Mundo do Trabalho

Se a classe trabalhadora é o grande sujeito da História, tudo o que se fizer a seu favor será feito em prol do "universal". Os fins justificam... Alguns episódios recentes são particularmente úteis para uma reflexão crítica. E esclarecedora.

Dois episódios que chamaram a atenção dos jornais no fim de 1989 - o custeio por empresas municipais de São Paulo de uma viagem de trabalhadores sem-terra e de um curso sobre sindicalismo - levaram o PT à berlinda, acusado de corrupção ou, ao menos, de desvio de dinheiro público para fins particulares. No primeiro caso, a prefeita de São Paulo demitiu o responsável pelo fretamento e o partido reembolsou a cidade com o valor corrigido monetariamente1; no segundo, quando escrevo ainda se debate a verdade dos fatos, por isso seria injusto julgá-lo. Mas o que importa é apreciar o princípio desses fatos, o que pode ser feito discutindo, apenas, idéias.

Comecemos notando que, nos dois casos, a questão veio a público por iniciativa do próprio PT: prontamente foram tomadas medidas, e iniciado um debate interno. Nunca poderíamos imaginar o PDS criticando o governador Maluf pelas flores que deu a senhoras de políticos. É raro, na política brasileira, que um partido critique e puna desvios da função pública. Segundo ponto: em ambos os casos, os únicos apontados em um ano de gestão petista na cidade de S. Paulo (quer dizer, ante a vigilância dos órgãos de comunicação que não perdoariam - com razão! - deslize algum), o dinheiro não foi para o bolso de ninguém, mas destinou-se a causas políticas até, quem sabe, respeitáveis. Isto é uma atenuante, do ponto de vista moral.

Mas é justamente esta atenuante moral que torna a coisa grave: que militantes de esquerda possam achar que, ao canalizarem a função pública (e verbas oficiais) para um uso partidário, e não vantagens pessoais, estejam acima das regras do Estado de Direito, que proíbem uma coisa e outra. E proíbem porque estabelecem uma diferença nítida entre o que é público e particular ou privado, tal como entre o Estado, que idealmente tem duração permanente, e o governo, que exerce suas funções por um mandato. É essa diferença que certos militantes de esquerda não vêem, nos dois casos - e não vêem, primeiro, porque não aceitariam pôr no mesmo plano as flores de Maluf e os sem-terra; segundo, porque pensam que a causa que defendem, por interessar ao povo como um todo, por visar ao fim da exploração do homem pelo homem, não pode ser considerada uso privado da coisa pública.

Para criticar essa concepção, precisamos primeiro entendê-la. Assim, da mesma forma que ela não se confunde com a velha tradição brasileira de corrupção, seria erro pensar que se origine em outra tradição tenaz nossa, a do patrimonialismo - isto é, o uso privado do bem público. O patrimonialismo não se deve confundir sempre com a corrupção, embora o resultado prático muitas vezes seja o mesmo, e até mesmo ele a alimente. Ocorre patrimonialismo, por exemplo, nos tempos coloniais, quando um homem mais rico oferece um casarão à Câmara Municipal: evidentemente, como não cobra aluguel, se depois precisar de um pequeno favor, este lhe será feito. Ou hoje, quando um dono de oficina conserta ou equipa de graça um carro de polícia: por melhor intenção que tenha, por honesto que seja, ele se sentirá credor do Estado, e quando precisar que se esqueça uma infração que cometeu, também esse favor lhe será prestado2. Assim, de ótimas intenções nasce um esquema de pequenas e grandes corrupções.

