A trajetória do ex-dirigente do PCB sempre esteve ligada à do país
A trajetória do ex-dirigente do PCB sempre esteve ligada à do país
Comunista, judeu, filho de imigrantes russos, Jacob Gorender nasceu em Salvador, em 20 de janeiro de 1923. Sua trajetória passa pela campanha expedicionária, na Itália; por Moscou, durante o 20º Congresso do PCUS; e deságua no presídio Tiradentes, nos anos 70. Autodidata, é autor de diversos livros, entre os quais O escravismo colonial, Combate nas trevas, A escravidão reabilitada e Marcino e Liberatore (diálogos sobre marxismo, social-democracia e liberalismo). Nos últimos anos, Gorender vem se dedicando ao estudo de temas da política e da economia internacional. Tornou-se professor visitante do Instituto de Estudos Avançado da Universidade de São Paulo e ministrou em 1997 um curso de pós-graduação sobre "História e Marxismo", no Departamento de História da USP. Jacob Gorender é casado com Idealina da Silva Fernandes, filha de Hermogênio da Silva Fernandes, um dos fundadores do Partido Comunista. Filiado desde 1994 ao Partido dos Trabalhadores, Jacob concedeu esta entrevista, em 1990, a Alípio Freire e Paulo de Tarso Venceslau.
Jacob, as recentes mudanças no mundo socialista afetaram em alguma coisa a sua firmeza, a sua visão de socialismo e revolução?
A minha firmeza a respeito do marxismo como método de pesquisa e compreensão da vida social não foi afetada por esses acontecimentos. Eu continuo com a convicção de que o próprio marxismo pode explicá-los. Para isso, entretanto, é preciso que o marxismo seja entendido sem limitações de caráter dogmático e aplicado com inteira criatividade. O próprio marxismo precisa se renovar.
Eu não posso deixar de refletir sobre esses acontecimentos que têm se desenrolado com uma velocidade alucinante e são de caráter completamente inédito. As previsões ao nosso alcance são todas elas condicionais. E, sem dúvida, trata-se de um momento em que o capitalismo está levando vantagem. Querer esconder isso é fugir à realidade. O movimento inspirado pelo marxismo já passou por outros momentos de crise ao longo da história e conseguiu superá-las. Entretanto, penso que esta é a pior de todas as crises. É a mais grave, porque agora se colocou em causa a possibilidade do próprio projeto de construção de uma nova sociedade, inspirada em princípios socialistas. O que nunca esteve em causa, em crises anteriores, de maneira tão urgente, decisiva e generalizada. Mas creio que ainda não chegamos ao fundo do poço.
Como foi seu processo de formação? A sua ida para a Itália, como voluntário na Força Expedicionária, foi resultado de uma reflexão político-ideológica?
Sem dúvida, a apresentação como voluntário para a FEB, em 1943, quando tinha 20 anos, já é conseqüência de todo um processo anterior da minha formação política. Eu nasci numa família judia, muito pobre. Meus pais vieram do antigo Império Russo. Meu pai, da Ucrânia. Minha mãe, da Bessarábia. Meu pai morou um tempo em Odessa, onde viveu os acontecimentos formidáveis de 1905. Estava no cais do porto, quando ali ancorou o encouraçado Potemkim. No mesmo ano ele lutou, de armas na mão, ao lado de revolucionários russos, contra os bandos de reacionários que pretendiam massacrar os judeus. Depois, com o fracasso da Revolução de 1905, com os pogroms e toda a repressão terrível que se desencadeou, ele se incorporou à grande vaga judaica que saiu da Rússia. Afinal, Nathan Gorender veio ter a Salvador. Ali se fixou e se casou com minha mãe, Anna, que chegou mais tarde. Os cinco filhos e meus pais pertenciam àquela categoria dos judeus sem dinheiro descritos num romance de Michael Gold, célebre nos anos 30. Morávamos em cortiços e, às vezes, tínhamos dificuldades sérias até para atender necessidades elementares, como alimentação e roupa. Isso marcou minha mentalidade em formação. Mas não só isso: meu pai era um homem de esquerda, anti-sionista — como, aliás, a maioria dos judeus daquela época —, e me falava do movimento revolucionário russo. Fizera apenas o curso primário, mas lia avidamente. Exerceu forte influência nas minhas inclinações. Interessante é que me tornei materialista não por via do marxismo, mas do darwinismo. Aos 12 anos, aproximadamente, comprei, num sebo da praça da Sé, em Salvador, um volume de Haeckel, um darwinista alemão. Aquela leitura me transformou. Procurei informações em outras fontes e aderi ao darwinismo. Sem conhecer nada ainda a respeito do marxismo. A concepção darwinista a respeito da origem do homem erradicou a visão religiosa. Daí porque me desprendi da religião muito cedo. E adquiri uma concepção materialista evolucionista, posteriormente fortalecida pelo marxismo. Com grandes dificuldades, consegui terminar o curso que, naquela época, se chamava ginasial e entrar na faculdade de direito. No ginásio, depois na faculdade, meu horizonte político e cultural ampliou-se. A essa altura, já nos encontrávamos na época do Estado Novo: censura à imprensa, prisões, perseguições. De tudo isso eu ouvia falar.
Duas circunstâncias também tiveram importância na minha formação: a primeira — o fato de ter crescido em Salvador — me proporcionou contato íntimo com a cultura afro-brasileira. Fui impregnado pela sensibilidade estética de origem africana no que diz respeito à música, à visão plástica, à escultura, às cores e à coreografia, sem falar no paladar. A outra circunstância é que a Bahia foi um estado de participação pequena nos acontecimentos de novembro de 1935, quando se deu o levante militar revolucionário em Natal, Recife e Rio de Janeiro. Levante aliancista, mas dirigido pelos comunistas. Em Salvador, a repressão também foi pequena e, como o ambiente na capital da Bahia era menos opressivo do que em outras partes, lá vieram ter comunistas de vários estados, sobretudo do Nordeste. Este afluxo de militantes politizados iria converter Salvador em um centro de esquerdismo com influência nacional nos anos posteriores. E daí se falar até em Grupo Baiano, e coisas do gênero.
O nome de Luís Carlos Prestes se irradiava de forma lendária. Ele estava na prisão e quem fosse de esquerda ou anti-Estado Novo não podia deixar de reverenciá-lo. Ao mesmo tempo, crescia na Europa a vaga nazista, causando preocupações e ansiedade, particularmente entre a comunidade judaica da Bahia.
Comecei a trabalhar aos 11 anos, dando aulas particulares. Em 1940, consegui emprego em um jornal hoje extinto, chamado O Imparcial. Iniciei-me como arquivista aos 17 anos, passei a repórter e depois a redator. Mais tarde, trabalhei em outros jornais em Salvador. Aí, minha politização avançou. Eu era decididamente antifascista e admirava sem reservas a União Soviética. Para esclarecer bem o quadro político e cultural de Salvador, ali não havia nenhum trotskista, tanto quanto pude saber. Quem fosse antifascista e de esquerda admirava a União Soviética e, consequentemente, aplaudia Stalin.
No movimento estudantil, já como universitário, foi intensa minha atividade na União de Estudantes da Bahia. Eleito membro de sua diretoria, fui contatado por Mário Alves, já militante do Partido Comunista. Assim, por intermédio de Mário, me tornei militante do PC.
Em que ano foi isso?
No início de 1942. Constituímos uma célula universitária. O PC estava desarticulado do ponto de vista nacional. Em 1940-41, Filinto Müller, o sinistro chefe de polícia [do Estado Novo], tinha conseguido prender quase todos os membros do Comitê Central. Sobreviveram núcleos comunistas em poucos estados, que agiam por conta própria. Na Bahia, os comunistas tiveram uma articulação bastante desenvolvida. Inclusive, fundaram e faziam circular uma revista chamada Seiva, de edição irregular, publicada desde 1939. Foi uma revista para a qual escreveram grandes nomes de orientação liberal, anti-Estado Novo, que iriam se projetar nacionalmente nos anos posteriores, como, por exemplo, Luís Viana Filho, Aliomar Baleeiro, Nestor Duarte e Orlando Gomes. Eu me tornei secretário dessa revista em 1942. Foi sua última fase e a mais intensa, porque se tornou possível editá-la com razoável regularidade.
Em janeiro de 1942, o Brasil rompeu relações diplomáticas com o Eixo e passou a colaborar com os Estados Unidos. Como represália da Alemanha nazista e a Itália fascista, em agosto, navios mercantes brasileiros foram torpedeados no litoral de Sergipe e da Bahia por submarinos, e centenas de mortos vieram ter às praias. A notícia causou comoção. Em Salvador, as massas espontaneamente se lançaram às ruas, atacando e saqueando estabelecimentos comerciais e residências de alemães e italianos. Os estudantes, que tinham certa organização, procuraram tomar a frente dos protestos e evitar atos dessa natureza. Eu me empenhei muito no movimento, fiz discursos em praça pública, concitando à declaração de guerra contra as potências do Eixo.
Isso já dentro do PC?
Eu já estava dentro do PC. Havia uma direção estadual organizada, que tinha ramificações por meio de algumas dezenas de militantes em sindicatos e associações diversas. Alguns desses militantes eram intelectuais, outros eram artesãos e uns poucos propriamente operários. Com escassas indústrias, a Bahia tinha um proletariado pequeno. Depois de uma semana de vigorosas agitações, que ocorreram não somente em Salvador, mas em todo o país, Getúlio Vargas declarou estado de beligerância contra a Alemanha e a Itália, de maneira muito morna, pelos próprios termos da declaração. A atuação dos estudantes, dos antifascistas e dos comunistas se ampliou. Tivemos um campo maior para fazer propaganda, difundir idéias etc.
