Nacional

Não é novidade que os transportes coletivos das grandes cidades brasileiras são precários. No esforço de melhorá-los, as prefeituras populares tentam vencer problemas administrativos e financeiros e a mentalidade dos capitalistas nativos, que acham que transporte é fonte de lucro e não um serviço público essencial.

O total abandono dos transportes públicos tem sido fonte de grandes embates populares pela defesa de um serviço que respeite o usuário, bem como de constantes pressões dos empresários de ônibus por aumentos das tarifas e dos trabalhadores de transportes por salários dignos.

O Partido dos Trabalhadores, surgido das lutas dos trabalhadores nos bairros, nas fábricas e do acumulo político das lutas sociais no país, foi sensível desde sua fundação à questão dos transportes. defendendo "transporte bom e barato". Esse desenvolvimento foi crescendo com o engajamento de militantes dos movimentos populares, de trabalhadores e de técnicos dos órgãos públicos que atuavam no setor. Com isso foi se construindo uma prática cada vez mais efetiva e conseqüente de pressão sobre o poder público. O partido ganhou a simpatia popular e elegeu parlamentares comprometidos que, por sua vez, levaram adiante esta bandeira constituindo Comissões Especiais de Inquérito - CEIs de Transportes – em vários municípios.

Nas cidades onde o transporte coletivo se apresentou como questão problemática, o PT, através de seus militantes, organizou lutas por transportes, defendendo a estatização com controle popular, tarifa social, realidade tarifária e participação popular nas tomadas de decisão. O PT venceu as eleições municipais em cidades onde esta prática política tinha avançado bastante.

Neste contexto, a questão dos transportes tornou-se carro-chefe ele campanhas dos candidatos do PT às prefeituras em várias cidades do país, criando uma grande expectativa, principalmente na militância do partido, de que vencidas as eleições, o problema crônico dos transportes seria rapidamente solucionado pela vontade política e com o apoio popular preexistente.
No entanto, as mudanças, no campo concreto de luta, não se fariam de imediato, nem sem confrontos com os grupos dominantes do setor.

A situação dos transportes coletivos no país é de verdadeira calamidade pública. A frota nacional de ônibus, responsável por 90% dos deslocamentos, não acompanha o crescimento da demanda há mais de dez anos, já ultrapassou a vida útil prevista e grande parte está em estado de sucata. Os financiamentos federais para ampliação ou mesmo renovação das frotas públicas estão bloqueados há anos. Órgãos federais e estaduais de planejamento, gestão e financiamento vêm sendo desmontados ou desmobilizados, deixando as prefeituras e as empresas públicas abandonadas à própria sorte, sem apoio financeiro, técnico e gerencial. A política de investimentos, sem trazer solução para a grande maioria dos usuários, volta-se para obras viárias e de transporte de massa, buscando dividendos políticos e privilegiando os interesses das grandes empreiteiras. As ferrovias suburbanas estão abandonadas e descapitalizadas, sobrecarregando as responsabilidades dos governos locais. Uma política clara de privatização vem sendo aplicada em todas as frentes ao alcance dos grupos econômicos que dominam o setor, procurando fechar as portas às administrações populares que defendem o transporte como serviço público e essencial e não como negócio privado.

No primeiro ano de governo, as administrações petistas se depararam com o abandono, inadequação e emperramento da máquina e com a falta de quadros técnicos de direção comprometidos com a proposta do PT para o transporte. O esforço inicial de remontar as estruturas administrativas foi atropelado pela ação dos adversários, que adotaram a tática de desmoralizar o projeto político do PT, principalmente em um ano de eleição presidencial. quando Lula concorreria com chances de vitória.

Para o partido e o movimento popular, o ano de 1989 inicia-se com expectativa de respostas rápidas e de grande impacto social.

A desmobilização dos movimentos populares por transporte se agravou quando vários de seus quadros foram carreados para postos da administração. No encontro da Articulação Nacional das Lutas de Transportes, em Vitória, em 1989, esse problema é sentido, mas são reafirmadas as propostas de "estatização com controle popular", "participação popular nas decisões", "receita pública com pagamento por Km rodado", "tarifa real e luta pela tarifa social".