Mas não é esse patrimonialismo corruptor que afeta a militância de esquerda do PT. O Partido dos Trabalhadores faz crítica veemente à corrupção, a ponto de ser, até, moralista; o problema surge, exatamente, porque tais grupos crêem defender interesses que não são tão grupais ou facciosos, mas universais. Isto é, justamente porque o PT não é "um partido como os outros", e ao contrário da maior parte dos outros partidos defende interesses das classes trabalhadoras, cresce o risco de que alguns militantes pensem que não se aplicam ao PT regras que, num regime de direito e democrático, se impõem a todos os partidos. Poderíamos chamar a essa crença de alguns setores da esquerda de "síndrome do Universal": uma tendência a justificar certas posições por atenderem a interesses que não são particulares, não são de uma classe dominante ou cúmplice da dominação. Quando um partido não é como os outros, ele pode até esquecer que é partido, ou seja, parte; aliás, ele tem de esquecer isso; por isso o perigo, no PT, não é a corrupção (que, se existir, é bem limitada) e sim a exacerbação de sua diferença.

Em última análise, essa conduta remete a Marx, naquilo em que ele segue um molde de Hegel - a idéia de que a classe operária é o sujeito que resgatará a História de sua parcialidade, e portanto quem a representa encama uma universalidade que falta aos demais atores do político; por isso, na política os atos não deveriam ser julgados por sua mera forma mas pelo papel que tenham na luta pela sociedade sem classes. Na leitura que Marx faz da dialética hegeliana uma tese gera, necessariamente, algo que se opõe a ela, - uma antítese; da luta implacável de ambas (de sua dialética), há de surgir uma síntese, que supera os dois termos contraditórios e ao mesmo tempo preserva parte do que eram. (Disto vem, segundo Gérard Lebrun, o caráter progressista da dialética: a convicção de que as formas novas que surgem sempre são superiores às anteriores)3. Por sua vez, a síntese se torna tese e suscita nova antítese, de cujo confronto deverá gerar-se nova síntese etc. Isto, até que se chegue a um termo no processo histórico.

Isto, além de uma questão de princípio: para um partido de trabalhadores, todo trabalho deveria ser remunerado. É diferente trabalhar para o partido, que é uma causa em que o voluntariado tem todo o sentido, e para o poder público, que deve pagar.

Para Hegel, este termo, o chamado "fim da História", se daria quando o Espírito se reconciliasse consigo, enriquecido por todas as contradições dialéticas por que passou. E, para Marx, quando o operariado, antítese da burguesia, ao vencer esta última na última luta de classe engendrasse, como síntese final, a sociedade sem classes. Dois problemas, é claro, surgem daí para o marxismo: primeiro, se a cada etapa da dialética a síntese é superior aos dois termos que estavam em conflito, como é que na luta final prevalece um desses termos (o operariado), em vez de se gerar, como das vezes anteriores, uma síntese nova, que portanto não seria feita só de operário nem só de burguês, mas teria elementos de ambos?

A resposta marxista é que no socialismo também o operariado se suprime, porque deixa de se caracterizar pelo salário (que só existe enquanto há patrão que o pague, patrão que desta forma expropria, como mais-valia, parte do que foi produzido pelo empregado) e passa a administrar as coisas, as fábricas, em suma, a produção. Segunda objeção: por que, afinal, a dialética teria que terminar na sociedade sem classes, em vez de continuarem surgindo novas oposições etc? A resposta seria que, com o socialismo, terminaria a época em que o homem foi regido pela carência e pela economia, prática ou ciência especializada em gerir escassez. Não havendo mais escassez, cessando a exploração do homem pelo homem, as contradições que despontarem depois na sociedade serão de outra natureza. Poderá haver conflitos por questões filosóficas, ou por concepções do político, de como fazer as pessoas participarem do poder, mas não mais por questões econômicas. Não morre a dialética, mas apenas a fase em que os homens foram governados pela carência.

Assim, a teoria marxista de inspiração hegeliana aponta a classe operária como sujeito da História, a quem cabe vencer os particularismos, tanto os anteriores quanto os das classes que com ela lutam dentro do capitalismo. A esse respeito, Gyorgy Lukács escreveu um belo ensaio, A consciência de classe, que marcou época nos anos 20 mas hoje é muito contestado. E, no entanto, do ponto de vista de um marxismo ortodoxo não haveria muito como discordar de Lukács. O pensador húngaro argumenta que em cada época da história há graus de consciência possível, e que a consciência que uma classe social ou outra tem do processo histórico aumenta conforme for mais progressista o papel por ela desempenhado.