Em maio de 1943, passou por Salvador o general Manuel Rabelo, então ministro do Superior Tribunal Militar. Juntamente com Oswaldo Aranha, havia fundado a Sociedade dos Amigos da América e estava criando núcleos dessa entidade em vários pontos do país. Ele veio à Bahia e ali foi recepcionado por todas as correntes democráticas e antifascistas que faziam oposição ao Estado Novo. Eu já o tinha entrevistado para um dos jornais do qual era repórter, O Estado da Bahia, mas procurei obter uma entrevista especial para a revista Seiva. O general percebeu que tinha oportunidade de falar com mais amplitude e fez uma crítica direta à condução da política de guerra por Getúlio Vargas e seu ministro, general Eurico Dutra. Já estávamos em 1943 e o general Rabelo declarou (repito de memória): "Nada foi feito. Precisamos estar na frente de guerra, é o nosso dever. Precisamos preparar nossos soldados para combater na Europa contra o nazismo, inimigo da humanidade." E mais: "Tem-se feito o possível para sabotar a nossa participação. Soldados são convocados e submetidos à humilhação de limpar latrinas e estrebarias nos quartéis, sem receber treinamento militar. Urge reverter essa política, desmistificar o anticomunismo e realmente cumprir o nosso dever de participar da abertura da segunda frente." A segunda frente era a ofensiva aliada na Europa Ocidental, que devia ser aberta porque, com isso, o final do conflito mundial seria abreviado. Eu tive o cuidado de mostrar a entrevista na sua forma final ao general e ele aprovou o texto. Todas as publicações estavam sob censura, mas nós driblamos o censor de nossa revista, que era um tanto relaxado, e a entrevista saiu. É evidente que ela chegou logo ao conhecimento das autoridades policiais e militares, na Bahia e no Rio de Janeiro. Provocou escândalo. Considero que esta entrevista do general Manuel Rabelo é a primeira manifestação impressa contra o Estado Novo. Ela é anterior ao famoso "Manifesto dos Mineiros", que começou a circular meses depois. A entrevista não contém uma condenação explícita ao Estado Novo, mas ataca de maneira contundente a sua política, diretamente no que se refere ao esforço de guerra e, indiretamente, às suas inclinações pró-fascistas. Em conseqüência, a revista foi apreendida nas bancas e eu, mais os dois diretores, João e Wilson Falcão, fomos parar na cadeia, indiciados num processo perante o Tribunal de Segurança Nacional. Interpelado a respeito da entrevista, a atitude do general Rabelo foi de irreprochável dignidade: confirmou integralmente o texto. Isso criou uma situação esdrúxula: o entrevistado não podia ser levado a julgamento — tratava-se de um ministro do Superior Tribunal Militar de grande prestígio — mas os jornalistas eram indiciados em processo judicial. Em julho, reuniu-se o Congresso da UNE. Como nos anos anteriores, Getúlio concedeu audiência aos congressistas. Nesse encontro, a nova direção da UNE levantou a questão da nossa prisão. Getúlio mandou anotar e determinou a nossa libertação. O processo foi arquivado, mas a revista deixou de circular. Logo em seguida, o general Dutra viajou para os Estados Unidos. Ali, ele "desceu do muro" e concordou com a formação e envio à Europa de uma Força Expedicionária Brasileira. O comandante militar da região da Bahia, general Demerval Peixoto, esteve no Rio e, na volta, declarou que estava aberto o voluntariado para a FEB. Eu me apresentei voluntário.
E quantos baianos se apresentaram?
Ignoro o total. Passaram pelos exames médicos e foram incorporados à tropa talvez uns 600. Quase nenhum universitário e um certo número de secundaristas. A maioria era gente do povo. Uma parte deles se apresentou como voluntário até como quem procura trabalho, porque o desemprego maciço era crônico na Bahia. Foi no campo de batalha que esses voluntários ganharam motivação ideológica. Alguns deles morreram lutando com valentia.
Você se apresentou como voluntário por orientação do PCB?
Nessa época, o PCB estava desarticulado no plano nacional. Criou-se no Rio, em 1942, a chamada Comissão Nacional de Organização Provisória, celebrizada pela sigla CNOP, a qual tinha à sua frente Maurício Grabois. Depois, juntaram-se a ela João Amazonas e Pedro Pomar, fugitivos do Pará, e Diógenes de Arruda, da Bahia, além de militantes que atuavam no eixo Rio-São Paulo. A CNOP procurou atrair a direção da Bahia, mas esta não aceitou o contato. Havia infiltração policial na esquerda, as quedas de 1940-41 repercutiam e se reproduziam. Considerava-se imprudente ligar-se com qualquer grupo do qual não se tivesse informações seguras. Os dirigentes da CNOP não eram naquela época homens de prestígio nacional. Daí a atitude da direção do PC na Bahia ter sido refratária.
Em julho de 1943, a CNOP resolveu promover uma conferência nacional, obviamente clandestina, em um local da Serra da Mantiqueira. Mário Alves estava no Rio de Janeiro, tomando parte do Congresso da UNE. Contatado por Diógenes de Arruda — que já o conhecia —, aceitou participar da Conferência da Mantiqueira. Embora não tivesse autorização da direção baiana, ele tomou parte na conferência e isso causou irritação em Salvador.
Mário Alves conversou comigo e eu aceitei os argumentos dele, de que a CNOP constituía a representação idônea do PC. Então, comecei a saber o que era a famosa luta interna dos meios de esquerda. Tentamos formar um núcleo da CNOP na Bahia mas, é claro, a direção tinha influência muito maior e o que conseguimos naqueles primeiros meses foi pouco significativo. Entretanto, fizemos uma ligação especial com os marinheiros do encouraçado Minas Gerais, ancorado na Baía de Todos os Santos. Era um pequeno grupo, e um líder deles contatou Giocondo Dias, membro da direção do PC na Bahia. Mas Giocondo o desaconselhou a formar uma base comunista, porque se fosse descoberta daria pretexto a uma provocação policial. Os marinheiros não desistiram e conseguiram contato com a gente da CNOP do Rio de Janeiro, que, por sua vez, os encaminhou para Mário Alves. Eles eram sete ao todo. Esse núcleo, depois, alcançou notável expansão na Marinha, vindo a ter mais de 40 militantes. Por ocasião das quedas no setor militar do PC em 1951-52, alguns sofreram prisão e torturas e outros foram expulsos.
Então, na verdade, minha atitude de ir para a FEB não tem a ver com a direção do PC na Bahia. Tem mais a ver com esse núcleo da CNOP que atuava em Salvador. É fruto, também, da convicção de que constituía o nosso dever o combate ao nazi-fascismo, mesmo com risco de vida. Não iríamos ficar à margem do esforço de guerra brasileiro. E, assim, em novembro de 1943, me incorporei a uma unidade convencional do Exército. Em março de 1944, finalmente, o nosso contingente de algumas centenas de soldados foi transferido para o sul, num navio pessimamente aparelhado, sob a proteção de navios de guerra. Chegamos ao Rio e, depois de um curto período de treinamento, fomos para a Europa. Desembarcamos em setembro em Nápoles. Éramos 10 mil soldados, em dois navios norte-americanos. O segundo contingente da FEB. Durante a viagem, a escolta naval precisou intervir e atacou submarinos alemães, que se aproximavam do comboio.
Qual era a linha do PCB nessa época?
A linha que a CNOP adotava era de união nacional em torno do governo de Getúlio Vargas, na guerra contra o nazi-fascismo e na paz, o que revelava forte inclinação adesista. Para que se faça justiça, deve-se esclarecer que isso era decorrência de uma direção sobre a qual Prestes não tinha influência, porque estava preso e impossibilitado de fazer contatos. Os principais responsáveis por essa palavra de ordem de apoio a Getúlio, na guerra e na paz, eram homens que depois se tornaram ultra-esquerdistas, como João Amazonas, Diógenes de Arruda, Maurício Grabois e Pedro Pomar.
Como foi na Itália?
A minha participação no combate se deu como soldado de um pelotão de transmissões de infantaria. Eu estive sete meses na linha de frente, não raro nos postos mais avançados, para instalar telefones e reparar linhas interrompidas. Passamos quatro meses nos Apeninos, debaixo do fogo da tropa alemã em Monte Castelo e arredores. Não vou dizer que a FEB teve um papel decisivo na guerra. Dos 25 mil brasileiros que partiram para a Itália, cerca de 15 mil estiveram em combate. Muito pouco em comparação aos milhões que lutaram na Europa. Nem por isso subestimamos a contribuição de sangue dos pracinhas brasileiros, sua tenacidade e heroísmo.
Mas o que nos interessa aqui é que a FEB teve uma base comunista. Nunca se falou nisso: é um aspecto da história da FEB abordado pela primeira vez. Essa base comunista incluía soldados e oficiais. Evidentemente, os contatos entre os seus membros eram precários, porque pertencíamos a unidades diferentes e atuávamos num front de 20 quilômetros. Contudo, vez por outra, conforme as circunstâncias, tornavam-se possíveis os contatos. Dessa base comunista na FEB saíram duas iniciativas relevantes. Uma delas foi a de um manifesto, em princípios de 1945, pelo restabelecimento do regime democrático no Brasil, argumentando que a FEB, que lutava contra o nazi-fascismo na Europa, não podia aceitar um regime antidemocrático em nosso próprio país. O manifesto recebeu a assinatura de cerca de 200 oficiais, o que causou enorme repercussão e, decerto, contribuiu para o desmoronamento do Estado Novo.
A outra iniciativa foi a da fundação de uma Associação de Ex-combatentes, quando do nosso regresso ao Brasil. A associação não era comunista, como afirmaram oficiais reacionários, mas os comunistas tinham uma participação importante na diretoria. Possuía tanto prestígio que, depois de sua fundação, no Distrito Federal, surgiram outras associações em diversos estados. Realizamos, em 1947, um grande desfile no Rio de Janeiro, o primeiro dos ex-combatentes, em protesto contra a incúria do governo em relação aos pracinhas. A maioria era de gente pobre, com dificuldades de reintegrar-se à vida civil e encontrar empregos. Não poucos sofriam as seqüelas físicas e psíquicas da guerra. Tinham direito ao amparo do Estado.
A esta altura, desejo manifestar-me sobre uma questão que suscitou controvérsias internacionais. Os comunistas italianos e franceses foram criticados porque não tomaram o poder, no momento do colapso do exército alemão em seus países. Sem avalizar a linha política dos comunistas italianos e franceses — antes, durante e após a guerra —, considero a crítica infundada. Exagera-se a força política e militar de que dispunham os comunistas da Resistência. A iniciativa da tomada do poder implicaria confronto com as numerosas e bem armadas unidades militares dos EUA e da Inglaterra, prestigiadas diante das massas populares como libertadoras da ocupação nazista. Além disso, o Japão ainda não estava derrotado. Terrivelmente sangrada pelo conflito, seria fatal para a União Soviética virar as armas contra os aliados para apoiar insurreições fora de sua área de controle. Observei diretamente a conjuntura, porque me encontrava na Itália.
