Começam lentamente a dissolver-se as névoas que obscureceram o horizonte do Brasil. Depois de meses de surpresas e hesitações, setores organizados da classe trabalhadora finalmente opõem um mínimo de resistência ao governo Collor. Embora não tenham conseguido deflagrar a greve geral, sindicatos combativos fizeram muitas paralisações e obtiveram alguns reajustes em negociações penosas. Servidores públicos e empregados do setor terciário têm estado à frente dessas lutas. Ambigüidades da política do governo e o medo de demissões retardaram o início das reações. Mas os próximos meses permitem prever novas e numerosas greves. E a CUT consegue barrar mais uma vergonhosa tentativa de pacto social à brasileira: nada para os trabalhadores, tudo para os patrões e vivas para o governo.
As bancadas de oposição no Congresso não conseguiram impedir a aprovação das medidas provisórias do Executivo. Mas, pouco a pouco, os parlamentares respaldados pelo clamor das ruas - foram rearticulando uma resistência que pode levar o governo ao recuo, inclusive na política salarial.
O Judiciário, após demonstrações de fragilidade, conseguiu impor algumas derrotas ao Executivo. A onda autoritária e anticonstitucional que marcou os primeiros cem dias de governo Collor ainda não se estancou. Mas cada vez mais o Executivo encontra dificuldade em governar discricionariamente. Embora a contragosto, é obrigado a negociar.
Collor não consegue construir seu próprio partido. Os blocos parlamentares de apoio ao governo fazem-se e se desfazem ao sabor de conveniências clientelísticas e fisiológicas. Os caciques colloridos não foram capazes de organizar os "descamisados" e transformá-los em força social atuante. A campanha de 90 começa a polarizar o eleitorado entre a aprovação e a condenação do governo Collor. Acordos e frentes vão delimitando dois campos opostos.
Prefeitos progressistas - os do PT à frente - já demonstram seu descontentamento com os rumos da política federal. Governadores têm restringido ao máximo demonstrações de apreço explícito a Collor.
Os meios de comunicação de massa, agentes da vitória eleitoral de Collor e sustentáculos de sua popularidade a partir da posse, já não conseguem escamotear por completo algumas críticas, embora tímidas. Os militares, avalistas da estabilidade do governo, têm de ser diariamente adulados para não franzir o cenho em sinal de descontentamento.
Entidades e associações, populares e de classe média, convocam reuniões e debates para analisar a conjuntura e cresce cada vez mais o número dos que criticam a política oficial. Alguns economistas chegam a afirmar categoricamente que o plano econômico já fracassou em definitivo. A inflação foi reduzida, mas tudo indica que está sendo retomada a passos largos. Indícios de paralisações e queda da atividade econômica e recessão alastram-se para setores cada vez mais numerosos. O desemprego aumenta e as demissões se avolumam. Os investimentos escasseiam. Uma onda de pessimismo começa a varrer camadas cada vez mais amplas da sociedade. Pesquisas de opinião pública - apesar da manifesta fragilidade de seus métodos e resultados - apontam quedas consideráveis na popularidade do governo de Fernando Collor de Mello e de seu plano econômico, principalmente nos centros urbanos e nas faixas mais escolarizadas da população.
Em setores empresariais, descontentamentos e desconfianças não chegam a assumir o caráter de oposição, mas são muitas as frustrações e os arrependimentos. Agora é tarde. Objetivamente, o governo Collor favorece os grandes empresários, latifundiários, banqueiros e multinacionais. Mas a ditadura militar e o governo Sarney também o faziam. Nem assim conseguiram evitar o aprofundamento da crise brasileira. Daí que, com Collor, também a classe dominante tem dúvidas e incertezas.
Pouco a pouco vai se consolidando novamente uma correlação de forças polarizada e nítida, semelhante à que marcou o segundo turno das eleições presidenciais do ano passado.