Como se verá a seguir, a experiência de um ano e meio de gestão petista dos transportes ampliou e amadureceu a proposta política do partido.

A questão tarifária

No período pré-eleitoral de 1988, as administrações das cidades que viriam a ser governadas pelo PT seguraram os aumentos tarifários com propósitos eleitorais. Logo em janeiro de 1989, o governo federal decretou o Plano Verão, congelando preços e tarifas.

A combinação desses dois fatos coloca as administrações petistas numa situação difícil. Como efetivar as propostas do partido para o transporte - e a mais visível delas era a contenção dos aumentos tarifários num momento em que as tarifas já estavam arrochadas e os custos eram crescentes?

Em Porto Alegre, apesar das pressões dos custos, a administração mantém o congelamento e os empresários lançam-se ao confronto, ameaçando, nos jornais e rádios, paralisar os serviços. A primeira mostra de força da administração é uma inesperada intervenção em várias empresas. O PT local se mobiliza, a população vibra e apóia a iniciativa, mas os adversários, recobrados da surpresa, respondem fazendo uso de todos os meios, inclusive da sabotagem. A Prefeitura não se intimida e reage, denunciando a descapitalização das empresas, as negociatas ilícitas, e assumindo o efetivo controle do serviço.

Nas prefeituras petistas do ABC a luta toma outra direção. Os empresários, ao condicionar a discussão do dissídio salarial à prefixação da tarifa, pressionam os trabalhadores a entrarem em greve. Essa tática produz uma greve de dez dias, sem que as prefeituras recuem da decisão de fixar a tarifa somente após a negociação entre patrões e trabalhadores.

A administração de Campinas também enfrenta os empresários, negando-se a conceder os aumentos exigidos por eles Em represália, os ônibus são retirados da cidade. O governo consegue mandado de prisão contra os empresários. Retornam os ônibus, o serviço se normaliza, e a administração muda sua política tarifária, implantando a tarifa real combinada com o sistema de passes subsidiados.

Em São Paulo, referência nacional para os aumentos tarifários, a pressão dos empresários é muito forte, justamente pelo efeito multiplicador das decisões ali tomadas. A Prefeitura é pressionada pelo PT a manter as tarifas a preços abaixo do real. Frente à resistência da administração, os empresários deterioram progressivamente o serviço, voltando suas baterias para as zonas Leste e Sul da cidade, tradicionais redutos da militância petista. Os mecanismos de controle e fiscalização, herdados da administração anterior, são viciados, ineficazes e reduzem a capacidade de resposta da Prefeitura.

Na medida em que a proposta de tarifas mais baixas é levada à prática pelas administrações, emergem contradições cruciais para o PT. O salário dos trabalhadores do setor é baixo, porém pesa significativamente nos custos do transporte, chegando a atingir 65% do total. Qualquer aumento salarial tem efeito imediato sobre a tarifa, mas o salário dos usuários dificilmente acompanha o dos trabalhadores, que têm forte capacidade de mobilização e pressão devido à essencialidade do setor.

A política de "cortar a gordura" das planilhas tarifárias, levada a cabo pela maioria das administrações petistas de forma correta e justa. tem encontrado forte reação dos empresários, obrigando as prefeituras à intervenção nas empresas. As intervenções são processos extremamente desgastantes, porque delas se espera a solução dos problemas. Porém, a intervenção tem custos altos, necessários para recompor a frota deteriorada e o serviço desorganizado. Além disso, ao intervir ou criar uma empresa pública, a administração abole práticas irregulares das empresas privadas, tais como manter empregados sem registro e não pagar as horas extras pelo valor determinado por lei. Novamente encontramos, no processo, pressões sobre o preço da tarifa, pois a melhoria da qualidade dos serviços representa aumento de custos.