Qual era o clima político quando você voltou da Itália?
Quando voltei ao Rio, em agosto de 1945, encontrei o PC na legalidade, com sedes nos bairros e um Comitê Nacional, com placa, na rua da Glória. Minha sensação inicial foi de deslumbramento. No Rio de Janeiro, na companhia de uma dezena de ex-combatentes, tive o primeiro contato com um homem legendário: Luís Carlos Prestes. Ele nos concedeu uma audiência. Tinha saído da cadeia havia poucos meses. Mostrava as conseqüências físicas da longa prisão: magérrimo, tez extremamente pálida, olheiras fundas. Não manifestou interesse em saber o que tinha sido nossa experiência. Procurou aproveitar o tempo para transmitir suas idéias a respeito dos acontecimentos no país. Naquele momento, a orientação do PC era contra as duas candidaturas à presidência da República, tanto a de Dutra como a de Eduardo Gomes, consideradas gêmeas; e pela convocação de uma Assembléia Constituinte antes das eleições presidenciais. Na prática, isso confluía com os interesses do próprio Getúlio. Já havia, então, o chamado Movimento Queremista, o famoso "Queremos Getúlio", que iria resultar na fundação do PTB.
Depois de alguns meses no Rio de Janeiro, regressei a Salvador. E aí se colocou para mim uma opção existencial. Eu podia concluir o meu curso de direito e fazer carreira de advogado, ou continuar no jornalismo, na militância. Não vacilei em me tornar revolucionário profissional, isto é, em me dedicar, em tempo integral, à atividade do Partido Comunista. Tornei-me membro do secretariado do Comitê Municipal, em Salvador, depois membro do Comitê Estadual da Bahia. Mais tarde, passei a secretariar O Momento, diário que o partido fundou em Salvador. Em fins de 1946, fui convocado para fazer parte da redação do Classe Operária, órgão central do PC, o que aceitei imediatamente, porque implicava a transferência para a capital do país. Viajei ao Rio de Janeiro e, como redator do Classe Operária, assistia às reuniões do Comitê Central. O responsável do Comitê Central pela imprensa, Pedro Pomar, era quem mais vinha à redação. Mas eu tinha contato também com os outros dirigentes, na sede do Comitê Nacional. O secretariado era constituído por Prestes — secretário-geral — e pelas principais figuras da antiga CNOP: Arruda, Pomar, Amazonas e Grabois.
O PC vinha conquistando espaço, Prestes estava no auge de sua fama. Ele havia passado nove anos na prisão, ainda era o "Cavaleiro da Esperança". No seu primeiro ano de legalidade, o PC teve 10% da votação nas eleições nacionais de dezembro de 1945, quando foram eleitos uma Assembléia Constituinte e o presidente da República. Notem bem, um coeficiente que o PT só veio a atingir, no plano nacional, nas eleições de 1986, seis anos depois de fundado! O Partido Comunista conseguiu eleger uma bancada de 14 deputados federais e um senador, o próprio Prestes, pelo Distrito Federal. E ainda elegeu, em 1946 e 1947, grandes bancadas em Assembléias Estaduais e na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e de outras cidades: São Paulo, Recife, Fortaleza, Sorocaba, Santo André etc. A linha do PC era de ordem e tranqüilidade, caminho pacífico e eleitoral e de aliança com a chamada burguesia progressista. A revolução que se pretendia era democrático-burguesa e a burguesia tinha nela o seu lugar, o que levava o PC a recomendar aos operários que apertassem os cintos, que aumentassem a produtividade e que se entendessem com os patrões. Tudo isso em prol da luta contra o imperialismo e contra o latifúndio semifeudal. O que estaria atrapalhando o desenvolvimento do país era o que Prestes chamava "um grupelho fascista", encastelado no poder ao redor do presidente Dutra. A conseqüência dessa linha política foi que o PC se viu inteiramente desprevenido quando a reação lançou uma ofensiva que o jogou na ilegalidade. Duas figuras de segundo plano, o deputado Barreto Pinto e Himalaia Virgulino, ex-procurador do Tribunal de Segurança Nacional, pediram a cassação do registro do PC, sob a alegação de que o partido teria ligações, inclusive de ajuda financeira, com entidades internacionais subversivas.
Foi convocada uma reunião de ativistas no Rio de Janeiro, no salão da Casa do Estudante, e Prestes nos fez uma preleção. E, ali, ele nos disse que a pretensão de jogar o partido na ilegalidade era ridícula, que não havia ambiente para isso, que não era do interesse da burguesia progressista colocar o PC na ilegalidade. A tentativa do "grupelho fascista" estava fadada ao fracasso. Tal orientação desmobilizou os militantes para denunciar e barrar a trama anticomunista. Mas, um mês depois dessa preleção, o Tribunal Eleitoral reuniu-se e, contrariamente às expectativas de Prestes, decidiu cassar o registro de funcionamento legal do PCB.
Uma vez que a decisão judicial só entraria em vigência no dia seguinte, houve, nas sedes do PC, um corre-corre para queimar documentos ou retirá-los. Mas alguns dos arquivos caíram em mãos da polícia, com os fichários de militantes. Nas semanas seguintes, com freqüência, apareciam na imprensa do Rio de Janeiro, nas páginas de classificados, pequenas comunicações, às vezes com retratinhos, em que fulano de tal declarava que nunca teve nada a ver com o Partido Comunista do Brasil, que não foi militante etc. Eram pessoas cujas fichas tinham sido apreendidas e, pressionadas pelo DOPS, desmentiam publicamente qualquer vínculo com o PC. Mesmo porque a militância de 200 mil pessoas à qual o PC proclamou ter chegado era fictícia, numa proporção significativa. É uma cifra inchada, porque parte desses militantes foi alistada em mesinhas colocadas nas ruas, em festas e comícios, de maneira aleatória. Na verdade, tratava-se mais de eleitores ou de simpatizantes ocasionais.
E assim, em maio de 1947, o PC perdeu seu registro de partido legal e, em janeiro de 1948, também se consumou a cassação dos mandatos de seus deputados e vereadores eleitos. De volta à ilegalidade, o PC teve uma reação desequilibrada, que bem refletia a débil capacidade tática dos dirigentes. A primeira reação — e aí a influência principal foi de Prestes — consistiu em lançar uma campanha pela renúncia de Dutra. Ora, como exigir a renúncia, se o presidente Dutra estava com força total no Executivo e tinha maioria folgada no Parlamento, por meio do acordo do PSD com a UDN? Não havia movimento que pudesse conduzir a essa renúncia. A palavra de ordem se perdeu no vazio e o PC se retraiu. Ao mesmo tempo, em consonância com o aprofundamento da Guerra Fria no exterior, a política soviética tomou o rumo do endurecimento. Em 1948, realizou-se, em Varsóvia, a reunião de criação do Cominform (Comitê de Informação, com sede em Bucareste, o qual editou o seminário Por uma paz duradoura, por uma democracia popular!). Dessa reunião resultou a radicalização esquerdista dos regimes políticos do Leste Europeu. Depois da guerra, haviam se instalado governos de coalizão nesses países, com representantes de partidos tradicionais junto com os comunistas. Porém, a direção soviética resolveu responder ao desafio capitalista da Guerra Fria com a imposição de governos só de comunistas, chamados de "democracia popular", que Stalin definiu como uma forma de ditadura do proletariado. Ou seja, estabeleceu-se em todo o Leste Europeu o regime de partido único. Nesta decisão de Stalin encontra-se a origem da derrocada recente dos governos da Europa Oriental.
Como se desenvolve a trajetória do PCB nessa nova conjuntura?
Eu acredito que nós podemos, aqui, visualizar dois períodos: de 1948 a 1957, e de 1957 a 1964. O primeiro período é caracterizado pelo domínio de uma linha política de retórica revolucionária, de conclamação à luta armada para derrubar o poder existente e instaurar um regime democrático-popular. Era uma linha retórica porque inexistiam condições objetivas para sua concretização. Os acontecimentos reais marchavam em sentido contrário. Era a época em que o Brasil deslanchava para um desenvolvimento econômico acelerado, abria caminho à tendência da industrialização intensiva do país e o instrumento de hegemonia política da burguesia era o populismo. Com o ascenso da economia, a conclamação para a derrubada do regime não encontrou eco. Colocaram-se problemas diferentes para a classe trabalhadora, que ia adquirindo novas feições, com novos contingentes vindos do campo e das cidades do interior. Essa linha de retórica revolucionária fez com que o partido se tornasse cada vez mais sectário, fechado dentro dele mesmo. O núcleo dirigente, que comandava o Comitê Central, era constituído por Prestes, Arruda, Amazonas e Grabois. Homem fantasmagórico, Prestes nunca ia às reuniões do Comitê Central. Presumia-se que se reunisse apenas com a Comissão Executiva. Arruda falava em nome dele. E isso dava a Arruda um poder incontrastável. A propensão de Arruda à arbitrariedade, à grosseria, e mesmo ao tratamento brutal dos companheiros, acentuava-se pelo fato de ele ser o representante do "grande guia". Aqui é interessante observar que Pedro Pomar, destacado integrante do núcleo dirigente desde a época da CNOp, vai, a partir de 1948, perdendo posição, até acabar como suplente do Comitê Central, dirigente de um comitê distrital de São Paulo. Essas sucessivas quedas na hierarquia partidária nunca foram explicadas. Ele simplesmente era rebaixado de um cargo para outro, sem satisfações aos coletivos de militantes. Eu tenho para mim que Pomar discordava das decisões do núcleo dirigente, ao qual ele próprio pertenceu. E, como a história comprovou, Pomar foi um homem de integridade pessoal admirável. Tomava posições políticas sem se importar com a preservação de cargos de prestígio e poder.
