feito sua carreira nos PCs.

Quando ele entra para o PCB, por imposição da direção executiva da Internacional, uma vez que os comunistas brasileiros não o queriam, criam-se as condições de possibilidades de uma mudança fundamental na trajetória daquele até então pequeno partido.

Isso ocorre não somente porque Prestes leva seu prestígio pessoal para o PCB, mas fundamentalmente porque na sua esteira muitos de seus companheiros militares o acompanhariam, trazendo consigo as idéias, concepções e práticas que nortearam suas ações nos anos 20 e 30, no Movimento Tenentista.

Ações que se fundam na tese, como explicou Raymundo Faoro no prólogo ao livro de Dênis Moraes e Francisco Viana, de levar adiante uma "missão pedagógica de (...) elite que, no fundo, ressente-se de uma inarredável e pouco consciente postura autoritária. Autoritarismo - prossegue Faoro - na verdade não tradicional, desligado e hostil às oligarquias e ao coronelismo, mas ancorado no pressuposto da imaturidade, da incapacidade e do aprisionamento do povo brasileiro, inapto para deliberar e decidir acerca de seu próprio destino." (op. cit. p. 12).

O antiliberalismo dos anos 20 e 30 no mundo e no Brasil acaba por desembocar em vertentes autoritárias à direita e à esquerda que revelam uma enorme dificuldade de conceber a mudança social nos marcos da democracia.
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Os "êxitos" reformadores de Mussolini, na Itália, e mais tarde de Hitler, na Alemanha, só encontravam comparação na revolução industrial tardia que Stalin realizava na URSS com seus planos quinquenais. Não é à toa que esses modelos acabassem por exercer uma enorme atração sobre todos aqueles que se dedicaram a pensar (e agir) sobre as condições de mudança econômica, social e política na América Latina, desde o capitão Perón, adido militar na Roma de Mussolini, até o capitão Prestes, refugiado na Moscou de Stalin, observando e participando de perto (como engenheiro que era) do processo de industrialização forçada em curso na URSS. Este ethos autoritário de nossos militares reformadores dos anos 20 e 30 era nutrido em grande medida pela influência do positivismo nas Forças Armadas. Não é assim descabida a associação que muitos fizeram de marxismo e positivismo no pensamento de Prestes, expressa em sua visão evolucionista da sociedade brasileira, muito comum no marxismo do período stalinista, e na ênfase que sempre deu ao papel da teoria na política, ainda que sua contribuição neste terreno tenha sido nula.

Prestes stalinista

A adesão de Prestes ao stalinismo não é resultado de uma postura oportunista, como ocorreu com outros dirigentes comunistas que seguiram "o grande condutor dos povos" muitas vezes por razões de sobrevivência política ou até mesmo física. Para Prestes, o marxismo stalinista dava resposta àquelas inquietações que lhe surgiram na militância dos anos 20, especialmente no seu contato com o Brasil profundo durante a Coluna.

Seus companheiros tenentes - Juarez Távora, Cordeiro de Farias, Eduardo Gomes, entre tantos outros - preferiram o caminho do autoritarismo conservador, às vezes disfarçado pelo inconsistente liberalismo da velha União Democrática Nacional. Acabaram como próceres senis da ditadura militar instaurada em 1964.

Os princípios de Prestes - sua inabilidade política, dirão alguns de seus críticos sistemáticos - fizeram com que ele se afastasse dessa vertente tradicional da política e atravessasse sessenta anos de nossa história republicana como outsider.

Fiel ao que imaginava ser o marxismo, ele o foi, no entanto, muito mais à linha oficial do movimento comunista internacional e à URSS em particular, ainda que isso lhe exigisse contorções enormes como as que vinha fazendo ultimamente para apoiar a glasnost e a perestroika impulsionadas por Gorbatchev.

Sua contribuição ao marxismo foi nula e suas análises da sociedade brasileira não acrescentaram nada ao que havia sido escrito anteriormente.

Sua fidelidade ao movimento comunista internacional e à política da URSS não só o ajudou a cometer os trágicos erros de 1935 como também foi responsável pelos monstruosos equívocos cometidos em 45/46, quando talvez tenha estado mais perto do poder ou pelo menos em condições de fazer do PCB um grande partido - como os PCs da França, da Itália ou do Chile - e não o grupo marginal em que se transformou a partir de então.