A proposta de tarifa social, com subsídio do poder público ao custeio dos transportes, quando defendida isoladamente, continua com as necessidades de investimento do próprio setor e de outras áreas onde os movimentos populares têm forte presença reivindicativa, como a educação, a saúde e a habitação. Por outro lado, a tarifa real, entendida como cobrança ao usuário do custo total dos transportes, choca-se com o baixíssimo poder aquisitivo da população. Não há contradição maior para o PT do que conviver com serviço ruim e tarifa alta.

A estatização avança

A proposta de estatização do PT avançou, ainda que de forma diferenciada, com a política de transportes posta em prática pelas administrações petistas.

Em Diadema, a Empresa de Transporte Coletivo de Diadema - ETCD -, sem recursos orçamentários, conseguiu sair de 86 ônibus deteriorados, dos quais apenas 26 em operação, para 56 recuperados e uma garagem nova. A Companhia Santista de Transporte Coletivo de Santos - CSTC –, também sem recursos orçamentários, conseguiu reerguer-se após sério confronto com o empresário local, que detinha 45% do sistema, estatizando o transporte da cidade. Hoje, modernizada e com custos reduzidos, recompôs a qualidade do serviço e avança para a compra de ônibus novos e corredores exclusivos.

A CMTC de São Paulo, apesar de seu gigantismo (3 mil ônibus), conseguiu sair de uma situação de estoques zerados, seiscentos ônibus parados e total desorganização administrativa, para a renovação de quatrocentos veículos e a recomposição dos estoques; e luta para superar seus problemas crônicos de manutenção e operação. Essa situação gerou grande onda de quebra-quebras na Zona Sul da cidade e hoje consome recursos da ordem de 35 milhões de dólares/ mês, sendo que parte deles é empregada no projeto de municipalização (receita pública) das empresas privadas que representam 25% da demanda do sistema.

Em Porto Alegre, após longo período de intervenção, várias empresas foram devolvidas, mas a Sopal, a maior delas, ficou sob controle do governo. A Cia. Carris Portoalegrense teve de cobrir a deficiência operacional das empresas sob intervenção operando na sua máxima capacidade.

São Bernardo montou sua empresa no processo de confronto com os empresários quando, após uma sequência de três intervenções, desapropriou uma das garagens e as frotas, e incorporou-as à ETC – Empresa de Transporte Coletivo de São Bernardo do Campo. Com isso, controla hoje 60% da frota, porém apenas 40% da demanda da cidade, pois teve de assumir as linhas mais problemáticas.

Santo André inicia suas ações encaminhando a Receita Pública (municipalização), criando a EPT – Empresa Pública de Transporte de Santo André, visando operar 20% do sistema, e reorganizando a rede. Ao implantar esta política, sofre forte reação dos empresários locais, que ameaçam abandonar o serviço, e termina por intervir e iniciar a desapropriação de uma das empresas da cidade, contando para isso com apoio popular e sindical, e ampliando a participação da prefeitura para 35% da frota.

Em Campinas, a administração pôs em funcionamento uma empresa de desenvolvimento urbano desativada e opera hoje quinze ônibus, encontrando-se em processo de licitação outros 63.

Todos esses avanços, que contaram com forte apoio do partido, não tiveram sua contrapartida em espaços institucionais de participação popular. A prática usual se restringiu ao atendimento de comissões, reuniões nos bairros e assembléias populares. Os projetos de espaços institucionais de participação avançam, em algumas administrações, mas ainda não se configurou um caminho claro que indique a modificação das estruturas administrativas e de decisão dos governos.

Neste processo percebe-se que, a par dos avanços obtidos, a política de contenção tarifária e a falta de uma política de investimento nos transportes (com algumas exceções) impediram que as administrações aliassem as ações de estatização e de municipalização (receita pública) com a melhoria efetiva da qualidade de serviço.

Buscando uma conclusão

O campo da luta dos transportes precisa ir além das ações das administrações petistas. Uma ação clara e firme é importante nesta fase de elaboração e definição das leis complementares da Constituição, de modo que não vingue a proposta da entidade de classe dos empresários privados, a Associação Nacional dos Transportes Urbanos – ANTU –, na qual são incluídas fortes restrições à ação dos municípios e dos estados, visando fortalecer a privatização do setor (projeto de lei do deputado José Santana). Em contrapartida corre outra proposta, até o momento a mais próxima do ideário do PT, de autoria da ANTP (projeto de lei do deputado Jorge Arbage).

