Cultura

Vamos falar na primeira pessoa desse sujeito histórico, essa categoria de pensamento político chamada juventude. Vamos em busca desse tempo perdido, que parece ter se divorciado de nós todos, indíviduos e partidos remanescentes das melhores utopias.

Eu tenho um filho. Bem que poderia fazer esta proclamação em praça tomada de povo, com aquele timbre negro da voz de Martin Luther King: "I have a dream". I have a son, é a mesma sentença. Quisera correr meu braço ao longo do horizonte, a mão tranqüila, e compartilhar com ele: "um dia, meu filho, tudo isso não será mais deles. Um dia, este sonho será seu". Pois eu já tive 24 anos e plantei os pés no mundo da lua. O futuro estava diante de mim, inteiro, e sentir-lhe a reverberação tragando meu peito foi o tempo presente mais intransitivo que provei. Cisco ou pessoa, nada havia que eu pudesse perder. Eu já tive uma juventude que - um dia, sem saber falar, meu filho me contou - já perdi.

Deviam ser umas três, quatro horas da tarde. O tempo esfriou de repente, saímos da praia e fomos andando pra casa. Ele parecia estar de túnica quando vestiu minha camiseta, mas não tinha outra opção para se agasalhar um pouco. Aos dois anos de idade, evidentemente tropeçava na barra do seu novo traje. Resmungou um bocado mas, aos poucos, pegou o jeito e caminhou. Eu fui mais à frente, carregando o guarda-sol, cadeira, sacola, toda aquela quinquilharia que as mulheres têm mania de julgar indispensáveis nessas ocasiões e que os homens simpáticos sempre se põem a carregar. E ele foi atrás, meio emburrado, obrigado pela indumentária a dar passos mais curtos do que pretendia, cercado de duas mulheres adultas que conversavam sobre temas fundamentais: se ninguém tinha esquecido o baldinho, o que comer no almoço, a chatice da fulana.

Fiquei definitivamente impressionado com meu filho dentro daquela camiseta quando parei para olhar para trás. Ela era uns três anos mais velha que ele, do tempo em que sem fita crepe e silk-screen seria impraticável o movimento estudantil. Verde fosforescente (que já não fosforescia), ela estampava inscrições excêntricas, que terminaram por me ficar promíscuas - e depois bastante familiares. The (arrancado ao logotipo do The New York Times) e Pravda (em cirílico, copiado do diário soviético). The Pravda fora o nome de uma corrente estudantil na qual deixei alguns dois anos de minha juventude, Naquele tempo, nós misturávamos Leon Trotsky, Rosa Luxemburgo, Timothy Leary, Wilhelm Reich, Paulinho Erix, Aguinaldo Anselmo, reformistas, oportunistas, ex-fascistas (alguns depois se reconverteriam). "Temos todos vinte anos", justificávamos. "O jovem tem o futuro à sua frente, os velhos têm o futuro às suas costas", dizia Reich em A revolução sexual da Juventude e a gente repetia.

Aquela tarde praieira me pôs dentro de uma cena de cartoon. Minha camiseta, farda da militância perdida, bandeira de vestir o peito, estava ali, às minhas costas, protegendo uma criança do frio traiçoeiro. Foi esta caricatura que me fez entender, pela primeira vez, o que significava ter o futuro atrás de si. O futuro era meu filho, às minhas costas. A juventude não estava mais comigo.

E foi então que, um a um, os mitos se dissiparam feito nuvens estéreis no céu das minhas poucas pretensões. Pensar em juventude começava a ser uma lembrança equivocada, uma espécie de impostura da memória.

Parece que quando eu cheguei à estação da juventude, a festa já tinha se acabado, os últimos já tinham morrido de overdose. No final dos anos 70, integrar uma organização clandestina já não significava tanta emoção, tanto heroísmo. Ter nome de guerra na esquerda não era assim tão diferente de ter uma senha no cartão eletrônico do Itaú de Olavo Setúbal. Muita gente preferiu ter nome de guerra noturno, na rua Aurora e adjacências. A coisa mais estimulante que os militantes de muitas organizações ilegais faziam era bater de porta em porta e solicitar à dona de casa que se filiasse a um tal de Partido dos Trabalhadores. Ninguém mais pretendia que o pessoal pegasse em armas. Bastava pegar o título de eleitor. O homem do futuro socialista cedia lugar ao cidadão pleno. Pura e simplesmente.