A essa altura, fui transferido para o Comitê Metropolitano carioca, no qual assumi a Secretaria de Agitação e Propaganda, aprendi bastante no contato com bases operárias. No final de 1950, fui para o Comitê Estadual de São Paulo, que tinha Carlos Marighella como secretário político. A direção estadual se empenhava, naquele momento, na reestruturação do partido, sobretudo mediante drástica redução do seu quadro de quase 500 funcionários profissionais, a maioria dos quais vivia praticamente numa situação de lúmpen, porque não recebia quase nada para se manter. Mas o principal é que enraizamos o partido nas fábricas, por meio de uma política de procurar entender as reivindicações dos operários e ligar-se a eles.
Assim, contrariamente ao que propunha a linha política, nossos militantes foram se aliando aos militantes trabalhistas e católicos, nas próprias empresas, o que vai gerar efeitos muito importantes, sobretudo na eclosão da greve geral de março/abril de 1953, com 300 mil operários parados na cidade de São Paulo, abrangendo cinco categorias: metalúrgicos, têxteis, vidreiros, gráficos e marceneiros. Essa greve, que durou um mês, acabou vitoriosa. A greve havia sido precedida de estrondosa passeata de 100 mil trabalhadores, a chamada "passeata das panelas vazias", em que as mulheres desfilaram batendo panelas.
Em 1948, com a virada sectária, uma das orientações da direção nacional consistiu na recomendação de saída dos sindicatos. Estes haviam sofrido intervenção policial do Ministério do Trabalho, o que provocou o expurgo dos militantes comunistas. O PC criou, então, os chamados Centros Operários. O maior número surgiu em São Paulo. Havia os centros do Ipiranga, Brás, Tatuapé, Mooca etc. Mas o que acabava acontecendo é que quase somente comunistas compareciam às reuniões. Eles não tinham força efetiva dentro das empresas. Diante do fracasso da experiência, a Comissão Executiva adotou uma resolução, depois referendada pelo Comitê Central, em 1951, de dissolução desses centros e volta dos comunistas aos sindicatos oficiais, para atuar lá dentro, fossem quais fossem as dificuldades. Isso teve efeito positivo, porque os comunistas puderam chegar à massa nas empresas, assumindo posição de liderança na organização da greve dos 300 mil, cujo quartel-general ficou sediado no Sindicato dos Têxteis, presidido pelo trabalhista Nelson Rustici. Essa greve, na minha opinião, marca o início do grande ascenso no movimento operário, que será interrompido somente com o golpe de 1964.
Assim, contornando o sectarismo da linha política, os próprios militantes ampliavam as suas alianças. E a direção em São Paulo, com Marighella à frente, era bastante sensível a esta prática. Vez por outra, defrontava-se com acusações de direitismo e oportunismo, que vinham da Comissão Executiva. Todavia, não percebíamos como os efeitos concretos da atuação dos militantes contradiziam a linha política por nós mesmos defendida. Deve ficar claro que assumo pessoalmente esta autocrítica.
O PC tinha uma boa quantidade de publicações. Em São Paulo, havia um jornal diário chamado Notícias de Hoje. Outros diários eram O Momento, na Bahia, a Tribuna Gaúcha, em Porto Alegre, e a Folha do Povo, no Recife. O Notícias de Hoje, por exemplo, tirava de 3.000 a 4.000 exemplares por dia. Com os recursos disponíveis, era um jornal mal editado e mal impresso. Na greve dos 300 mil, a tiragem aumentou para 25 mil. O Notícias de Hoje tornou-se o porta-voz dos grevistas, pois era o único jornal que informava o que estava acontecendo no meio sindical, acompanhava as assembléias e os piquetes. Havia piquetes de 5.000 operários, que saíam pelos bairros e iam fechando as fábricas porventura abertas. Ocorriam choques violentos com a polícia. Quando a greve acabou, o jornal "mixou", porque o leitor comum queria um diário que tivesse boa seção de esportes, notícias policiais, política nacional e internacional, cinema e outras diversões, essas coisas que não tínhamos condições de oferecer. Era uma época de ascenso mundial do marxismo. Intelectuais de primeira linha vieram ao partido ou dele se aproximaram. No período da legalidade, de 1945 a 1947, o PC ostentava entre seus militantes nomes como os de Oscar Niemeyer, até hoje comunista; Cândido Portinari, que depois se afastou; Carlos Drummond de Andrade, que não chegou a ser militante, mas pertenceu ao Conselho Editorial da Tribuna Popular; Monteiro Lobato, autor de um folheto a favor da reforma agrária; Graciliano Ramos, que, mais tarde, cederia a casa dele, nas Laranjeiras, para reuniões clandestinas; e Jorge Amado, militante desde os anos 30. Em São Paulo, os intelectuais que encontrei não eram menos brilhantes: Mário Schenberg; Villanova Artigas; Caio Prado Jr.; Samuel Pessoa; o maestro Edoardo de Guarnieri, o médico David Rosemberg, o arquiteto Luís Saia, o pintor Clóvis Graciano, o casal de cientistas Olga e Sebastião Baeta e outros. Eu era o membro da direção encarregado de manter contato com a intelectualidade. Lembro que Artigas, um dos principais arquitetos brasileiros, fez uma viagem à União Soviética e retornou perplexo e irritado, porque a arquitetura praticada na URSS era antiquada e de mau gosto. No entanto, os soviéticos proclamavam que aquela era a autêntica arquitetura socialista.
Eu me recordo também que a primeira Bienal de São Paulo, em 1952, teve à frente de sua organização um comunista: Luís Saia, já falecido. Essa primeira Bienal de certo modo oficializou a pintura abstracionista no Brasil, e deu a ela impulso irresistível. Assisti a várias reuniões em que se discutia a atitude dos comunistas, em sua maioria hostis à Bienal. Eu não entendia de pintura. Gostava dela, porém não dispunha de um balizamento estético. Minha primeira reação foi contrária à arte abstrata. Julgava-a anti-realista e, portanto, oposta a uma estética inspirada pelo marxismo. Depois mudei de opinião e de gosto estético: a arte abstrata abre espaço a diferentes explorações de forma, estilo e conteúdo. Hoje sou sensibilizado pelos quadros figurativos e também pelos abstratos.
Nesse período, consolidou-se minha relação com Marighella. Não só de companheirismo como de amizade, porque tínhamos reuniões freqüentes e conversávamos fora delas. Marighella era exigente no cumprimento das tarefas, porém se preocupava com os problemas pessoais dos companheiros: se estavam alojados em locais seguros e razoavelmente confortáveis, se tinham dinheiro para comer, enfim, era uma pessoa com quem a gente podia se abrir, algo quase impossível com Arruda e outros da alta direção.
Você podia falar dos Cursos Stalin, promovidos pelo PCB?
O PCB começou a fazer um grande esforço de educação, a partir de 1952. Criaram-se escolas para cursos de duração variável, reunindo militantes de todos os níveis. Passei a dar aulas nesses cursos. Em 1953, a direção nacional instituiu os chamados Cursos Stalin. Eu assisti, como aluno, a um desses cursos no Rio, e depois fui designado professor. Quem lidava diretamente com o setor de educação era o Arruda. De 1952 até 1956, o PCB criou um aparelho de educação de extraordinárias dimensões para um partido na clandestinidade. Creio que, em certo momento, devia haver cerca de 40 escolas funcionando em todo o país. Os militantes se fechavam dentro de uma casa, e ficavam ali durante todo o tempo, de uma semana a um mês, ouvindo, lendo, discutindo e sendo sabatinados. Basicamente, o Curso Stalin, com duração de um mês, constava de comentários sobre a União Soviética, tomando como "gancho" uma das últimas obras de Stalin, Problemas econômicos do socialismo na União Soviética, repleta de erros teóricos e prognósticos não confirmados, como hoje se pode ver. Para nós, naquela época, era a última palavra do maior gênio da humanidade. Tratava-se de fortalecer nos militantes a fidelidade à mãe pátria socialista, cuja defesa constituía princípio incondicional, incompatível com a mínima crítica. A par disso, havia uma parte do curso dedicada ao Brasil, que girava em torno de considerações sobre a sociedade brasileira, a sua estrutura de classes etc. Tudo na base de dados precários e raciocínios viciados. Eventualmente, textos dos autores clássicos do marxismo eram fornecidos para estudo e comentário.