Por exemplo, o nobre terá, no fim do Antigo Regime, menos condições de entender sua sociedade do que o burguês, porque este pode ler o social como histórico, ler a forma do social que então predomina como estando fadada a morrer, porém, uma vez efetuada a revolução que leva ao poder a burguesia, esta quer eternizar sua dominação e não é mais capaz de perceber-se como histórica4. Por isso o operariado, é, hoje, a classe que tem maior consciência possível do processo histórico: porque porta a promessa do mundo novo, e por isso sua superioridade de consciência se prende ao fato de que sua ação é a mais eficaz dentre as possíveis. Esse esquema foi contestado, como mecânico, mas dificilmente o marxismo daria melhor explicação do papel da classe operária tanto na ação política quanto na geração de um conhecimento histórico.

É assim, pois, que o operariado é sujeito, porta o Universal: se vamos substituir as dominações de classe (necessariamente particulares) pela sociedade sem classes, emancipando o homem, não será com discursos vazios sobre "o homem", mas apostando neste homem, o operário (melhor dizer, o operariado), que em sua particularidade porta a supressão futura do particular, e o resgate do universal.

E aqui começam os problemas com os militantes de esquerda que se pensam isentos das regras gerais de gestão pública porque lutam pela emancipação da classe trabalhadora. A seu ver, não é a mesma coisa gastar dinheiro em flores ou corrupção e destiná-lo à luta dos trabalhadores. E é evidente que há diferença. Mas a diferença básica que eles alegam é esta: a causa dos trabalhadores é superior à dos corruptos porque aqueles propõem uma sociedade justa, enquanto estes apenas perpetuam um modelo injusto, já ineficiente etc. Por isso, o meio não poderia ser julgado sem a consideração daquilo a que serve.

Onde eles erram? Justamente na crença em que o operariado é a classe que traz consigo o universal, e portanto redime os meios que se usem para que este se produza. O Universal tem falido, estes últimos anos. Usemos um pouco da experiência histórica.

Novas formas

No plano social, no plano do conflito entre as classes sociais, o papel universal da classe trabalhadora, isto é, a superioridade do operário sobre as demais classes sociais enquanto portador de algo que dá sentido à história, entrou em crise bem antes das mudanças na Europa Oriental. Mas o que essas mudanças agora nos ensinam?

Primeiro, que não há sinal à vista de que deva terminar a propriedade privada de todos os meios de produção. Nos países do Leste europeu em que estes foram plenamente estatizados, nota-se um regresso à propriedade familiar e à pequena e mesmo média propriedade. Aliás, em boa parte dos países que se tornaram comunistas após 1945 manteve-se a pequena propriedade rural e mesmo o pequeno comércio. Hoje a tendência é ampliar isso. Um barbeiro, um horticultor não precisa estar sujeito a uma vasta empresa coletiva, ainda que socializada.

Isto significa a aceitação de formas de propriedade familiar, antes de mais nada, mas provavelmente também a de formas de remuneração assalariada: um barbeiro poderá contratar seu assistente, um lavrador um empregado. Significa, portanto, repensar a mais-valia, que deixa de ser rejeitada por princípio, para se tornar talvez aceitável. Talvez, aliás, até precise ser repensado o conceito de mais-valia. Além disso, não se vêem agora grandes razões para proibir um pequeno patrão de propor, a um possível empregado, salário superior ao que ele teria trabalhando por sua conta ou para a empresa socializada. Para o empregado, pelo menos, isto fará pouca diferença.