Greves de massa, assembléias, jornadas de rua, comícios monumentais. O charme da clandestinidade ruíra, atropelado pela cena aberta da multidão pleiteando democracia, no meio da rua. O movimento estudantil não cintilava mais, nem começava nada como tinha começado com as passeatas de 1977. Os trabalhadores, novos protagonistas, entravam em cena para valer.

Busquei refúgio teórico numa frase de efeito cuja autoria deve ser de Karl Liebknecht: "a juventude é a chama da revolução; o proletariado é o combustível". Assim, o que foi escrito para enfatizar que uma juventude sozinha não fazia verão, que era preciso apoiar o processo de transformação social na solidez da mobilização organizada e consciente dos verdadeiros produtores, os detentores da força de trabalho, eu tomava como consolo em sentido inverso. Tudo bem, fazer a revolução não era mesmo papel da juventude. Ela seria assim como que um realce, um toque especial de paixão.

Ora, mas que realce idiota era aquele? A gente só fazia bater em portas, tocar campainhas: "Bom dia, a senhora não gostaria de se filiar ao PT?

Desabalados, dissipavam-se ainda mais os mitos no céu. As palavras célebres do camarada Liebknecht mostraram o seu avesso. De refúgio, tornaram-se na charada da impostura. Como quatro pilastras, ali se alicerçavam, impassíveis, quatro dos grandes mitos fundantes de uma modernidade de que todos fomos devotos, por entusiasmo ou má consciência. Jamais por necessidade. São eles: "combustível: , "proletariado", "revolução" e "juventude". É tentadora esta ordem. Que a "juventude" fale por último.

A noção de combustível é herdeira tortuosa da idéia de alavanca - a alavanca de Arquimedes - na função de metaforizar tudo o que se deseja capaz de propulsionar movimentos. Deve sua origem simbólica à invenção do motor – que por sua vez se deve à máquina à vapor -, essa maravilha que fabrica o deslocamento à custa de explosões, de choques violentos que repelem e atraem pistões em velocidades vertiginosa, metal fazendo amor com metal e arrastando a matéria. Nessa mesma perspectiva, não há como furtar-se a pensar o combustível como o substituto materialista da concepção idealista de alma. É ele, afinal, que dá vida, força, quem anima um corpo estático que carece precisamente dele para se pôr em marcha. Ele carrega, em sua finalidade física, uma predestinação, uma fatalidade metafísica (ou sua representação), posto que destina-se a causar uma alteração sobre o real que, de resto, já se sabe como será. De antemão.

Metáfora nas mãos dos revolucionários, combustível é aquilo que vem para alimentar o motor da História (com H maiúsculo), coisa que os revolucionários retêm no discurso com respeitosa intimidade, cujos movimentos futuros conhecem de cor e, sobretudo, salteado. Às explosões que têm lugar no desgoverno e no acaso da natureza, eles darão um curso lógico – dialético se possível. Às forças libertas da inconsciência o estatuto de ação consciente.

Eis que o combustível, nesse terreno, de metáfora se transfigura em mito propriamente dito. Sua função-metáfora se encerra na figuração, no empréstimo que faz do retrato do movimento concreto para uma outra natureza do movimento que, de tão vaga, ampla (ou de tão remota), é apenas abstração.

Como mito, é uma imagem maior que si mesma, já que carrega consigo uma luz própria, uma dotação imanente, alquímica, que contagia os corpos outros que seu corpo mágico triscar. É, assim, metáfora-modelo, é além disso, um mito-modelar que reduz à sua imagem e semelhança tudo aquilo que designa.