Prestes teve de romper com o Partidão para romper com as concepções deste sobre a sociedade brasileira. Para chegar à conclusão de que o Brasil era um país capitalista e que, portanto, todo o esquema da revolução antifeudal, antimperialista e democrática que por anos sustentara era falso, teve de recorrer aos escritos acadêmicos de Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes nos anos 70, conforme revelou em palestra feita no lnstituto Cajamar em 1987 (Cf. 1917 - 1987 - Socialismo em Debate, Edição do Instituto Cajamar, p. 226-246).

Se lhe sobrou coragem para romper com o PCB depois de 45 anos de militância, não se conformando em ver-se transformado em "presidente de honra" do partido, como ocorreu com tanto outros dirigentes estrangeiros de sua geração, faltou-lhe capacidade para fazer uma revisão mais funda de suas concepções sobre as possibilidades de mudança revolucionária no país. Seu leninismo ortodoxo levou-o a desdenhar as experiências políticas de renovação da esquerda no Brasil que desembocaram na formação do Partido dos Trabalhadores.
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Ruptura

Continuou buscando um mítico partido revolucionário, inspirado na teoria que, segundo a boa e velha receita do Que fazer?, surgiria da cabeça dos intelectuais originários da burguesia, como não se cansou de repetir.

O "golpismo" que os dirigentes do PCB denunciaram em Prestes não em nada mais nada menos do que o corolário do messianismo político próprio a todos os partidos comunistas em seu afã de substituir politicamente (tutelando) a classe operária, reduzida a simples agente da história conduzida pelas sucessivas (e autocriticadas) "linhas justas".

A "racionalidade" política desses partidos, que Prestes compartiu, mesmo divergindo taticamente de seus ex-companheiros, não podia dar conta da emergência de novos movimentos sociais constituídos em sujeitos políticos a partir de fins dos anos 70, os quais colocaram na ordem do dia grandes desafios para um socialismo cujos sinais de crise se faziam evidentes. O PT e Lula não cabiam em seus esquemas e, por isso, na política contingente ele, que já apoiara Getúlio e Goulart, preferiu Brizola.

Seus últimos anos de vida, cercado de um prestígio e respeito que chegou aos píncaros depois da sua morte, foram ensombrecidos pela crise do chamado socialismo real. Formalmente ele encontrou respostas fáceis para o que lá estava ocorrendo, recorrendo aos expedientes intelectuais que o haviam obrigado no passado sucessivamente a cultuar Stalin, renegá-lo, renegar Kruchev, que havia renegado Stalin, e Brejnev, que havia renegado Kruchev...

A crise, no entanto, afetava os supostos mesmos de sua concepção de socialismo e da de todos aqueles que se educaram politicamente na esteira da Revolução do Outubro e no paradigma da Internacional Comunista. Um grande terremoto se abatia (e continua se abatendo) sobre valores dentro dos quais Prestes e várias gerações de revolucionários e socialistas se educaram. Não basta sair pela tangente e dizer que o que está desmoronando nunca foi socialismo mas a sua perversão.

A crise do socialismo "realmente existente" afeta também as bases do projeto socialista tout court e sem considerar este fato será difícil reconstituir a utopia que animou corações e mentes em lutas de uma generosidade sem par.

Não foram poucos os que viram na morte de Prestes uma metáfora da morte de um certo socialismo, soterrado pelos escombros do muro de Berlim.

É possível. Ao lado da hipocrisia dos poderosos que derramaram suas lágrimas de crocodilo pela morte do "Cavaleiro da Esperança" somou-se o lamento sincero e comovido de muitos de seus admiradores que, mesmo divergindo, sempre sucumbiam ao carisma deste homem sisudo e sem muito humor a quem chamavam respeitosamente de "o velho", como convém a todos patriarcas revolucionários.

Jovens, que pouco sabiam dele, cultivaram este verdadeiro mito até então vivo, uma espécie de longo túnel que nos fazia penetrar na história, permitindo melhor compreender nosso presente.

Diante de homens como esse, mais do que a postura reverencial, sincera ou não, cabe a circunspeção da análise.

Prestes está à espera de um grande biógrafo que restitua sua trajetória como dirigente político e como homem, o tempo que viveu, as esperanças que suscitou e as frustrações que provocou.

Pouco ou nada interessa a trajetória do mito ou do herói, até porque, como bem disse Bertolt Brecht, infelizes os povos que necessitam de heróis.

Marco Aurélio Garcia é professor do Departamento de História da Unicamp, membro do Diretório Regional do PT/SP e da secretaria de Relações Internacionais do Diretório Nacional.