Um mercado de força de trabalho ressurge, assim, nos países que estão deixando de ser comunistas. Talvez a grande diferença entre esta situação e a dos regimes capitalistas nascentes dos séculos passados possa ser, apenas, que naqueles a implantação do capitalismo se deu mediante forte uso do aparelho de Estado para destruir alternativas a esse regime econômico: os trabalhadores foram então privados de suas ferramentas, fechadas as organizações que acaso tivessem (guildas, corporações), suprimidas as formas de propriedade comunal da terra etc. Hoje, o que se poderá - talvez - conservar nos países em que o PC deixa o poder é a garantia de que os novos governos não façam esse tipo de pressão. Pode parecer pouco, mas já será importante se for alcançado. Mas é difícil, mesmo nos países em que um governo socialista vença as eleições livres deste ano, estabelecer um teto para a pequena empresa. Este teto se fez em alguns países, mas a tendência é rompê-lo e a pequena empresa tornar-se média ou mesmo grande.

É possível, finalmente, que formas de organização cooperativas construam um quadro de pequenas empresas, familiares ou com poucos assalariados; duvido que o socialista mais hostil à "restauração do capitalismo" possa ser intransigente contra isso - ele terá que reservar suas forças para tentar manter as grandes empresas fora da propriedade capitalista, e este é um ponto aberto, que não se sabe onde vai dar. Provavelmente nem os líderes comunistas que patrocinaram a perestroika tenham opinião fechada sobre o destino das grandes empresas. Elas necessitam de capital, que possivelmente virá do Ocidente (como capital de risco, isto é, o equivalente de ações, e não de empréstimos a juros, modelo - sabemos nós - que foi catastrófico) e de parte da poupança dos trabalhadores dos próprios países do Leste, que têm muito dinheiro que não podem gastar, na falta de bens de consumo, e que poderiam carrear para a compra de ações dessas empresas. Tudo isso está em debate, e provavelmente já terá sido decidido, em alguma direção, quando este artigo for publicado.

Segundo ponto: o mercado parece voltar com força, nos países do leste europeu - não só o mercado da força de trabalho, mas o de mercadorias. Parte enorme do fracasso dos regimes comunistas se deve a sua incapacidade de produzir bens de consumo que tenham qualidade e atrativo. O planejamento é culpado em parte por isso, por ter negado aos consumidores o poder de escolher entre os produtos, e portanto de premiar o sucesso e de punir, com falência ou outras sanções econômicas, o fracasso. Em outras palavras, e escolho exemplos que não agradariam a nenhum esquerdista de vinte anos atrás, tem de haver Pepsi e Coca-Cola, ou calças Lee e Levis. É esta concorrência que fará os produtores de uma e de outra tentarem melhorar o que produzem. É neste sentido que cabe falar em retomo do mercado: as linhas de produção deixam de ser fixadas por decisão do plano, para se adaptarem à preferência demonstrada pelos consumidores nas compras que façam.

Evidentemente, isto não quer dizer que, havendo Pepsi e Coca-Cola, tenha de haver duas fábricas de empresários privados. A holding Autolatina é exemplo de uma única grande empresa que produz carros diferentes, de marcas que eram concorrentes e, até certo ponto, continuam concorrendo. Mas precisa existir concorrência na economia, tendo como juiz o consumidor, isto significa o fim de um estilo de gestão em que o planejador escolhia os produtos e o modo de produzi-los. A economia de custos que resultaria de não haver gastos em propaganda e marketing (porque não haveria concorrência), nem desperdício de recursos (porque os produtos postos à venda teriam a melhor qualidade), revelou-se ilusória. Os produtos foram ruins, e sua produção cara, não competitiva.

Esta mudança implica, ainda, aceitar um tipo de desperdício que é o do mercado concorrencial. Quando os regimes comunistas se instauraram, e com eles a planificação econômica, um dos pontos enfatizados era a racionalidade que esta introduzia na produção. (Veja-se o próprio Lukács, no seu texto já citado: o capitalismo teria racionalidades apenas locais, e só o planejamento marxista permitiria pensar e construir a sociedade mediante uma racionalidade global). Seria possível fazer o melhor, com o menor custo etc, na quantidade adequada - ao passo que uma sociedade de mercado tem de conviver com estoques invendáveis, guerras comerciais que levam ao encalhe de parte da produção, falência de empresas etc. O problema, porém, é que também o comunismo se revelou produtor de desperdícios, devido à burocracia5.