Já o proletariado não é um mito, por assim dizer, de referência. É um mito absoluto. Combustível é mito de ilustrar a coisa. Proletariado é a coisa. É ele o instrumento da História, é a massa da humanidade concentrada no tempo e no espaço; é ele a materialização do sonho de coletividade, a consubstanciação "científica" daquilo que durante a Revolução Francesa não passara de um recurso retórico: igualdade, liberdade, fraternidade. O proletariado é o bloco dos irmãos, dos iguais, dos libertos. Desde que no curso da revolução, naturalmente. Pois a revolução é o terceiro mito. Inaugurada com tintas espetaculares em 1789 na França, esta revolução ensinou ao mundo inteiro que as coisas nem sempre "evoluem". Às vezes, elas se revolucionam. Aquilo que estava sufocado vem à tona e agarra o poder. Aquilo que oprimia é banido e descartado. O substantivo revolução, com o efeito de sua carga mítica, escancarou dimensões inéditas ao pensamento humano. Está presente nas grandes conquistas da ciência da modernidade. A psicanálise, inventada por Sigmund Freud, não deixa de ser um método que, no seu modus operandi, não apenas incorpora como tira vantagens das reviravoltas tipicamente revolucionárias que podem se suceder no íntimo de cada um: forças vitais soterradas irrompem contra o que as oprime e vêm à luz. A psicanálise, expressão da civilização, busca pacificar o encontro dessas duas forças com a razão, assimilando a verdade que elas encerram. Assim é que o mito da revolução é o mito da revelação da verdade - a epifania traduzida em matéria social e histórica. Luz reveladora e, simultaneamente, torrente transformadora, a revolução fabrica modificações que seriam impossíveis pelo curso simples de evoluções lineares, que têm parte com a sensatez dos homens. Revoluções são rios de sangue ("o método é sangrento, mas a História não conhece outro"), revoluções são todas as vergonhas jorrando de todos os esgotos. Não espanta que, no senso comum de todos nós, a revolução signifique o grande ato, a celebração, o milagre construído. O maravilhoso salto de qualidade. Na Teoria da Relatividade, de Einstein, ilustração pura dessa idéia poderosa, o acúmulo de quantidade desemboca num salto de qualidade ainda mais deslumbrante, mais iluminista - a matéria, literalmente, vira luz!

Ficou no passado, sepultado pelo mito da revolução, a idéia de evolução. A Teoria de Charles Darwin, e tudo. Segundo ela preconizava, cabia ao ser adaptar-se ao meio desde que reunisse as condições para tanto. Os mais aptos, fortes, sobreviveriam aos infelizes. Jamais houve retrato mais fiel do liberalismo, do jeitão original (protestante) do capitalismo. Deus não manda na atividade econômica do homem (o homem não veio de deus, mas do macaco); o mercado é a livre concorrência (a natureza é a luta pela sobrevivência); pela livre iniciativa, o capital ajuda os mais inteligentes a vencerem, ou a inteligência leva o capital a triunfar (os mais aptos sobrevivem). Até mesmo a hereditariedade genética das aptidões (metáfora da herança burguesa) encontrou brechas importantes na Teoria da Evolução das Espécies. No terreno duvidoso dos mitos em que nos encontramos, não se deve condenar (nem condecorar) a Teoria de Darwin por conta de tantas identidades com o liberalismo. Digamos que ela foi simplesmente a mais apta a sobreviver no ambiente de crenças liberais, reforçando como reforçou o senso comum dê que as mudanças são sempre vagarosas, paulatinas, cumulativas, sem saltos nem sobressaltos. Não é por acaso que deixou-se superar pelo mito da revolução.

Pois foi a burguesia quem inventou a juventude, assim como inventou antes o mercado capitalista e depois inventou o cinema. O ser humano passa a ser repartido, não apenas no espaço e no alcance de seu corpo, mas também no tempo em que tem curso a sua vida. Toda essa repartição se configura segundo a lógica determinada pelos vínculos que a pessoa humana estabelece com o processo de produção e de consumo nas muitas fases de sua vida. Nesse sentido, a alienação conceituada por Marx poderia encontrar analogias no tempo: se pensar o homem como produto da criança que ele teria sido, ter-se-á que este homem será alienado daquela criança pela mesma e violenta teia de relações sociais que aliena o trabalho do homem do próprio homem. Assim o capitalismo pré-enquadra a pessoa em fases inúmeras: infância, adolescência, juventude, fase adulta, velhice etc. A cada uma delas corresponde um tratamento específico do sistema. A juventude não deixa de ser a mais interessante delas todas, se não por nada, pela simples razão de que concentra contradições bastante, digamos, afrodisíacas.

