Política

Tornaram-se comuns as alusões à possível (provável? desejável? inevitável?) exclusão da Convergência Socialista do PT. A própria, porém, não quer sair. Aqui, um de seus principais dirigentes abre o jogo. Entrevista com Valério Arcary

No último número de Teoria & Debate o artigo de Apolonio de Carvalho, "Momento de Exclusão", provocou terremotos verbais, turbulências na malha interna do partido, êxtase de muitos que não tiveram até aqui coragem de dizer em público aquilo que Apolonio propôs por escrito: vamos excluir a Convergência Socialista do PT1. Depois desse artigo, a proposta virou moeda corrente.

Enquanto se desenrola nas instâncias devidas uma intrincada discussão a respeito da saída ou da permanência da Convergência Socialista, Teoria & Debate procurou ouvir, na fonte, as razões que norteiam a mais barulhenta e polêmica corrente de toda a história do nosso partido. Valério Arcary, membro da alta cúpula da CS e integrante do Diretório Nacional do PT, conversou conosco ao longo de quatro horas, logo no início de março. Os melhores momentos dessa entrevista são publicados aqui. O que diz a Convergência sobre o Leste Europeu, sobre os rumos do PT, sobre as prefeituras e, principalmente, sobre si mesma?

Vamos falar um pouco da Convergência Socialista. A convergência surgiu antes do PT. Como foi isso?
A Convergência nasceu de um núcleo de militantes que começou a fazer uma reflexão sobre a experiência da guerrilha no Brasil no início dos anos 70. Esse núcleo original se constituiu no Chile em torno de um grupo que se chamava Ponto de Partida, que naquela época recebeu uma grande influência do Mário Pedrosa. Na verdade, Mário Pedrosa trouxe esses jovens militantes para o marxismo revolucionário e para a IV Internacional. Depois do golpe do Pinochet uma parte dos companheiros conseguiu exílio na Argentina e entra no Brasil na clandestinidade em 1974. Constituíram um pequeno agrupamento que se chamava Liga Operária, e que definiu como prioridade da sua ação fazer um esforço de divulgação socialista dentro do movimento operário. A Convergência Socialista se constituiu no primeiro semestre de 1978. Nesse momento, a Liga Operária compreende a necessidade de romper com o bipartidarismo. Compreende que começava a haver espaço para a construção de um partido de classe na legalidade. A Convergência se lança como um movimento que pretende unir todos os socialistas, disperses em muitos agrupamentos clandestinos, que tivessem posicionamento pela construção de um partido socialista dos trabalhadores. Nesse período começamos a ter uma unidade maior com os sindicalistas do ABC. No 1º de maio de 1978 a esquerda toda se dividiu entre comemorar com os sindicalistas do ABC ou fazer o 1º de maio com os da oposição em Osasco. Nós fomos a única corrente de esquerda que comemorou o 1º de maio no ABC. Dessa relação com eles surgiu o apoio eleitoral, no segundo semestre. Nós definimos uma tática de apoiar candidatos operários dentro das listas do PMDB, que era uma mediação para tentar construir a independência política de classe. Procuramos o Lula, ele não quis ser candidato. Apoiamos o Benedito Marcílio, que era o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André. Quando propusemos, como condição do acordo eleitoral, que no programa da candidatura estivesse explicitado que éramos por um partido socialista dos trabalhadores o Marcílio nos disse: "digamos por um Partido dos Trabalhadores, não se coloque o socialista. Construamos primeiro um PT e depois discutamos o que é o socialismo porque os trabalhadores não sabem." Aí surgem as primeiras articulações que vão originar o movimento pró-PT. Nesse processo começam a se unir muitos outros companheiros. Mas foi uma iniciativa pioneira. Nós temos orgulho.

Vocês mantêm ligações com um dos núcleos da IV Internacional. Você pode explicar o que é a Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT)?
Nós somos militantes que acreditam na necessidade de uma nova Internacional Operária, revolucionária. A IV Internacional não existe como um partido mundial. Ela existe como um movimento político, ideológico e dividido em agrupamentos. Existem fundamentalmente dois. Um agrupamento internacional articula aquilo que seriam os trotskistas europeus e é conhecido como Secretariado Unificado. Tem como sua expressão mais importante o economista Ernest Mandel. O outro agrupamento é conhecido como Liga Internacional e tinha como seu principal dirigente o argentino Nahuel Moreno, que faleceu há uns anos. Além desses agrupamentos existem muitos outros setores: existe o Comitê Internacional de Reconstrução dirigido por Pierre Lambert, na França. Nós fundamentalmente estamos unidos à esmagadora maioria do trotskismo latino-americano. Pensamos que a construção dessa Internacional vai se dar através de um processo de unificação de militantes revolucionários dos mais diferentes países, e que hoje, no Leste Europeu, na África do Sul, na própria União Soviética, desenvolvem-se correntes sindicais e revolucionárias que não têm uma definição ideológica pelo trotskismo, mas que tem uma política trotskista nos fatos. O que é isso? É defender a independência política dos trabalhadores, a mobilização permanente pelas suas reivindicações, contra o imperialismo, contra a exploração de classes, contra a opressão burocrática. Significa defender a democracia operária, significa dizer que a revolução socialista é feita pelos trabalhadores, e que eles tem que construir organizações que eles próprios controlem. E, por último, significa dizer que a luta dos trabalhadores é internacional, é uma luta sem fronteiras. Assim como os trabalhadores no Brasil alcançaram um enorme progresso no seu nível de consciência e de organização com a formação do PT, é necessário que a classe trabalhadora, em escala internacional, construa um partido mundial.