Assim, a possibilidade de um controle do consumidor sobre os bens a ele oferecidos aparece hoje como uma garantia de transparência na própria produção e, por isso, pela via indireta, de uma eficiência maior que a das burocracias. Pode haver muita ilusão no entusiasmo dos povos da Europa Oriental pela sociedade de consumo, mas seria um erro manter, contra o consumo e o mercado, os preconceitos do antigo pensamento de esquerda; temos de descobrir como um ideário socialista pode se combinar com estas práticas que vieram do capitalismo.

Em outras palavras, numa sociedade como a nossa, em que o consumo tem amplidão tão maior que no século XIX, e não só o consumo de bens mas o de serviços, qualquer proposta de eficiência terá de passar pelos consumidores (digamos, no caso dos serviços, usuários) - assim como precisará passar por eles qualquer proposta de gestão autônoma. Não dá para pensar a autogestão de uma fábrica, ou de um órgão de serviços, sem ter na direção quem consome o produto ou serviço; neste ponto, por sinal, o PT tem-se pautado mais por uma velha idéia de autogestão, restrita aos trabalhadores da empresa em causa. E esse é um erro sério, que leva às acusações de corporativismo - termo de que se abusa, mas que será pertinente se lhe dermos um perfil preciso, o seguinte: ocorre ele quando o interesse dos destinatários do bem ou do serviço é tido como menos importante que o dos envolvidos diretamente na produção.

O marxismo, aliás, não chegou a pensar esta questão talvez, simplesmente, porque no século XIX o setor de serviços fosse bem pequeno face a uma produção mais tradicional de bens materiais; mas, em nossos dias, podemos dizer que até a geração de bens de consumo está marcada pelo perfil dos serviços, de modo que o comprador precisa ter voz no capítulo. A diferença decisiva, aqui, entre o capitalismo e socialismo é que aquele considera que o empresário (pouco importando se ele é o dono do capital ou o gerente, no sentido do manager, do executivo profissional) é o único capacitado a efetuar a mediação entre os desejos imediatos dos empregados na firma e o mercado a que o produto ou serviço se destina; só ele traz racionalidade, só ele liga produtores e consumidores. Ao passo que no socialismo se espera que os trabalhadores e os consumidores se entendam, o que significa, é claro, que a autogestão inclua as duas categorias. Num sistema econômico como o de hoje, o produtor numa relação é consumidor ou usuário em centenas de outras, e o problema é justamente conseguir que nesta pluralidade de relações ele tenha canais por onde se expressar: o trabalhador os tem (os sindicatos), o usuário dificilmente, e o grande desafio, para que essa fluidez não faça dele um joguete das forças mais autoritárias da sociedade, está em dar formato e vazão à voz que o represente.

Por estas duas razões, a antiga certeza de que o operariado geriria uma sociedade sem classes deu lugar a dúvidas. Cabe lutar para que as grandes empresas do futuro sejam socialistas. Mas não há como ignorar as lições recentes da Europa Oriental, e para um partido como o PT seria péssimo não discuti-las a fundo, até porque daria razão aos que, na campanha eleitoral de 89, o acusaram de se atrelar a um modelo de sociedade que não funcionou onde foi aplicado. Filosoficamente, uma coisa só ora é certa: não se pode mais pensar a classe trabalhadora como sujeito da História. E já basta isto para fazer ruir toda a justificação, pelo Universal, de medidas só porque são para o bem, ou a emancipação, da classe trabalhadora. Ainda mais porque esta classe se mostra extraordinariamente diversificada: um modelo que a concebia basicamente como operária, e acessoriamente aceitava a figura do camponês, tem agora de integrar os setores de serviços, e inúmeras outras formas pelas quais o trabalho e a produção se fazem.