Nas corporações de ofício havia os aprendizes, aquela geração de novos que adquiria, à custa do convívio com os mestres, as noções técnicas e a prática necessárias para o desempenho da função à qual se candidatavam. É somente após as conhecidas transformações operadas na sociedade e na organização da sociedade pelo capitalismo que a juventude passa a ocupar o espaço público e se transforma em personagem da cena social. A juventude burguesa, bem entendido. Ela ganha o estatuto de classe social jovem, ganha de presente as escolas públicas (não necessariamente gratuitas), cumpre sua formação no seio da sociedade civil (e não mais nos estreitos limites privados de grupos fechados), toma lições de civilidade, aprende as artes do convívio social e seus negócios, assimila os mecanismos pelos quais se constroem as fortunas, inicia-se nos mistérios da política, nos desígnios da guerra. Tudo isso no âmbito do espaço público - que não poderia ter deixado de ser espaço burguês.

O entusiasmo juvenil, às vezes irritante, é traço muito característico do burguês. Artífices de ponta da Revolução Francesa tinham menos de trinta anos em 1789 (Saint-Just, Danton, por exemplo. Robespierre estava fazendo 31). Com efeito, a burguesia foi uma formidável novidade, donde o culto do novo ser assim tão marcante até hoje. A gente da esquerda vive se afirmando o novo contra o velho, mas sabe perfeitamente que isso é uma reedição menos brilhante de um arrojo tipicamente burguês. Sem a mística da juventude não haveria burguesia comme il faut.

Nas heróicas fileiras do proletariado, a juventude virou mito. Foi o único jeito, pensando bem. Seria bem pouco romântico identificar a revolução como uma proeza da terceira idade embora Lenin já beirasse seus cinqüenta anos em 1917. Coisa mais prosaica. Ele devia ter de se incomodar com aquele monte de problemas de saúde que as pessoas em geral enfrentam nessa fase da vida. De qualquer maneira, embora não fosse jovem, e embora nem Stalin e nem Trotsky fossem jovens, mas apenas nove anos mais moços que o grande líder, eles todos agiram como se fossem jovens - e isso é muito importante. Não é importante para entender a razão pela qual alguns dirigentes da juventude comunista da União Soviética, décadas depois, mantivessem o cargo ainda que a beira de se tornarem cinqüentões. É importante por outro motivo: permite ver um pouco melhor a natureza do mito da juventude e do seu significado para a esquerda em geral.

A juventude não é classe social, não é faixa etária e, ao contrário dos outros três mitos da frase do velho camarada, não guarda relação segura com alguma coisa mais objetiva. Como descende de uma mística do novo - mística que comparece diariamente nos comerciais de TV, mística que é cultivada pelas senhoras que escondem a velhice, que está presente nos modelos de automóveis etc -, o mito da juventude é pura idealização. Dizem até que ser jovem é um estado de espírito - e não há critérios comprovados de se aferir idade dos espíritos.

Resta, porém, um único ponto de contato entre o mito da juventude é sua origem histórica - que é precisamente o hiato que existe entre a maturidade física do corpo humano (capacidade para reprodução, essas coisas) e o ingresso da pessoa dentro de um papel social definido na sociedade capitalista através do qual se tomam possíveis certas constatações. Por definição histórica, burguesa, a juventude é aquele fluxo geracional que se deslocou de um estado parasitário, de absoluta dependência cívica e econômica, e que ainda não se fixou numa função produtiva. É, por assim dizer, um lapso.

Dentro da lógica capitalista, a juventude é uma estado de licenciosidade consentida, fonte necessária à reposição de quadros, regulada pelas leis do mercado. A liberdade vivenciada pelo jovem é, portanto, condição indispensável à sua própria definição, em curso, de ser social. Destinado, ao menos potencialmente, a comandar a dinâmica social, aspirante a quadro dirigente, ele constitui uma espécie de vir-a-ser que o mercado já vislumbra de antemão como elemento vital a si mesmo, a curto prazo. Para se renovar e se reciclar, o capitalismo depende de uma juventude livre. Mas apenas em termos.