Esses cursos se inseriram num esforço que não era só brasileiro, mas mundial, do movimento comunista. A intenção consistia em transmitir um cânone doutrinário uniformizado, que vinha de Moscou e do Cominform. Tratava-se de inculcar uma série de fórmulas do que eu hoje chamaria de marxismo bastardo na cabeça de centenas de milhares de militantes do mundo inteiro, os quais, com isso, passavam a pensar de maneira padronizada. Não pretendo aqui me desculpar. Minha cultura marxista se iniciou pela via da adesão ao stalinismo. Stalin achava-se no auge: aparecia como o supremo vencedor da guerra, era considerado um herói inexcedível e nós não tínhamos acesso a fontes de informação para pensar de modo contrário. Não acreditávamos então em nada que Trotski denunciou. Eu aceitava a versão stalinista do marxismo, sem discuti-la. Não tinha crise de consciência por ser professor em um curso chamado Stalin. Entretanto, por mais modesto que eu fosse como intelectual, não podia deixar de ter dúvidas. Percebia as contradições da obra de Stalin, a sua qualidade visivelmente inferior em comparação às de Marx, Engels e Lenin; os chavões dos materiais teóricos soviéticos; os jargões bajulatórios em relação ao próprio Stalin. Mas, intimamente, eu sufocava tais percepções. E considerava que não passavam de fenômenos secundários, sem importância. Importante era o avanço da causa, que notoriamente se processava no plano mundial e certamente se daria no Brasil. Minha consciência se aplacava com semelhante explicação. Eu me apegava à máxima que Brecht incorporou a uma de suas obras: a de que "é melhor errar com o partido do que acertar fora dele". Para mim, uma norma definitiva. Os cursos do PCB não incluíam apenas conceitos doutrinários e orientações políticas, mas também certas normas éticas e de comportamento partidário. Porque se procurava formar o militante dentro do padrão de abnegação total à causa do partido. "O partido é tudo", dizia-se. Conseqüentemente, as massas vinham em segundo lugar. Nos cursos, sempre se ressaltavam as biografias daqueles que morreram lutando, suportando sacrifícios. O militante devia ser capaz de sofrer necessidades e resistir na situação extrema de tortura. Ao mesmo tempo, introjetava-se nele o comportamento do indivíduo servil, obediente, sem capacidade crítica diante de seus superiores partidários. Eu não podia compreender como companheiros podiam ser tão heróicos nas situações de perigo e, no entanto, mostrar-se tão subservientes, tão incapazes de revide, diante de críticas humilhantes feitas por altos dirigentes. Para citar um caso extremo, porém não raro, um indivíduo boçal, como Diógenes de Arruda, se atreveu a gritar para Astrojildo Pereira: "Você não é escritor coisa nenhuma, você é um semi-analfabeto." Astrojildo engoliu o insulto porque tinha passado 15 anos fora do partido e não tolerava a idéia de uma nova expulsão. Tendo fundado o partido, queria morrer dentro dele. Dispenso referências ao valor de Astrojildo Pereira como escritor, inovador, em especial na área dos estudos machadianos. Assim, o que se chamava de centralismo democrático era, na verdade, um centralismo despótico. Esse tal de núcleo dirigente mandava e desmandava em nome de Prestes, que não aparecia. Um fantasma em nome do qual se perpetravam barbaridades. O período ao qual estou me referindo terminou por diversas razões. Em primeiro lugar, a ação concreta dos militantes e também de certas direções, como a de São Paulo, contrariava a linha política. Na prática, nós lidávamos com as questões dos sindicatos; com a campanha pelo monopólio estatal do petróleo, em que o PC teve atuação destacada; com o trabalho entre os camponeses, nas suas variadas categorias; com as mulheres, os intelectuais, os estudantes. Esses eram os temas da vida diária que enfrentávamos e a respeito dos quais devíamos dar resposta às solicitações dos militantes nos diferentes meios sociais. Isso foi acumulando uma prática que contrariava a linha política. O desencontro chegou ao limite no momento em que Getúlio [Vargas] foi acuado, na crise de agosto de 1954, que culminou no suicídio do presidente. Seguindo sua linha política, o PC vinha atacando Getúlio durante todo o seu governo, acusando-o de ser um representante das forças do imperialismo. O projeto de programa do PC, lançado em janeiro de 1954, dizia: "Abaixo o governo de traição nacional de Getúlio Vargas." E eis que se deflagra a crise. Carlos Lacerda sofre um atentado, morre o major Vaz, da Aeronáutica, no Rio de Janeiro, e todas as forças reacionárias se lançam furiosamente contra Getúlio. Com espanto, verifica-se que o que há de mais reacionário e pró-imperialista tem a mesma palavra de ordem que o PCB! Só no finalzinho da crise é que o PC "desconfiou" de que algo estava errado e Prestes, lá do seu esconderijo, deu uma entrevista, na qual o PCB se coloca contra os golpistas e afirma que, dadas as circunstâncias, o governo devia ser apoiado. Mas, ao mesmo tempo, Prestes fez acusações pesadas contra Getúlio, de tal forma que o leitor dificilmente seria convencido a apoiá-lo. Ou seja, apesar de Getúlio ser um canalha, de ser responsável por isso e aquilo, nós iríamos defendê-lo só porque os outros eram piores. A entrevista não serviu para nada. No dia do suicídio de Getúlio, o Rio de Janeiro virou uma praça de guerra. Os comunistas saíram às ruas sem precisar da orientação das direções, para, junto com os trabalhistas, protestar e acompanhar o féretro do presidente, cuja vida se encerrou num ato de tragédia de Shakespeare.
Entretanto, em Porto Alegre, o jornal do partido, Tribuna Gaúcha, foi depredado pela massa revoltada porque, durante quatro anos, o jornal fez campanha sistemática contra Getúlio. A partir daí, vai-se percebendo que havia uma disjunção entre a linha política e a realidade.
Em 1955, o partido tentou articular a candidatura do general Estilac Leal para a presidência da República. Era um militar que havia sido ministro da Guerra do governo de Getúlio, porém tinha contatos com gente do partido e certas inclinações esquerdistas. Inesperadamente, Estilac morreu. Então, o partido resolveu apoiar Juscelino Kubitschek, candidato do PSD. Esse apoio teve, talvez, importância decisiva para a vitória de Juscelino, pois ele venceu por meio milhão de votos. E meio milhão era, aproximadamente, o eleitorado do PC naquela época.
No 4º Congresso partidário, realizado em novembro de 1954, em São Paulo, retirou-se do programa a fórmula "Abaixo o governo de traição de Vargas" e colocou-se "Derrubar o governo de traição nacional". Quer dizer, o governo que existisse no momento. Mas como derrubar o governo de Juscelino, eleito com os votos do partido? A direção se calava sobre essas contradições formais. Porém, é claro, os militantes não eram pessoas estúpidas! Neste mesmo congresso, um congresso manipulado, com delegados escolhidos a dedo, fui eleito suplente do Comitê Central. Em meados de 1955 segui para a União Soviética e me integrei na segunda turma brasileira que fez o curso da escola superior do Partido Comunista soviético. Passei dois anos ali, integrando uma turma de 50 brasileiros, chefiados por Maurício Grabois.
No que consistia o currículo dessa escola?
Estudava-se materialismo dialético, teoria do Estado, economia, política, história do movimento operário mundial, história da União Soviética, história do Partido Comunista da União Soviética, além de noções de geografia e literatura russa. Durante o curso, realizou-se o XX Congresso do PC da União Soviética. O Arruda foi ao congresso como representante brasileiro, e a ele se juntaram Grabois e Jover Telles, participantes do curso em Moscou. Para nossa surpresa, o jornal Pravda começou a publicar artigos e discursos de vários dirigentes com críticas a Stalin. Depois, veio o famoso informe confidencial de Kruschev. Não o lemos porque não nos foi distribuído. Só circulava dentro do âmbito do próprio PCUS. Mas nós ouvimos conferências de professores que nos transmitiram seu conteúdo. O informe fez a primeira revelação oficial de parte dos crimes de Stalin. Esse congresso vai abalar o PCB. Em maio de 1956, o informe foi publicado na íntegra pelo New York Times e pelos grandes jornais do mundo inteiro. Aqui no Brasil ele foi, a princípio, declarado falso pelos comunistas. Porém, Arruda, ao regressar da viagem, confirmou a autenticidade do documento. Conforme já relatei no meu livro, Combate nas trevas, Arruda percebeu que a onda ia virar contra Stalin. E ele, que era um expoente do stalinismo no Brasil, o dirigente que mais procurava personificar o comportamento stalinista, até mesmo imitando fisicamente o "grande chefe", procurou se apresentar como representante da nova tendência aparentemente em ascenso, para descarregar a responsabilidade do stalinismo exclusivamente sobre Prestes. Lá na União Soviética, o informe provocou na nossa turma de estudantes um rebuliço tremendo e eu, particularmente, entrei em grande agitação: para mim, aquilo era um problema de consciência, porque eu tinha sido um colaborador ativo do stalinismo. Comecei a falar abertamente a respeito desses problemas, o que me transformou em alvo dos intransigentes, dos inconformados com as denúncias do XX Congresso. A tal ponto, que se realizou uma assembléia geral na qual fui posto em julgamento. Precisei usar de habilidades de advogado para provar que estava apenas reproduzindo as revelações do informe confidencial de Kruschev.
Aqui no Brasil, uma vez constatado que o informe era autêntico, realizou-se uma reunião do Comitê Central e logo Arruda se viu desmascarado. A direção do Voz Operária abriu uma discussão por conta própria, começando por um artigo célebre de João Batista de Lima e Silva, redator do jornal, intitulado "Uma discussão que está em todas as cabeças". E o Voz passou a aceitar artigos de quem quisesse entrar na discussão. Jorge Amado mandou um artigo no qual falava em "mar de lama". A polêmica se estendeu às páginas do Imprensa Popular, jornal diário do PCB. Criou-se uma situação muito delicada: a direção perdeu o controle de seus órgãos de divulgação e muitas bases se insurgiram, inclusive comitês estaduais. Nesse momento, aconteceu a revolta dos operários de Poznan, na Polônia, sufocada pelas Forças Armadas, com dezenas de mortos. Naturalmente, a revolta foi atribuída ao imperialismo, mas, na verdade, era uma revolta contra os péssimos resultados da política econômica e contra a direção stalinista. No final de 1956, ocorreu a revolta na Hungria. Acompanhei tudo isso porque tínhamos, no quarto onde eu morava, um rádio que pegava em ondas curtas. Recordo-me de que estava sozinho no quarto e liguei o aparelho. Naquele dia, o locutor de Budapeste dizia, desesperado, em inglês: "Nossa rádio está nas últimas. Os tanques soviéticos se aproximam. Centenas de pessoas estão combatendo nas ruas. Apelamos para a solidariedade internacional. Não temos condições de deter o avanço dos tanques soviéticos." Consegui ouvir durante cerca de uma hora, até que a rádio cessou de transmitir. Isso me causou uma impressão terrivelmente perturbadora. Já no final de 1956, notei uma mudança na atitude dos dirigentes soviéticos, depois do episódio da Hungria. Cautelosos em suas afirmações, diziam que o momento não era de discussão; que o momento era de trabalho, de disciplina. Aparentemente, brecava-se o processo de abertura.
Diante do que estava acontecendo no Brasil, tomou-se a resolução de que os membros do Comitê Central, integrantes da turma em Moscou, deviam abreviar seu curso e retornar. Então, foi-se organizando a saída deles — eram 15 — em grupos de dois ou três. Eu fui o último a regressar. Certamente, influiu nisso a minha posição anti-stalinista combativa. Voltei para o Brasil em abril de 1957. Ao chegar, peguei a última sessão da reunião do Comitê Central, da qual participou Agildo Barata, o líder da dissidência. Foi a última vez que vi Agildo pessoalmente. Bem-humorado, muito afável, Agildo era mais um nacionalista que um comunista. Depois dessa reunião, ele acabou formalizando a sua saída do partido. Eu ainda peguei o final da discussão que estava se travando nas páginas da imprensa partidária, já depois que os jornalistas rebeldes foram expulsos. Reuniram-se comunistas avantajados, que invadiram as redações e puseram para fora os redatores que tinham aberto as páginas do jornal para qualquer tipo de colaboração.
Você não sofreu retaliações?