Campanha e governo
Em 1989, a burguesia hesitou muito antes de decidir-se pelo seu candidato preferencial. Até que Collor irrompesse nas pesquisas eleitorais, a classe dominante brasileira oscilava entre velhos e novos paladinos do capitalismo. A vinculação orgânica de Collor com a burguesia sempre fora óbvia, tanto para esta quanto para seus adversários. Já a adesão ideológica do candidato ao projeto da classe dominante não parecia ser tão clara: ele falava em social-democracia, investia contra marajás e mordomias, dizia-se "moderno" e, portanto, inovador; daí as hesitações em torno de outros candidatos.
No entanto, logo prevaleceram dois fatores que levaram a burguesia a escolher Collor: a ameaça de crescimento eleitoral de Brizola e Lula, e a percepção de que o discurso de Collor era figuração e demagogia. Percepção que, evidentemente, não foi alcançada pela classe média e por considerável parcela da classe trabalhadora. Lula, o PT e a Frente Brasil Popular apresentaram uma proposta clara de governo alternativo. Clara o suficiente para precaver a burguesia e assustar a classe média. Mas não suficientemente clara para atrair todos os setores sociais objetivamente beneficiários da proposta democrático-popular. Isso, e mais acidentes de percurso, precipitaram a vitória de Collor no segundo turno.
Mas se é verdade que a burguesia brasileira encontrou em 89 o seu candidato ideal - isto é, conservador, vazio e sem escrúpulos -, terá ela achado, em 90, o estadista que buscava?
Collor já deve estar percebendo, a esta altura, que uma boa assessoria de publicidade na campanha pode ser suficiente para ganhar uma eleição, mas é incapaz de sustentar um governo e dirigir um país. E a burguesia, por seu lado, embora confie inteiramente em que Collor saberá defender seus interesses atuais, pode não ter tanta segurança em perspectivas exitosas de desenvolvimento capitalista a médio e longo prazos.
O governo Collor tenta representar, no Brasil, a realização de uma nova política internacional do capitalismo: o chamado neoliberalismo, que está conquistando corações e mentes de vários governos na Europa e na América Latina. O neoliberalismo consiste em preservar os interesses da classe dominante, reduzindo o Estado à exclusiva função de aplicar o dinheiro público em infra-estrutura destinada ao crescimento da iniciativa empresarial privada, e, ao mesmo tempo, restringindo o seu papel público ao controle sobre a classe trabalhadora e, quando necessário, à repressão. Isso tudo implica intensificar ao máximo o caráter intervencionista desse mesmo Estado. Aparentemente paradoxal, mas com a irrefutável lógica da Máfia: uma proposta que ninguém consegue recusar.
Daí que o arrocho salarial, o desemprego e a recessão não constituem defeitos do plano econômico de Collor, mas sim atributos essenciais de sua política. Nesse sentido, não fora por demais trágica a ironia, é que se diz que o plano está dando certo e tem pleno êxito. A falha está em que a estabilização monetária não acabou com a inflação, apesar do roubo praticado pelo governo Collor ao seqüestrar poupanças, depósitos e salários dos trabalhadores.
Desemprego e recessão, misturados com inflação, certamente levarão a classe trabalhadora à miséria e ao desespero. Mas também podem gerar o pânico da burguesia com a diminuição dos negócios e o atávico pavor das elites diante do risco de revoltas incontroladas das massas.
É uma situação que provoca muitas dúvidas entre numerosos analistas. O Brasil está numa nova conjuntura, simplesmente? Ou se encontra diante de um novo ciclo de desenvolvimento capitalista? O Plano Collor é o verdadeiro projeto histórico da burguesia para a sociedade brasileira? Ou é apenas mais uma semifrustrada tentativa de combate à inflação, como tantas outras? Com Collor a burguesia está plenamente no poder, dirigindo hegemonicamente o país? Ou o governo atual é só um grupo improvisado mais ou menos às pressas e à margem, sem saber bem o que fazer e para onde ir?