É parte da regra do jogo o laissez faire, sem o que não haverá sequer mercado. Ser jovem, nesse sentido, é experimentar na própria carne a delícia da livre iniciativa, tendo o próprio corpo por único capital. É o momento sem volta nem repetição em que o ser é o senhor absoluto de sua própria identidade - que está sob ameaça iminente de ser comprada, corrompida, destroçada ou assassinada pelo mercado ou por seus agentes policiais. Para a saúde do capitalismo, a juventude é imprescindível. Para a saúde do capitalismo, a juventude é breve.

Eis a contradição da qual certos jovens teimosos, vindos das elites, emergem para a torturante carreira de revolucionários. A juventude não é um estado que é dado a proletários em geral - é para minorias, para privilegiados mas não se conhece outro tempo da vida que mais tenha mudado a vida, ou que tenha dado gás a tantas revoluções. Daí dizer que Lenin agiu como se fosse jovem: ele agiu como quem não tinha compromissos com a ordem estabelecida em torno dele mesmo e, inchando seu "capital" individual a um ponto inédito na história, virou de pernas para o ar aquela ordem para a qual não suportaria se vender (e que não encontrou meios de massacrá-lo). É bem verdade que após a revolução as coisas se burocratizaram, é verdade que os dirigentes da juventude comunista depois de Lenin eram caretas e tinham cinqüenta anos, mas tudo isso é outra história, não tem nada a ver com juventude.

Na União Soviética dos anos 30 em diante, juventude virou uma palavra sem significado. É como se as carcomidas corporações de ofício tivessem voltado a ocupar lugar sobre a face da terra. Rússia e adjacências teriam descambado numa corporação monumental de comunistas maduros. A quem fosse jovem caberia apenas a função de aprender a ser gente grande, ou em outras palavras, comunista de verdade. Nada mais a ver com a fulgurante juventude mítica de Liebknecht a chama - flama (bandeira), fogo, brilho - da revolução.

Fiquemos com esta juventude mítica. Ela, pelo menos, é muito mais divertida. Se pode ser assim exuberante na revolução aberta, ela pode ser categoria do pensamento político. Pouco importa que não passe de um mito. É um mito que produz efeitos. É, por conseguinte, bastante compreensível que incontáveis partidários da esquerda se preocupem com o tema na tentativa de estabelecer políticas voltadas para a juventude. É tolerável, mas quase sempre o esforço resulta cômico. Especialmente porque a melhor juventude, em geral, é aquela que não está no partido - anda atrás de coisas mais gostosas pra fazer. Vai daí quase todas as políticas para a juventude apresentadas pela esquerda se resumem, em grande medida, a táticas mercadológicas para atrair a juventude para a área de influência do partido e depois instrumentalizá-la. Claro que táticas assim terminam dando com os burros n'água. O que importa aqui não é propriamente o conteúdo desse tipo de política - enfadonha demais para ser levada a sério, ridícula para ser levada na brincadeira -, mas importa muito aquilo que ela vem atestar: que houve uma ruptura histórica entre o "combustível" e a "chama" da revolução. É por isso que aqueles que se auto-intitulam representantes do "combustível" (os partidos da classe operária) procuram trazer de volta a "chama" célebre, como quem procura fazer reviver o encanto partido. Ou do partido.