Desmitificação

No plano político, também o sistema marxista rui – vezes mais até do que no social. Parece (a menos que me engane) que o modelo de sociedade e de história que se baseava na guerra implacável entre os agentes – as classes sociais expressa mal os novos tempos. O marxismo pensa a história e a sociedade pelo conflito de classes, culminando, no capitalismo, na "luta final" entre burguesia e proletariado, como diz a Internacional; o modelo é portanto o da guerra sem mercê, em que um dos lados tem de vencer e o outro de perecer; recordemos, na dialética hegeliana entre o Senhor e o Servidor, que não pode haver senhor sem alguém que o sirva, enquanto o servidor pode viver sem senhor, - e portanto a classe trabalhadora, mesmo que demore a ser vitoriosa, não tem como perecer. Este é o esquema que lemos em Marx e pelo qual nos habituamos a ler a sociedade. Não penso que se equivoque no que diz da sociedade. Mas redunda em problemas algo sérios quando é transposto, sem mais, à vida política.

A política, se for pensada por essa via, será necessariamente uma guerra. Ora, desde os gregos temos a tradição, muitas vezes interrompida e eventualmente por séculos, mas que hoje ressurge vigorosa, da política como arte da palavra: pela fala excluímos a violência e tentamos persuadir os demais homens a decidir isso ou aquilo, a votar de um modo ou de outro. Precisamos assim respeitar a opinião alheia, e aceitar regras pelas quais se joga a política, graças às quais ora vencemos, ora perdemos.

Só que o marxismo se constituiu com base na crítica radical a essa política. Os discursos persuasores não passariam, termo que Marx emprega no Dezoito Brumário, de "cretinice parlamentar". As palavras melífluas mascarariam uma violência básica, a de uma classe que oprime outra. Por trás do aparente respeito ao outro, das regras de jogo, estaria pulsando uma guerra, que a classe dominante mascara. Daí que seja preciso desmantelar tudo isso: arrancar os disfarces com que a fala ilude e engana (isto é: criticar a ideologia dominante), negar as próprias regras do jogo parlamentar e eleitoral, instaurar um outro espaço do político. Romper com a retórica e a oratória, com o palanque, adotar uma política eficaz. Tudo isto, aliás, plenamente confirmado pela forma como as classes dominantes, tantas vezes, violaram suas próprias regras, quando estas abriam espaço para uma mudança séria no político.

O problema não é que a crítica marxista à política da persuasão seja falha (como alega a opinião liberal, que atualmente predomina nos meios de comunicação), mas sim que a prática engatada nessa crítica marxista, e que no mundo comunista eliminou as formas políticas liberais, trouxe graves resultados. Porque o marxismo não concebe só a política como guerra6, também concebe a si como ciência. O problema é quando a frase passa a ser entendida também no seu avesso, e a política é considerada como continuação da guerra por outros meios. Se o conflito antagônico – aquele em que um lado há de destruir o outro – é modelo para a política, acreditar nas palavras e votos acaba sendo considerado "cretinice". Daí resulta uma guerra que se baseia em certezas de ordem científica. Como, então, admitir que haja adversário, aceitar que se discorde de mim? Necessariamente, o adversário tem de ser patife, traidor (como o "renegado Kautsky", na fórmula de Lenin), portanto já um inimigo - ou, na melhor das hipóteses, um ignorante (a quem se interna em hospitais psiquiátricos, como Brejnev fazia com os dissidentes: só a doença mental explicaria o inconformismo deles com a sociedade soviética). Quem discorda não pode estar no mesmo plano daquele que detém o saber. Lembremos as dificuldades dos partidos comunistas, desde o 1917 russo, em conviver com partidos socialistas. Em parte é claro que isto se deveu ao maior radicalismo dos comunistas, contraposto à moderação de seus antigos irmãos; mas, a esta explicação que é tradicional, talvez caiba acrescentar outra, pelo menos como pergunta: a ruptura e seu caráter traumático não se deveriam também à convicção dos comunistas de terem a razão, e de que os socialistas seriam não só traidores, mas cientificamente carentes de razão?