Não, porque eu não era dissidente, não era a favor da posição de Agildo. A minha posição, por um partido renovado, anti-stalinista, tinha uma grande base de apoio e, por isso mesmo, assumi a direção do Imprensa Popular, e o Mário Alves, que tinha pensamento idêntico, a direção do Voz Operária. Prestes, nesse ínterim, ficou chocado com as atitudes de Arruda, em quem ele depositava absoluta confiança. O homem que lhe permitiu encontrar uma saída, porque ele próprio não tinha condições, tal a sua confusão, foi Giocondo Dias. Giocondo havia sido, durante dez anos, o homem que resolvia os problemas práticos do aparelho de Prestes. Dias passou a descer às bases, e entrou em contato comigo e com Mário Alves. Tomou conhecimento das idéias que estavam circulando e procurou convencer Prestes a mudar de posição. Isso levou à primeira reunião em que Prestes apareceu pessoalmente no Comitê Central, após dez anos, em julho de 1957, quando já se avançariam certas mudanças na linha política e se procederia a uma mudança também na Comissão Executiva, o órgão mais alto do partido. Nessa reunião, o antigo núcleo dirigente foi afastado, exceto Prestes. Exatamente porque mudou de posição, ele também salvou seu cargo de primeiro dirigente. Saíram Arruda, Grabois e Amazonas, e entraram Giocondo Dias e Mário Alves para a Executiva.
As coisas, então, encaminharam-se para outro episódio de grande significação na história do PCB, que é a "Declaração de Março". Havia sido escolhida uma comissão para apresentar sugestões sobre a linha política. Não esperávamos que essa comissão apresentasse nada que permitisse um avanço. Então, o Dias, de acordo com Prestes, coordenou uma comissão secreta, desconhecida para o Comitê Central e para a própria Executiva. Somente o Prestes e o Dias teriam conhecimento do trabalho dessa comissão, encarregada de elaborar um documento que Prestes apresentaria ao Comitê Central como alternativa. Essa comissão, coordenada pelo Dias, tinha, além dele próprio, a presença de Mário Alves, Alberto Passos Guimarães, Armênio Guedes e eu. De dezembro de 1957 a fevereiro de 1958, trabalhamos na feitura do documento. Em março, o Comitê Central se reuniu e, com pequenas alterações e os votos contrários de Amazonas e de Grabois, o documento foi aprovado. Daí o seu nome de "Declaração de Março". Até hoje, o PCB, que ainda sobrevive, considera este documento como sendo o ponto original de toda a sua história moderna. O que trazia de novo a Declaração? Ela procurou colocar a atuação do partido em consonância com a realidade que o Brasil atravessava. Dessa maneira, privilegiava a luta antiimperialista e a luta pela reforma agrária, com o aproveitamento da situação democrática existente no governo de Juscelino Kubitschek. Identificava-se uma ala nacionalista e democrática no governo de JK, a qual os comunistas deviam apoiar. Ao mesmo tempo, o documento continha uma diretriz estratégica, que já vinha de antes, a da revolução democrático-burguesa, antiimperialista e antifeudal. Por conseguinte, não compreendia a história do país, que já não carecia de revolução democrático-burguesa. O documento conduzia a uma posição apologética em relação ao desenvolvimento capitalista característico da época de Juscelino. A consequência lógica consistia em colocar a burguesia nacional como força revolucionária, com a qual se deveria marchar. Isso ia abrir caminho para as oscilações do PCB, nesse segundo período que abarca os anos de 1957 a 1964.
As teses aprovadas no 5º Congresso, em 1960, representaram um desenvolvimento da Declaração, uma formulação mais concatenada, mais minuciosa. No 5º Congresso fui eleito membro efetivo do Comitê Central. Houve a cisão do PCdoB [Partido Comunista do Brasil], em 1962. O PCB passou a se chamar Partido Comunista Brasileiro. E, dentro dele, do Comitê Central, vai-se formando uma minoria divergente do caminho claramente conciliador que a maioria propugnava e aplicava. Sobretudo quando Jango [João Goulart] assumiu a presidência, em setembro de 1961. Foi juntamente com ele que se fizeram as greves nacionais de 1962, o que conduziu ao plebiscito de janeiro de 1963, que acaba com o regime parlamentarista e devolve os poderes presidenciais a Jango.
À frente do PCB, quem dava o tom eram o Prestes e o Dias. Marighella, que havia colaborado ativamente para a mudança das posições políticas e da direção nacional, e que, depois de Prestes, era a figura de maior prestígio no partido, foi afastado e ficou durante cerca de três anos, até 1964, numa situação de certo modo secundária. Giocondo Dias se tornou o segundo homem. Ele e Prestes é que faziam a alta política do partido. Quem se entendia com Jango, Santiago Dantas [ministro das Relações Exteriores] e outros altos dirigentes políticos eram Prestes e Dias, que controlavam também a direção sindical, a direção camponesa, a frente nacionalista e as demais frentes de trabalho de massas, bem como o aparelho do PCB.
Aqui, desejo inserir uma observação, antes de chegar ao golpe de 1964. No meu livro Combate nas trevas, faço uma crítica cerrada, sem dúvida alguma, à atuação de Prestes como principal dirigente do partido durante cerca de 40 anos. Esse aspecto do meu livro tem sido objeto de reparos por parte de leitores. Eles consideram que, sob este aspecto, perdi o distanciamento de historiador e me deixei levar por uma certa passionalidade. Na verdade, penso que procurei sempre conservar a análise objetiva e fria dos eventos. Se, no caso de Prestes, a dose de crítica parece excessiva a alguns, isso tem uma razão: é que ele vinha, naquela época, dando sucessivas entrevistas em que recompunha a sua biografia e a sua imagem histórica, culminando numa entrevista longa, que se transformou em livro, Lutas e autocríticas. Aí ele se refere a numerosos fatos de sua longa trajetória, com distorções e falsificações. Eu, como historiador, não podia silenciar. Então, por isso é que a dose parece excessiva. É preciso considerar quem foi Prestes, o poder que ele teve durante decênios nos meios de esquerda, o mito que foi e ainda é. Eu não devia, nem queria, perder a oportunidade do livro que estava escrevendo para desmontar, na medida de minhas forças, esse mito de tantas consequências negativas para os comunistas e, em geral, para o movimento operário brasileiro.
E chegamos ao golpe de 1964...
O golpe de 1964 pegou o partido completamente desprevenido. Havia a euforia do comício do dia 13 de março, parecia que Jango tinha base sólida nas Forças Armadas — o famoso dispositivo militar do general Assis Brasil — e contava com grande apoio dos sindicatos, das forças políticas, da Frente Parlamentar Nacionalista. Mas a conspiração interrompeu tudo isso e o golpe de 1964 me surpreendeu em Goiânia, onde eu estava fazendo conferências. Fui para São Paulo já na clandestinidade, consegui um contato com a direção a muito custo. A luta interna já estava deflagrada. As posições vão-se delineando. No final de 1964, fui para o Rio Grande do Sul, para fazer parte da direção estadual do partido, que tinha restrições muito sérias à linha política.
Um ano depois do golpe, em maio de 1965, o Comitê Central realizou sua primeira reunião. Mário Alves estava na prisão, junto com alguns outros companheiros. Marighella compareceu, prestigiado porque tinha lutado com exemplar coragem contra a polícia, quando foi preso dentro de um cinema na Tijuca. Nessa reunião, Marighella tinha como objetivo manter-se na Comissão Executiva a fim de tirar proveito em favor de suas posições. Ele já estava com idéias a respeito do desencadeamento da luta armada, mas considerava que ainda era cedo para romper com o PCB. Como eu não alimentava pretensões nesse sentido, coloquei-me abertamente contra o informe apresentado pela Executiva, que era, em termos sucintos, uma justificação da política anterior, do 5º Congresso: "O erro não foi da linha, foi da sua aplicação, uma aplicação esquerdista." Por esse esquerdismo não eram responsáveis aqueles que tinham postos decisivos no partido, mas justamente os que não tinham, como era o meu caso, o de Mário Alves, o de Apolônio de Carvalho e de alguns outros. Quer dizer, os bodes expiatórios já estavam escolhidos. Critiquei duramente o informe, e votei contra ele. Fui o único voto contrário. Houve cinco abstenções. A partir daí se desenvolveu a luta interna. Marighella, continuando na Comissão Executiva, elegeu-se primeiro-secretário do Comitê Estadual de São Paulo, o que representou a conquista de uma posição de grande importância. Apolônio de Carvalho e Miguel Batista dos Santos, também divergentes do direitismo da maioria, dirigiam o Comitê Estadual do Rio de Janeiro. Éramos uma oposição de seis elementos no Comitê Central. Sob a influência de Marighella, Câmara Ferreira rompeu seus vínculos com Prestes e passou a atuar em favor da oposição, no Comitê de São Paulo. Havia outros companheiros do Comitê Central que não concordavam com a linha política, mas não se atreviam a dar o passo decisivo de romper com o PCB.
No livro Combate nas trevas, refiro-me à última reunião do Comitê Central à qual eu compareci. Uma reunião repleta de acusações, na qual Prestes lançou mão de uma verdadeira chantagem. Na sua intervenção, ele disse que os companheiros dissidentes cuspiam no prato em que comiam, porque era o partido que os sustentava e às suas famílias. Esse argumento não era ineficiente, como se pode pensar, para revolucionários. Porque, na clandestinidade em que nos encontrávamos, que perspectiva poderia haver para dirigentes operários de 40, 50 anos, se, de repente, se vissem sem nenhuma fonte de rendimentos? Esse é um drama por que passa muita gente que milita no movimento revolucionário, que envelhece nele. Quando chega a velhice, não há INPS, nem sempre há filhos que possam servir de amparo, e fica-se recebendo esmolas do PC. Isso anula velhos revolucionários do ponto de vista político e, psicologicamente, é pavoroso.
Eu desmascarei a intervenção de Prestes e disse que aquilo era uma chantagem indigna, motivo pelo qual, a partir dali, me recusava a receber qualquer ajuda financeira do Comitê Central. Passei a viver, na clandestinidade, de traduções de livros, cujas encomendas conseguia por intermédio de companheiros com vida legal.