Sempre tenho a impressão de que toda essa confusão poderia estar resolvida desde a década de 20. Naquela época a mística da revolução era deveras eficiente. Na mesma onda Paris virou uma festa - sexo, drogas e foxtrote. Escritores, poetas, cineastas russos; surrealistas, futuristas, dadaístas; pintores, atores e até alguns militantes - gente do mundo inteiro em Paris. Mas a maior chance da revolução ruiu, ruiu na Alemanha. Ruiu na Europa. A burocratização da União Soviética e a da III Internacional recrudesce, irreversível; Mayakovski e Essenin se matam; nazismo, fascismo, 2ª Guerra mundial, avalanche de suicídios entre os surrealistas - a tragédia que todos conhecemos. A chama da revolução será dispersa em fagulhas efêmeras, divorciada daquele que teria de ser seu combustível. Ao mesmo tempo, constitui-se a sociedade de massas, acachapante, totalitária, planetária. O capitalismo consumava sua bruxaria no calor de barbárie da guerra: a sociedade de classes diferenciava os homens no que eles tinham de mais igual; a sociedade de massas os igualava naquilo que tinham de diferente. É terrível consentir, mas "a era das revoluções" (ao menos as clássicas), já estava mesmo sepultada para sempre.

A década de 60, oásis juvenil deste século, trouxe novos dados. A aliança operário-estudantil no maio parisiense (Paris é uma festa mesmo) parecia ressuscitar a aliança mítica chama-combustível. O rock’n'roll, no seu empuxo (movimento hippie, woodstock, pacifismo), concorria para igualar os jovens que eram diferenciados pela sociedade de classes e para diferenciar indivíduos nivelados pela sociedade de massas. Como um rastilho de pólvora, a teoria do foquismo correu o mundo, ou pelo menos o terceiro mundo. Uns jovens pegavam em guitarras, outros jovens recusavam-se a pegar nas armas americanas e não iam para o Vietnam. Dez anos antes, jovens aventureiros pegavam um barco e alguns fuzis na ilha de Cuba e derrubavam um ditador. A juventude, aparentemente, estava renascida. Ela podia mudar o mundo outra vez e, para tanto, precisava apenas de seu corpo liberto.

Mas, se a Revolução Russa envelheceu, se a Revolução Chinesa mumificou-se (sobretudo na figura física de seus dirigentes octogenários), a juventude dos 60 foi, também, aos poucos, ganhando seus cabelos brancos. Hoje, ainda se pode encontrar um ou outro remanescente vendendo artesanato na Praça da República, em São Paulo. O primeiro capítulo desse envelhecimento veio com a década de 70. Ficou mais famosa que Jesus Cristo aquela sentença de John Lennon: "O sonho acabou". O que o beatle esqueceu foi de avisar o mais importante: "o pesadelo vai começar ". E, com ou sem aviso, começou e foi pesado. O que na década de 20 foi uma bela diversão (sexo, drogas e foxtrote), ressurgiu sob o signo da danação: sexo, drogas e rock'n'roll. Os idealistas Janis Joplin e Jimmy Hendrix abriram a temporada de mortes por overdose que o militante do apocalipse Sid Vicious, da banda inglesa Sex Pistols, iria encerrar solenemente na entrada dos anos 80. Tudo amargava um gosto de repetição, de ressaca. Na verdade, tudo era uma repetição já nos 60 à luz do que se passara nos anos subseqüentes à revolução bolchevique, com seus reflexos culturais na Europa. Mas a década de 70 repetia sem charme e com mau hálito, na manhã seguinte, a orgia da noite anterior. A partir daí, o distanciamento entre a juventude, desiludida, e a esquerda, fracassada, só fez tensionar-se, agravar-se, machucar-se.

A década de 80 foi a minha e devo confessar que foi sem graça. A paranóia coletiva da Aids - acentuada e capitalizada por toda espécie de repressão sexual -, a onda ascendente do neoliberalismo na Europa e o malogro estupendo dos regimes socialistas - que começou gradual e evoluiu para a apoteose do desmoronamento - contribuíram decisivamente para estratificar em todos os lugares uma "juventude reacionária" (o que, evidentemente, é uma contradição em termos): jovens reacionários sempre serão uma excrescência da espécie.