Agora, em que pode dar esta concepção, senão no monopólio do poder por um partido, que o conservará mediante práticas do maior segredo? Moscou virou Veneza, o governo dos sinistros "Dez" que na calada da noite mandavam prender e matar. Com a morte de Stalin caíram os assassínios políticos, porém se manteve - até aparecer Gorbatchev - a essência do sistema, que era a do grupo fechado controlando tudo. Mas o inquietante é que, se pensamos a política como guerra, e nossa atitude nela como científica, um tal resultado é inevitável.

Com isso temos um resultado paradoxal, e que coloca problemas sérios. Por um lado, a crítica marxista da ideologia continua pertinente. Marx não está, por sinal, longe do trabalho de dois outros grandes desmistificadores que são quase de seu tempo, Nietzsche e Freud: todos eles pretenderam desmontar as ilusões de um discurso da classe dominante, da moral ou do ego. Com isso, tornaram suspeito o discurso corrente, e suspeita a consciência que o produz e profere, mostrando que longe de ser razão soberana ela sofre condicionamentos e padece de ilusões talvez mais fundas do que aquelas que pretendia vencer. Sem estes três críticos, nenhuma reflexão em política hoje se sustenta; quem desconheça o trabalho que fizeram sobre o discurso não conseguirá pensar a política, porque ficará preso a suas aparências. Mas por outro lado, suspeitar do discurso corrente, mostrar que este obedece a regras de produção que fazem de quem o profere ou nele crê quase que meros joguetes: o resultado disso é terrível. Terrível não só para as consciências inocentes que, agora, vêem desfeita sua pretensa autonomia. Mas terrível, sobretudo, pelo poder que o desmistificador adquire. Ele passa a dizer a verdade sobre os discursos alheios: inevitavelmente, ele se torna paternalista. Este é o grande problema que aparece naqueles que desmontam o discurso alheio (sejam freudianos, marxistas ou nietzschianos): como conciliar seu efeito crítico com o novo poder que instauram, dos críticos sobre os ingênuos? E, no caso do marxismo, como é que o pensamento rigoroso, ou ciência, mesmo ali onde teve melhores frutos (a crítica da ideologia), redunda num autoritarismo tão forte, o da figura de quem sabe" protegendo, ensinando, até perdoando "quem não sabe"?

Assim, voltamos aos perigos do Universal. Se uma classe porta a verdade e a ação correta, que espaço resta para a ação e pensamento das demais classes? E, pior ainda, da idéia de uma classe operária portadora dos valores universais parece resultar a necessidade de que alguém decifre esses valores, essa missão. Porque é frequente os próprios operários não saberem de seu dever7razão por que precisariam de alguém que o traduzisse a eles: velho procedimento, pelo qual a consciência é separada da ação, o trabalho é cindido do pensamento (ou o trabalho intelectual do manual), e finalmente um aparelho burocrático substitui a organização autônoma. Trotsky previu um desdobramento análogo quando, num texto que seu biógrafo Isaac Deutscher citava, disse que do partido leninista de revolucionários profissionais e de centralismo democrático necessariamente decorreria a monopolização das decisões pela direção, e finalmente a substituição desta por um homem só (chamou-se Stalin). O que ele não pensou, mas devemos acrescentar, radicalizando seu comentário e criticando sua própria atuação, é que o partido assim concebido decorreria da idéia de uma classe operária como sujeito da História.

É partindo daí que Leôncio Martins Rodrigues desenvolve, provocativamente, a idéia de que um sindicalismo livre e combativo só é possível em países capitalistas (Partidos e Sindicato, Ática, 1989).

Porque este não é o menor dos paradoxos: o sujeito da História precisa de alguém que o interprete, que traduza seus anseios em palavras e atos, em suma, que garanta a manifestação de seu verbo, para que depois este se possa fazer carne8; e desta forma o sujeito se apassiva, se reduz a um álibi, a um endosso para o que o intérprete praticar em seu nome. Essa é a crítica que podemos, usando o que de melhor se pensou na França pós-68 (Foucault, Deleuze etc.), dirigir a um pensamento de esquerda que tem dificuldades para lidar com o Estado de direito e a democracia.