Eu sabia que aquela era a última reunião da qual participaria, mas possuía antigos laços de amizade com alguns daqueles que iam ficar no PC e depois seriam assassinados pela repressão. Não faço aqui nenhuma discriminação com relação a Orlando Bonfim Júnior, a David Capistrano da Costa, a João Massena de Melo e outros. Considero-os companheiros que honraram o movimento revolucionário, apesar de todas as divergências que tive com eles. Foi uma despedida emocionada. Sabíamos que não íamos nos reencontrar tão cedo, talvez jamais. A partir daí, as coisas se aceleraram. Fizemos uma reunião em outubro de 1967, em Niterói, procurando, diante das punições disciplinares impostas pelo Comitê Central, agrupar os dissidentes. Vieram companheiros de vários estados do país: Rio de Janeiro, Guanabara, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Paraná. Mas não veio ninguém ligado a Marighella. Nós já sabíamos que Marighella não iria marchar conosco. Porém, se todos aqueles que compareceram à reunião de Niterói se mantivessem unidos, nós teríamos um partido que seria tão grande quanto o próprio PCB. Infelizmente, não foi isso que se verificou. Dali saíram os fundadores do PCBR, saíram companheiros que foram para a ALN [Ação Libertadora Nacional], outros para o POC [Partido Operário Comunista], outros para o VPR [Vanguarda Popular Revolucionária] e para o PCdoB. Houve uma fragmentação, e o esforço unitário ficou anulado. Este processo de fragmentação me deixou cético quanto às perspectivas futuras das várias dissidências.
E quanto a Marighella?
Marighella tinha ido para Cuba em meados de 1967, onde deu uma entrevista à rádio Havana, que repercutiu no Brasil. Isso motivou sua exclusão do Comitê Central. A viagem a Cuba conduziu Marighella a uma posição foquista, à qual já estava propenso. Posição foquista com algumas alterações que, na minha opinião, não são importantes. O essencial da nossa divergência é que Marighella não queria saber de organizar um novo partido. Ele achava que o partido era mera burocracia, que a liderança das massas devia ser a própria liderança da luta guerrilheira. E o militante que ele precisava era aquele que pudesse pegar em armas ou colaborar nas tarefas logísticas da luta armada. Já Mário [Alves], Apolônio de Carvalho e eu próprio pensávamos ser necessário organizar um partido para dirigir e travar a luta armada. Não aceitávamos a teoria foquista procedente de Cuba.
Em abril de 1968, fizemos a reunião de fundação do que veio a ser chamado de Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Aprovamos um documento, redigido por Mário Alves. Fizemos um balanço das nossas forças e, em seguida, elegemos um Comitê Central. Presente à reunião, Jover Telles abriu logo as baterias e convidou os dissidentes da Guanabara, que entraram com ele no PCBR, a passarem para o PCdoB. O documento que escreveu a respeito, intitulado "Reencontro Histórico", foi publicado pelo Jornal do Brasil. Mário Alves redigiu uma resposta, também publicada, nas suas partes principais, pelo JB. Como se pode ver, já começamos com perdas. Apesar disso, o PCBR tinha força na Guanabara, no estado do Rio e era uma das organizações de esquerda daquela época que tinha mais força no Nordeste. Sobretudo em Pernambuco, Bahia e Ceará. Em São Paulo existia uma base fraca, porque os militantes, dissidentes do PC, estavam com a ALN e a VPR. Assim mesmo, tivemos certo crescimento. Eu fiz uma análise desse período que marcou a nossa esquerda e considero que a raiz teórica do erro que as organizações cometeram foi a de partirem do princípio da violência incondicionada. Não da violência revolucionária, que sempre é condicionada por fatores históricos, que não é feita por vanguardas, seitas, mas por classes sociais. A conseqüência só podia ser a derrota.
De fato, a opção era a luta armada imediata ou o pacifismo do PCB. Esse foi o dilema desastroso também para nós do PCBR. Porque, embora quiséssemos construir um partido, ligarmo-nos às massas, o que era muito difícil naquela época, nós fomos arrastados pelo turbilhão do fascínio das armas. Havia uma certa posição de revanchismo diante da vitória da repressão. Uma psicologia do revanchismo romântico, eu diria. E havia fatores internacionais: a incitação de Cuba, que treinava militantes para a guerrilha; a incitação da China, que também treinou guerrilheiros; a Guerra do Vietnã, que entusiasmava a todos; o movimento de maio de 1968, na França e em outros países europeus; o assassinato de Martin Luther King, que deu motivo a tremendas agitações dos negros nos Estados Unidos; e a Primavera de Praga, sufocada pela força militar do Pacto de Varsóvia. Tudo isso, evidentemente, inspirou a nós todos. Mesmo a morte de [Che] Guevara não deteve a tendência militarista na esquerda. Pelo contrário, a derrota da guerrilha na Bolívia converteu-se num estímulo, mais um elemento para a psicologia da revanche. Bom, sabemos como a coisa terminou.
No começo de 1970 você foi preso. O que significou a prisão para você naquele momento?
Essa foi uma experiência tremenda, uma das mais pungentes da minha vida, talvez mais do que a própria participação na campanha da FEB, ou pelo menos comparável. Antes da minha prisão, eu tinha a perfeita noção de que um dia cairia também, porque as quedas estavam se sucedendo. Mas eu não sabia das quedas do PCBR no Rio de Janeiro, que ocorreram a partir de 12 de janeiro de 1970, quando foram presos Mário Alves, Apolônio de Carvalho e outros dirigentes. Sem saber o que estava acontecendo, fui preso ao ir a um encontro na casa de um companheiro, numa noite chuvosa. A janela da casa, no andar térreo, estava fechada, e isso já devia ter me deixado desconfiado, pois habitualmente ela ficava aberta. Mas insisti em bater na janela e, quando ela se abriu, me vi diante de três armas apontadas contra mim. Num piscar de olhos, eu estava algemado. Depois me levaram ao DOPS. Ali eu fui submetido a torturas e tentei o suicídio. Não tenho, a respeito disso, questionamentos de ordem moral. Houve outros companheiros que tentaram o suicídio e alguns o consumaram. No movimento revolucionário internacional, é norma que o militante deve resistir às torturas para não entregar informações ao inimigo, mas ele não está obrigado a sofrimentos evitáveis. O combate na resistência antinazista, na Europa ocupada, com sua cápsula de cianeto de potássio, para a emergência da prisão, se tornou conhecido e respeitado.
Qual foi sua sensação na prisão, naquele conjunto heterogêneo com que a gente conviveu no presídio Tiradentes? O que lhe marcou mais?
Foi uma experiência sem paralelo. O presídio Tiradentes tinha, nos seus momentos de cheia, entre homens e mulheres, mais de 400 pessoas. Conheci muita gente lá: companheiros trotskistas, companheiros cristãos — os frades dominicanos e outros religiosos —, estudantes e intelectuais, operários e camponeses, enfim, gente de todas as condições. Se examino em retrospectiva a minha vida, são vários os ambientes, os cenários que se sucedem: a família, os colegas de escola, da primária à superior; a comunidade judaica; o povão negro da Bahia; os companheiros da FEB; os companheiros do Partido Comunista; a turma de estudos na União Soviética e, finalmente, os companheiros da prisão. Cada cenário é uma parte da minha trajetória pelo planeta Terra e tem características singulares.
Na minha cela, eu era o mais velho. Já estava com 47 anos. Ali havia companheiros de 19, 20 anos. Então, eu não podia deixar de ter um pouco a sensação de pai. Eu havia passado por uma porção de coisas, eles também, mas esses jovens não possuíam minha dilatada experiência de vida. Nasceu a idéia de um curso, que passei a ministrar em minha cela, todas as segundas-feiras à noite: um curso de história do Brasil, uma prefiguração do meu livro O escravismo colonial. Além disso, fiz conferências a respeito de eventos diversos e de questões políticas que surgiam.
Numa dessas palestras, você fez uma análise da economia brasileira que apontava no sentido oposto à visão da esquerda na época, que era a de uma crise insolúvel do capitalismo no Brasil. Você dizia que havia indicações de um processo de vigoroso crescimento econômico, e que, portanto, a conclusão óbvia é que teríamos que repensar a estratégia e a tática.
A leitura de revistas, de jornais e da documentação que podia chegar ali na cela, formou a minha convicção de que o Brasil, a partir de 1968, tinha entrado numa fase de ascenso econômico. Isso contrariava a opinião generalizada nos grupos de esquerda que se empenhavam na luta armada, inclusive o PCBR, a respeito do impasse estrutural do capitalismo brasileiro. Aliás, essa era a tese defendida não só por esses grupos como também por Celso Furtado. Ele foi teorizador do impasse do capitalismo brasileiro. Particularmente no livro Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina. Notem bem, eu não responsabilizo Celso Furtado pelas ações da esquerda. Mas ele nunca fez autocrítica da teoria do dualismo estagnacionista. Ele muda de posições, como tem feito várias vezes em sua trajetória intelectual, sem explicar por que mudou. Na ocasião, vários companheiros, sociólogos e economistas que estavam presos ali, fizeram objeções.
Quanto ao PCBR, já antes de minha prisão estava se lavrando uma luta interna. Divergiam os companheiros que eram pela participação imediata do PCBR na luta armada e os companheiros que consideravam imprudente e precipitado dar esse passo. Nesse momento, não pude deixar de discordar de Mário Alves, o maior amigo que tive, e com o qual sempre compartilhei posições. Mário se inclinava, em parte por pressões que vinham das bases, por um engajamento imediato do PCBR na luta armada, uma vez que a ALN e a VPR estavam nela envolvidas havia bastante tempo. Apolônio era contrário a isso. Justamente Apolônio, que tinha a mais rica experiência de luta armada internacional. Eu também me opunha. Infelizmente, o PCBR se comprometeu em ações de assaltos a bancos e outras do gênero, o que teve resultados trágicos. Quando saí da prisão, não pensei mais em ligar-me ao PCBR, caso ele ainda sobrevivesse em algum lugar. Penso que organizações não são um fim em si, elas são um meio para atingir um objetivo. Organizações revolucionárias também envelhecem ou se tornam inadequadas, quando acumulam demasiados erros e mudam os períodos históricos. Não há razão para persistir e manter o que não tem mais um papel a cumprir.
Como é que foi depois de sair da cadeia?