É essencial que aqui se coloque a pergunta: onde se encontrava a raiz do apego que eu e muitos contemporâneos, jovens, nutrimos pela esquerda? À parte o sentimento de oposição à ditadura militar, o entusiasmo saudável com as greves e passeatas, a euforia com a criação do Partido dos Trabalhadores (um feito inédito na história do país); subsistia na esquerda independente brasileira um respaldo ético inquebrantável que nos acolhia em nossas aspirações transformadores, tão próprias da juventude da modernidade. Foi, de certa forma, o gigantesco atraso das elites políticas brasileiras, pré-modernas, o maior responsável para que não se verificasse no Brasil o mesmo fenômeno que se deu no mundo desenvolvido: a direitização da juventude. A vigência de uma ditadura violenta, obscurantista, retrógrada em todos os aspectos, combinada com a incapacidade da burguesia doméstica de assegurar garantias mínimas da própria democracia burguesa, terminou por deslocar para o campo da esquerda as únicas respostas dignas de resolver a questão da democracia (burguesa mesmo) no Brasil. Foi esse compromisso ético com a modernidade que fez das organizações e dos partidos de esquerda um refúgio quase que obrigatório para a juventude. Esta, como as forças socialistas, não têm oxigênio abaixo do nível da modernidade.

A importância dessa simples constatação é desmistificar a quase totalidade das políticas confeccionadas pelas esquerdas para atrair a juventude. São tolices. Setores dominantes de muitos partidos e organizações rejeitam o rock'n'roll como se ele fosse um instrumento de dominação da "cultura imperialista". Setores majoritários condenam o homossexualismo, as drogas, o aborto. Se dependesse dessa gente, a juventude do futuro socialista não seria substancialmente diversa da atual Associação Cristã de Moços. Seria tenebroso. Desde que a contra revolução dos costumes se abateu sobre a União Soviética de 1924, mais ou menos, em diante - foram sendo rompidas, uma a uma, as identidades entre a rebeldia juvenil e a prática revolucionária. Houve como que tréguas - e maio de 68 foi um delas - mas a cisão se manteve. O Estado bolchevique, carcaça e armadura do partido, clausura da sociedade, impôs, goela abaixo do movimento social, a partir da legislação, os padrões de bom comportamento da classe média como parte do seu expediente contumaz de massacrar o indivíduo. No mesmo movimento, decretava aos PCs do mundo inteiro as políticas mais estapafúrdias segundo suas conveniências, circunstâncias e ocasiões de Estado. A cada ano mais distante da juventude, pois a cada ano mais distante da liberdade como valor universal.

Hoje, não é mais por aquilo que as organizações socialistas têm de aparentemente (propagandisticamente) novo que elas são aptas a captar a adesão da juventude em países atrasados como o Brasil. É, antes, por aquilo que elas conseguiram - a despeito de toda a deformação e de toda a falsificação conservar de original e, paradoxalmente, de mais antigo. Trata-se do compromisso que une socialismo e modernidade, luta social e democracia. Isso é anterior mesmo a tomada do poder na Rússia.

É heterodoxo demais, mas se pode dizer que é na pureza e na inocência que a esquerda e a juventude se encontram. Em contrapartida, é através da corrupção (e de suas muitas facetas) que a primeira se afasta da segunda. Não que se suponha a juventude praticante de algum moralismo pequeno-burguês (o que até pôde ser); ela é portadora de uma ética diretamente fundada no respeito à vida e à liberdade. E sempre foi. Para o bem e para o mal - sobretudo das organizações e dos Estados que se reivindicam da esquerda.

O corolário das reivindicações, conscientes ou não, declaradas ou não, defendidas pela juventude é suficientemente revelador dessa ética. Nos últimos dez anos, por exemplo, ela se mobilizou em torno de bandeiras pacifistas, contra as armas nucleares na Europa; humanistas, contra o regime do apartheid na África do Sul, por exemplo; e ecológicas. São causas marcadamente coletivas e, mais que isso, movidas pelo sentimento de solidariedade humana. Em se tratando de juventude, o significado da palavra ética é o seu melhor significado: viver e conviver bem. Vale dizer: as causas coletivas não massacram a individualidade; o indivíduo não parasita o coletivo. Os que se chocam (ainda) com a defesa do aborto legal e das drogas descriminalizadas devem se deter sobre as duas questões e analisá-las segundo um ponto de vista mais abrangente. O aborto diz respeito à liberdade sexual, de dispor do próprio corpo; as drogas se referem à liberdade de acesso individual à chamada felicidade química. Como se sabe, as duas questões estão longe de ser resolvidas apenas pelas paixões juvenis. Tanto uma quanto outra dizem respeito também a uma complexidade que ultrapassa as fronteiras da ética e se esparrama pelos pormenores mais insignificantes da saúde pública (ou vice-versa), mas o que aqui deve ser destacado é que ambas têm raízes na individualidade (e não no individualismo, como é o caso do direito à propriedade), um valor supremo da juventude.