Complexidade

Mas, se um socialismo desabou - um que na verdade é um estatismo, e não "socialização dos meios de produção" a esquerda não deve ceder à propaganda liberal, que tomou conta do papel impresso, e que vê na total entrega da gestão econômica à empresa privada a solução dos problemas do mundo. Esse pensamento é fraco e só pode recuar, do êxito que tem tido. As questões acima expostas devem então ser lidas como desafios que um pensamento comprometido com valores de esquerda tem de enfrentar. Gostaria de acentuar um problema, e um estilo.

O problema é o da articulação entre as diversas lutas. Para isso havia uma solução marxista, ou hegeliana, articulando particular e universal; ora, vimos como se tornou difícil sacrificar a complexidade do social, ou aceitar que uma parte (ou partido) se diga ou faça universal. Por isso, quem sabe deveríamos propor um engate sem hierarquia entre as várias lutas. Mas aqui surge outro problema: esse engate poderia resultar em falta de rigor, ou mesmo em corporativismo. Há falta de rigor quando sequer se discute o que concatena as lutas, ou quando elas apenas mostram união contra um adversário externo - que, se faltar, fará romper toda a pretensa unidade9. Exemplo de falta de rigor seria não ver como é problemático unir o combate das prostitutas à luta por uma vida sexual mais livre e feliz10; obviamente, embora as prostitutas tenham pleno direito a não serem maltratadas, há antagonismo entre sua luta e a sexualidade livre. Ou seja, é preciso, no projeto de construir uma nova sociedade, seguir uma estratégia, que hierarquiza lutas, e reconhecer os conflitos internos, mesmo quando ficam subordinados a um conflito mais premente, externo.

Há corporativismo, quando se supõe que cada reivindicação de trabalhadores se soma a outra, ou melhor, que cada uma expressa um mesmo princípio, que é o da justeza e justiça da ação do trabalhador, renunciando-se assim a um projeto global de sociedade que seja mais que a mera soma de projetos setoriais11. Todos sabemos, por exemplo, que a informatização custa empregos, e que a direita e o patronato são indiferentes a seu preço social; mas, daí à esquerda combater as inovações tecnológicas, não há lógica. Infelizmente, por vezes o PT tem optado pela idéia de que toda reivindicação de trabalhadores é justa, sem considerar a própria oposição que pode surgir entre duas categorias, ou entre uma categoria e a vasta massa de usuários (que, em outras relações, são quase todos trabalhadores). Sobretudo quando os trabalhadores são do setor público, porque é duvidoso assimilar o poder público a um patrão banal (as prefeituras do PT sofrem dessa contradição, mal resolvida devido ao pressuposto do endosso a toda reivindicação de movimentos sociais).

Agora, quanto ao estilo. Escrevo nos dias em que sai o plano contra a inflação do novo governo. Discute-se que a esquerda faria de diferente. Um ponto parece essencial no modo de agir do PT: é a solidariedade. Esta pode vir do cristianismo (o padre Lebret, que deixou marcas tão fortes em S. Paulo nos anos 50, pertencia ao movimento do "solidarismo"), ou do marxismo, com o engate particular-universal - não importa: pode ter seus defeitos, e neste artigo insisti nos perigos que vêm do uso do universal; mas, se evitarmos com todo o rigor esses riscos, graves porque mascaram o que é contradição e constituem unanimidades de ficção, poderemos tentar uma instituição da sociedade mais interessante do que as já conhecidas. Esse me parece ser hoje o problema-chave de um partido de esquerda: como articular os movimentos vários que procuram ter, nele, um canal.

Renato Janine Ribeiro é professor de filosofia política da USP, é autor de Ao Leitor sem Medo e A Etiqueta do Antigo Regime (ambos da Brasiliense) e organizador de A Sedução e suas Máscaras – ensaios sobre D. Juan (Companhia das Letras).