Durante os primeiros anos, uma espécie de exílio. Muitas pessoas que eu conhecia tinham receio de se encontrar comigo. Pedi ajuda a alguns e fiquei frustrado. Então, passei a viver quase somente no círculo dos ex-presos políticos. E, aí, a solidariedade era efetiva. A repressão continuava furiosa. Optei por ficar no Brasil porque me animava o propósito de concretizar o trabalho finalmente materializado no livro O escravismo colonial. Eu queria continuar a pesquisa que havia iniciado e só poderia concluí-la se ficasse no Brasil. Disse para mim mesmo: ficarei até quando for possível. Se as condições se tornarem insustentáveis, tomarei o caminho do exílio, como outros companheiros têm feito. E, embora atravessando momentos delicados, pois se podia esperar a qualquer hora uma nova prisão, de conseqüências imprevisíveis, fui trabalhando, me sustentando, ajudado também por companheiros e consegui, em 1976, completar o livro e até uma editora para publicá-lo. Neste ponto, meu objetivo foi realizado.
Passada essa fase, surgiu uma coisa nova no cenário político brasileiro: o PT. Como é que foi a sua relação com o partido nesse processo?
A minha relação, desde o início, foi de simpatia. Antes mesmo do PT, considerei a atuação do novo movimento sindical, que tinha Lula à frente, como um fato inteiramente novo, o qual mudava a situação dentro do país. Depois da formação do partido, sempre votei no PT. Me considero um colaborador do PT. Tenho muitas vezes aceito convites para conferências, seminários e encontros, enfim, tenho dado uma colaboração constante. Já me perguntaram até, em debates públicos, por que eu não me tornava militante do PT. Porque acho que já dei a contribuição possível como militante prático: 30 anos no PCB e depois no PCBR... E tão intensa que eu acho suficiente para esta encarnação. Talvez para mais duas ou três. Não me considero nenhum teórico importante, nenhum intelectual que tenha realizado algo extraordinário. Mas sou uma pessoa que quer conhecer as coisas e transmitir o conhecimento adquirido. Afinal de contas, fiz uma opção de vida e quero saber, até o fim, as razões dela. Quem se envolve na atuação prática de um partido, considerando o que é habitual no Brasil, não tem muito tempo para ler, para estudar e acumular cultura política. Eu não adquiri formação universitária completa e isso me obrigou a aprender sem a intermediação de professores, a partir do contato direto com os autores, com os livros, procurando tirar conclusões por mim mesmo. Depois de 30 anos, dedico-me em tempo integral ao estudo e ao debate ideológico. Acabei de concluir um livro há dois meses, A escravidão reabilitada, e ainda não estou refeito do esforço que ele me custou.
Isso então é que me levou à condição de colaborador do PT. Mas eu me considero, política e moralmente, tão obrigado com a causa do partido quanto os militantes que assinam ficha.
Você é um historiador que se utiliza da metodologia marxista e fala do declínio do marxismo. O que você quer dizer com isso?
Eu creio que não se pode dissociar o marxismo do que se faz praticamente inspirado por ele. Seja qual for a tendência predominante, porque o marxismo tem várias tendências. Parece-me que, até o final dos anos 1960 o capitalismo mundial sofreu um recuo diante dos avanços dos países e dos movimentos que lutavam em nome do marxismo. Nos anos 70, ainda ocorreu a derrubada do salazarismo, em Portugal, e o nascimento de Estados independentes em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, com tendências coletivistas e estatizantes, não propriamente socialistas, porque socialismo pressupõe um alto nível de desenvolvimento das forças produtivas, o que não existe naqueles países africanos. Tivemos também a revolução na Nicarágua, que se liberta da ditadura de Somoza e adota um caminho de transição peculiar — o primeiro exemplo de pluripartidarismo em direção ao socialismo. Mas, tirante isso, é indiscutível que, nos anos 70, o capitalismo se recompôs, a revolução científico-tecnológica se acentuou e se incorporou aceleradamente aos países capitalistas mais desenvolvidos, que ganharam enormes vantagens. É a época de Reagan, de Kohl e de Thatcher, com os governos conservadores neoliberais substituindo os social-democratas na Alemanha, Inglaterra, Áustria e outros países da Europa. Já disse uma vez que o capitalismo está vivendo uma segunda belle époque. A revolução científico-tecnológica lhe deu um novo alento, enquanto as técnicas econômicas keynesianas lhe permitem certa regulação anticíclica. O que não significa que a natureza essencial do capitalismo mudou.
O marxismo ainda não produziu, nem teórica nem praticamente, algo que possa explicar o que está acontecendo e enfrentar os novos processos de forma adequada. E é perceptível que a influência do marxismo nos meios intelectuais e operários da Europa, da Ásia e das Américas declinou nos últimos tempos. Contudo, sou de opinião que o marxismo é capaz de explicar isso com seus próprios métodos. Uma vez que os marxistas entendam que precisam produzir novas pesquisas e novas teses, que não podem ficar presos a posições efetivamente ultrapassadas, pois o capitalismo demonstrou ter mais fôlego do que várias gerações de marxistas pensavam. O capitalismo foi tremendamente acuado neste século: houve a Revolução Russa de 1917, a vitória sobre o nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial. A primeira metade do século foi muito negativa para o capitalismo. Basta recordar a Grande Depressão de 1929-33. É uma época em que parecia que ele ia naufragar. Na segunda metade do século, ele ainda sofreu recuos, porque a onda revolucionária subseqüente à Segunda Guerra Mundial avança até o final dos anos 60. É o momento em que o Vietnã derrota os Estados Unidos. Esse momento constitui o auge do que se poderia chamar de retração do capitalismo mundial. Mas ele teve fôlego para passar por cima. Em contrapartida, nos países em que houve revoluções de transição socialista, o modelo aplicado foi o do tipo stalinista. Então, o que está morrendo, na minha opinião, é o modelo stalinista do socialismo, encarnação do que Marx chamou de "socialismo de caserna". O socialismo efetivamente democratizado, colado à realidade do período de transição, sobreviverá a esses episódios que estão agora se sucedendo no Leste Europeu, e empreenderá o caminho favorável à renovação do marxismo e à retomada do avanço concreto da causa socialista no plano internacional. Recebo convites de muitos pontos do país para falar sobre essa questão. O interesse pelo tema é enorme, mas eu não posso afirmar que esse interesse já seja traduzível num crescimento da força do marxismo no Brasil, mesmo porque não observo criatividade notável a respeito. Constato que companheiros que eu respeito afirmam que o marxismo foi desmentido pelos fatos e está ultrapassado. Há tendências do PT que se manifestam neste sentido. Mas eu continuo marxista e quero que isso fique claro. Desejo chegar a conclusões por meio de métodos do próprio marxismo. Naturalmente, sem deixar de levar em conta que outras correntes das ciências sociais também produziram resultados e conhecimentos que nós podemos e devemos assimilar. Eu penso num marxismo apto a incorporar sempre todo o saber que a sociedade vai forjando nas suas diversas tendências. E, por isso, como já escrevi em Teoria&Debate, sou contrário a que o marxismo se transforme numa teoria oficial dos países socialistas. Ele deve ser ensinado nas escolas, ao mesmo tempo em que os estudantes tenham livre acesso às outras explicações da vida social. Porque o marxismo imposto se torna intransigente, intolerante, dogmático, estagnado, incapaz de se desenvolver. É essa experiência que se tira dos países do Leste. Desde logo, considero inaceitável a repetição dessa prática no futuro Brasil socialista.
Nessa sua trajetória toda, como foi o relacionamento com a sua família e a sua companheira?
A minha companheira, Idealina, com quem convivo há mais de 30 anos, foi militante do PCB. Eu a conheci aqui no Brasil, mas sobretudo quando fazíamos o curso lá em Moscou. Minha companheira é parte inseparável dessa vida e me sustentou nos momentos mais difíceis. Para mim, também é uma grande satisfação que minha filha tenha desenvolvido uma forte personalidade, que pense pela própria cabeça, sem que isso dê lugar, entre nós, a conflitos ideológicos e políticos. O pai de Idealina foi um operário eletricista e é um dos nove fundadores do PCB. Figura naquela foto histórica na qual também está o Astrojildo Pereira.
Qual é o nome dele?
É Hermogênio Fernandes da Silva. Meu sogro era um homem extraordinário pela sua integridade, pelo respeito que impunha, pela humildade exemplar. Ele veio do anarquismo antes de fundar o PCB, como aliás também o Astrojildo.
Jacob, para a gente encerrar, o Lula saiu das eleições passadas com 31 milhões de votos. O governo Collor está tomando atitudes que anunciam uma profunda recessão econômica. Quais são as perspectivas que você vê hoje no PT, dentro de um quadro como este?
Bem, o PT acaba de realizar um Encontro Nacional, e eu aguardo a publicação dos documentos aprovados para poder aquilatar o que foi resolvido. Mas é evidente que o partido hoje é o referencial da esquerda brasileira; o que foi o PCB antes de 1964. Então, o fato de um operário, como o Lula, conseguir 31 milhões de votos no segundo turno da disputa presidencial, 47% dos votos válidos, é algo de uma importância que transcende o Brasil, é algo extraordinário e importante para toda a América Latina. E o PT, na minha opinião, dispõe de condições para se fortalecer em todos os planos, não só no Parlamento e na conquista de posições executivas, nas próximas eleições, como no plano da sua influência geral na sociedade brasileira, na condução das lutas políticas dos trabalhadores. Eu penso que o PT fará isso. O Brasil, como a América Latina em geral, está sofrendo um processo de deterioração, que ameaça os trabalhadores com a perda do que eles conquistaram em lutas de muitos decênios. A hiperinflação, a recessão, a redução dos salários e o desemprego maciço, tudo isso faz com que direitos assegurados venham a ser anulados. Isso deve dar motivação para que uma classe operária como a brasileira, que já demonstrou tanta combatividade, lute e não se deixe sufocar. A perspectiva do socialismo ganhará feições cada vez mais definidas, à medida que o nosso trabalho, na ação prática e na elaboração teórica, se desenvolver colado às realidades brasileira e internacional.
Alípio Freire e Paulo de Tarso Venceslau são membros do Conselho de Redação de Teoria & Debate.