Individualidade e coletividade se completam e se apóiam. Ora, direis, grande novidade! Sim, mas o problema é que, dentro do nosso repertório de esquerdistas, isso é uma novidade magnífica. O socialismo real, seus seguidores e seus críticos (mas semelhantes) ainda não sabem e não dispõem de instrumental teórico para conviver com o pluralismo. Daí se origina uma de suas insuperáveis dificuldades com a juventude que, por definição, é um elemento perturbador de qualquer ordem que lhe seja exterior e, internamente, é múltipla, diversificada e plural. Isso quer dizer que a "chama da revolução", ou a parte radiante que deixa ver a marcha triunfal da classe operária, é díspar. Em outras palavras: o desajuste e a desagregação, no plano da cultura - o plano por excelência da juventude - constitui o contraponto indispensável à unidade prática de todo movimento que se pretenda transformador. Esta simples lição, cristalina e gritante, tem sido sistematicamente ignorada pelos revolucionários de carreira. Pior pra todos nós.

Humanista, pacifista, ecológica, ética, a juventude não apenas nunca foi aquela indigente que os dirigentes comunistas ousaram tentar catequisar através do Estado socialista, como poderia até ser uma espécie de professora desses velhos comunistas. Comunistas entre aspas, dezenas de aspas. O atestado sangrento dessa verdade foi passado na Praça da Paz Celestial em Pequim, há um ano. O massacre de milhares de jovens, acampados na praça, demonstrou a verdadeira face das "políticas para a juventude" dos velhos PCs.

Os estudantes que lideravam um movimento de milhões que se espalhava por todo o país exigiam apenas transparência, liberdade de imprensa, melhores condições de ensino. Cuidavam para não deixar confusão: não pretendiam derrubar nem o partido nem qualquer de seus comandantes. Cuidado inútil. Exterminá-los foi a solução encontrada pelo partido – tudo o que lhe fuja ao comando deve ser exterminado.

O massacre da Praça da Paz Celestial não foi equívoco de nenhum enigma chinês. Foi produto deliberado de uma política pensada e repensada. Veio para selar em tragédia o divórcio entre a juventude, o mito mais caro, a "chama da revolução", e o modelo real de governo comunista. O mito, tão eloqüente nas palavras dos autênticos revolucionários do início do século, de anticapitalista tornou-se antiburocrático e depois anti-estatal. O mito que jamais se deixou cair confortável dentro dos moldes do centralismo democrático foi por este reduzido a uma poça de sangue. Aquilo tudo se tornou o símbolo atroz da mutilação que o comunismo que conhecemos impôs ao seu próprio corpo, amputando de si o que lhe restava de juventude. Sepultou no mesmo, instante a ética que herdara aos tempos em que as revoluções aconteciam.

Às vezes, olhar para trás é como olhar o chão imundo da praça de Pequim. Outras vezes, é como divisar a fisionomia dos estudantes que sobreviveram e que se espalham, como fogueira secreta, pelos lugares onde se pode viver. A despeito dos aparelhos (algozes) e suas políticas de catequese (e aniquilamento), a juventude prossegue, é o mito mais maravilhoso de todos aqueles que simulam esta membrana precária a que chamamos realidade. Creio que a juventude vence. Perdê-la nem sempre é assinar um pacto de morte com o gênero humano. Pode ser uma atitude bem mais simples, imperceptível, de notar que há um futuro, andando com pernas próprias, atrás de nós mesmos. Foi assim que minha juventude se despediu de mim - e continuou viva. Crer nela, como na vida, talvez seja uma condição superior que não tenhamos que perder.

Eugênio Bucci é editor de Teoria e Debate, foi diretor do DCE da USP em 1981 e presidente do CA "XI de Agosto" em 1984.