As constituintes estaduais conseguiram algum progresso e várias cartas municipais avançaram no mesmo sentido das propostas petistas em relação à limitação da ação metropolitana sobre os municípios, na questão da tarifa social e na participação popular, entre outras. Mas também precisam ser regulamentadas e portanto requerem ação política.

Outro ponto importante é primeiramente consolidar a ação conjunta e articulada que já vem se dando entre as administrações petistas. Em segundo lugar, ampliar essa ação no âmbito nacional, buscando a hegemonia das propostas do PT nos eventos técnicos e nas articulações nacionais de secretários que visem a defesa de uma política de transporte digno.

A consolidação das propostas políticas do PT que rapidamente ganham consistência nos programas estaduais, como no Plano de Ação de Governo de Lula, aponta uma linha de trabalho político maduro, onde as propostas oriundas do movimento popular e dos trabalhadores disputam palmo a palmo, no campo adversário, a direção e os resultados políticos e sociais. A hegemonia de um projeto político é construída através de grandes confrontos, onde se altera a correlação de forças, mas a sustentação, consolidação e avanços posteriores requerem o engajamento coletivo dos vários aliados na contenda (movimentos populares, sindicatos, estruturas partidárias, administração e população beneficiada), de modo a garantir o domínio dos novos espaços e dividir as responsabilidades assumidas.

Finalmente, devemos reconhecer e ressaltar que as ações das administrações petistas no campo do transporte coletivo, ainda que localizadas, tiveram o mérito de alterar a correlação de forças preexistente e têm importância e repercussão nacional, devido ao peso político da proposta socialista do PT.

Pensando em novos passos, algumas considerações para reflexão:

- um transporte de qualidade que respeite o trabalhador e seja operado diretamente pelo Estado, preconizado pelo projeto político do PT, tem um custo maior que o oferecido pelo empresário de ônibus. Por isso a criação de formas de viabilizar a tarifa social é urgente;

- a tarifa social deve ser tratada de forma independente do custeio e transformada em objeto de campanha pública, envolvendo os setores sociais e empresariais comprometidos com a melhoria e com menores custos do sistema de transporte, apoiando as propostas de taxa-transporte e de fundo municipal de transporte, de financiamento e subsídios estaduais e federais para o setor;

- o controle da receita do sistema pelo Poder Público, seja via receita pública com pagamento por km rodado, ou via comercialização do vale-transporte ou passes subsidiados (passe fácil) é condição básica para um efetivo gerenciamento da operação do serviço prestado pelo empresário de ônibus;

- as empresas públicas podem oferecer um transporte de melhor qualidade desde que recebam apoio financeiro para a manutenção das frotas historicamente deterioradas e ampliação das mesmas, seja criando mecanismos para impedir o inchaço com o clientelismo político; seja agilizando a sua administração com participação popular e com gerenciamento moderno,

- a participação popular e comunitária nas decisões precisa superar o plano das intenções e se transformar em estruturas administrativas consolidadas, influindo com resultados práticos nas ações de transportes das administrações petistas;

- o projeto de transporte do PT precisa incorporar politicamente ações sobre a via pública e sobre o trânsito, de modo a dar prioridade ao pedestre e ao transporte coletivo;

- é necessário também incorporar as propostas do chamado "não transporte", onde se aliam medidas de restrição ao uso do transporte individual, com a reconquista do espaço e tempo social, ao restituir as ruas e as áreas ecológicas para a população.

Em suma, dos sonhos se constroem propostas e práticas sociais e delas se constroem os sonhos.

Carlos Morales é superintendente da Empresa Pública de Transporte de Santo André.

Nazareno Affonso é secretário de Transportes de Santo André e autor do livro Chega de enrolação, queremos condução.