Vocês propõem a fundação de uma nova Internacional. Ela seria uma trotskista?
Não. Os trotskistas provavelmente serão uma minoria dentro dessa Internacional. Ela será uma Internacional revolucionária. Aquilo que o trotskismo representa é a herança de um programa, de uma tradição. Essa Internacional vai ter de ser construída sob acordos políticos, como o PT. Uma Internacional que agrupe revolucionários autênticos de todos os países.

E, no processo de construção dessa Internacional, qual é o papel da LIT?
A Liga Internacional é um agrupamento de organizações trotskistas de mais de 25 países. Ela agrupa militantes em praticamente todos os países da América do Sul. Tem uma expressão muito grande na Argentina, onde o Movimento ao Socialismo (MAS) é hoje o maior partido de esquerda. A Liga Internacional se constrói porque nós não acreditamos que podemos dizer: construamos partidos nacionais e, um dia, quando estiverem maduras as condições, quando tivermos influência de massa em dez ou quinze países, construamos uma Internacional. A Internacional é uma necessidade inadiável. Nós achamos muito difícil ter uma política marxista para um país sem uma análise internacional da luta de classes. Nós podemos dizer, grosso modo, que na esquerda hoje há duas análises sobre a situação mundial. Existe a análise daqueles que sempre tiveram uma visão "campista" do mundo. Dizem há décadas que existe o campo capitalista e o campo socialista e que nós, que estamos dentro do campo capitalista, temos que procurar alianças políticas no outro campo, e que este seria nosso aliado na luta contra o imperialismo. Contra esta análise, há cinqüenta anos, os trotskistas afirmam que a direção burocrática da URSS está aliada com o imperialismo para preservar a ordem mundial. Essa visão "campista" agora ruiu. Ruiu porque de repente se revela para o proletariado que o chamado campo socialista impunha ditaduras tirânicas e burocráticas que foram varridas por gigantescas revoluções. O que mudou no mundo é que finalmente foi revelado o que é a burocracia stalinista no poder em Moscou. Há décadas ela mantém um acordo com o imperialismo para defesa da ordem mundial e para a preservação da dominação burocrática dentro do seu país. Agora, a classe operária se colocou em movimento e é muito mais difícil a restauração capitalista porque os trabalhadores se organizaram, fizeram a revolução, estão conscientes de sua própria força. Nós achamos que há uma situação de profunda instabilidade internacional.

Não parece contraditório que exatamente essa insurreição contra as burocracias esteja, em vários países, hegemonizada por forças de direita, pró-capitalistas?
Claro que é. O que não é contraditório no mundo? O stalinismo significou uma regressão na consciência de milhões de trabalhadores. Todos os ditadores burocráticos eram profundamente odiados pelas massas e isto produz num primeiro momento um estado de enorme confusão. Mas essas são verdadeiras revoluções feitas pelo proletariado e com as massas que não têm uma direção. O que de fato hoje existe nesses países é uma situação de caos econômico. Por quê? O velho planejamento burocrático ordenava mal - mas ordenava - a economia. Este planejamento ruiu. Ninguém mais o aceita. Não há nenhuma ordem econômica no lugar. Segundo, as massas estão no momento confiantes nas suas próprias forças.

Amplos setores no Leste Europeu têm como modelo o capitalismo da Europa Ocidental. Isso não faz com que se fortaleça ao nível internacional uma conjuntura de descenso?
Não, pelo contrário, nunca a situação foi tão favorável à luta pelo socialismo no nosso século. Vou fazer uma afirmação mais chocante: nunca o Leste foi tão favorável ao socialismo! Porque as massas estão em movimento, e um elemento fundamental da ideologia marxista é acreditar profundamente que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Nós temos uma profunda fé no proletariado. Não uma fé religiosa, porque não é apoiada num dogma, mas numa compreensão do processo histórico, de qual o lugar reservado para o operariado nessa sociedade. O proletariado se colocou em movimento. É um exemplo para todo mundo. Nós temos que entender esse movimento de construção da consciência de classe. As massas querem o capitalismo? Não. As massas não querem o capitalismo. As massas querem melhores condições de vida. Há uma explosão de liberdades na Europa do Leste. São as liberdades que foram conquistadas nas ruas pela revolução. Na luta pelas suas reivindicações as massas têm a ilusão de que seus países possam se transformar numa França, numa Suécia. Há ilusões de que a restauração da propriedade privada possa significar prosperidade. Há ilusões mas há também mobilizações. A revolução continua em curso. A insurreição contra as ditaduras burocráticas foi um momento.

Durante quarenta anos o proletariado nesses países aparentemente estava adormecido. Mas agora nós temos um processo unificado regionalmente, que pela sua importância e pelo desenvolvimento do processo revolucionário dentro da União Soviética muda toda a situação mundial. Houve um giro histórico favorável à luta dos trabalhadores, e isto cria condições extraordinárias para avançar a luta pelo socialismo no Leste Europeu.