Internacional

Os ânimos dos chineses andam exaltados, depois do massacre na Praça da Paz Celestial. Mesmo assim, o processo de transformações políticas na China deverá ser lento, pois a sociedade civil encontra dificuldades de organização e o país não tem tradição democrática.

O jornalista Liu Binyan, de 64 anos, poderá se tornar um grande líder político, como aconteceu com o escritor Vaclav Havel, atual presidente da Tchecoslováquia. Isso se os ventos da democracia conseguirem ultrapassar a Grande Muralha. Expulso do Partido Comunista Chinês (PCC) em 1987, Liu está exilado nos Estados Unidos desde o massacre na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989. Membro fundador da Frente Democrática Chinesa, ele se dedica a fazer conferências – já proferiu mais de trezentas nos EUA e Canadá – e a escrever livros. O penúltimo, Contar para o mundo (Tell the world), é uma retrospectiva detalhada dos acontecimentos do ano passado na China. O mais recente é a autobiografia Uma forma mais elevada de lealdade (A Higher kind of loyalty), resenhado nos maiores jornais americanos, que traça não só o perfil do autor, mas também dos militantes "idealistas" e críticos do PCC, em confronto com os burocratas ditadores e os militantes conformistas.

Como repórter do Diário do Povo, órgão oficial do PC Chinês, Liu Binyan se tornou uma espécie de Jânio de Freitas, temido pelos corruptos. Apesar de todas as perseguições sofridas, ele ainda acredita no socialismo, embora negue o stalinismo e o maoísmo e relativise o marxismo. No seu entender, os povos dos países socialistas vão querer passar por uma experiência capitalista, que não deverá durar mais de cinco anos. Depois, surgirá um novo tipo de socialismo: "Assim como há várias formas de capitalismo, estão se desenvolvendo novas formas de socialismo", afirma.

Antes da entrevista, apresentamos, aqui, um resumo da conferência A China depois da Europa Oriental, proferida no Instituto de Estudos Internacionais do MIT (Massachustts Institute of Tecnology), em Boston, no dia 7 de maio deste ano:

"O Partido Comunista Chinês passou 22 anos de sua história em guerra. Os chineses lutaram durante mais de 150 anos pela sua independência e alcançaram a vitória há apenas quarenta anos. O PCC ganhou a confiança do povo por ter liderado esse processo e, mesmo depois de tomar o poder, a sociedade continuou a confiar nele, pois o partido combatia a corrupção e era eficiente. Mas isso durou pouco, de 1949 a 1959, Ainda assim, os chineses custaram a se rebelar: trinta anos depois dos húngaros, vinte anos depois dos tchecos. O povo chinês suportou até os grandes erros de Mao nos anos 60, que custaram a morte de 30 milhões de pessoas de fome.

Agora, porém, os ânimos estão exaltados. Eu vivi os quatorze anos de jugo japonês e posso dizer que nunca vi as pessoas tão revoltadas contra os governantes como atualmente. As manifestações do ano passado foram muito mais amplas do que a imprensa noticiou. Segundo o governo, elas ocorreram em oitenta cidades, mas na verdade foram em mais de trezentas, contando com a participação de trabalhadores a partir de meados de maio - aquilo que o PCC mais temia.

O movimento, no entanto, foi derrotado. É muito difícil organizar alguma coisa fora do partido: na história da China existe uma tradição de subordinação da sociedade a partidos e lideranças. Foi assim durante a invasão japonesa: todos ficaram esperando as ações do exército comunista e do Partido Nacionalista. Hoje, o povo chinês ainda não se vê como força social capaz de enfrentar o regime, que está cada vez mais brutal. Enquanto na Tchecoslováquia os dissidentes eram condenados a penas de no máximo cinco anos, na China raramente um prisioneiro político fica menos de dez anos na cadeia. Wei Jinsheng, por exemplo, o operário que escreveu os famosos dazibaos no Muro da Democracia, em 1978, foi condenado a quinze anos de cárcere. Dizem que enlouqueceu na prisão.

No ano passado, finalmente, a maioria da população perdeu a confiança no PCC. Apesar das dificuldades, multiplicam-se as organizações clandestinas e já se vêem cartazes contra o governo por toda parte, uma coisa inédita desde a Revolução Cultural.

Os anos de omissão

O movimento popular na China sofreu um grande abalo em 1979, com a derrubada do Muro da Democracia. Entre 1979 e 1985, quase não houve manifestações por abertura. Nós mesmos, intelectuais, deixamos de resistir, de criticar o governo, de defender os presos como Wei Jinsheng, confiando em Deng Xiaoping, que prometia reformas políticas tão logo fossem feitas as reformas econômicas. Enquanto nossos colegas soviéticos não se cansavam de denunciar os gulags, nós calamos. Pensávamos que era melhor evitar a crítica ao regime, a fim de poder continuar escrevendo e publicando dentro do país. Hoje me sinto envergonhado. Por causa desse silêncio, os jovens da Praça da Paz Celestial sabem muito pouco sobre a nossa história. A Primavera de Pequim não tem precedentes em termos de quantidade de participantes, mas qualitativamente o Muro da Democracia foi bem mais rico.

Do que sei sobre a Primavera de Praga, ela pode ser comparada à de Pequim. Mas o povo chinês não se auto-reprimiu tanto quanto o tcheco, depois da invasão russa. Por isso, espero que a situação na China não leve muito tempo para mudar.

Um dos motivos para crermos que os chineses vão esperar menos é o aprendizado da Revolução Cultural, experiência pela qual os europeus orientais não passaram. Ela foi como um gigantesco terremoto, que não teve apenas influência negativa sobre os chineses. Ao sacudir os alicerces do PCC, a população começou a questionar a obediência cega a um "líder infalível". Quando o presidente Liu Shaoqi foi derrubado por Mao, ninguém disse nada. Já quando Hu Yaobang caiu, houve certa oposição. E, no ano passado, quando Zhao Zivang perdeu o cargo, a reação foi intensa - tanto que até hoje ele se recusou a fazer autocrítica. Outro sinal de crescente oposição ao regime é a ajuda que vários perseguidos têm obtido de altos funcionários do partido para se esconder da polícia e escapar do país.

Durante trinta anos o PCC não teve um serviço secreto. Não havia necessidade, pois praticamente todo cidadão era um agente voluntário, tal era a confiança depositada no partido. Só nos anos 80 o governo organizou formalmente uma polícia secreta. Disseram-me que, no ano passado, durante as manifestações, havia 5 mil secretas nas ruas de Pequim. Atualmente, uma em cada três pessoas na Praça da Paz Celestial é um agente do governo. Isso mostra o medo do PCC.

Deng não é o problema

Hoje a maioria das pessoas considera que a queda do regime de Deng Xiaoping é apenas uma questão de tempo. Devemos nos preocupar com o que vai acontecer depois. Durante a Revolução Cultural nosso povo gozou de alguma liberdade de organização, mas logo uma facção começou a brigar com a outra, enfraquecendo o movimento popular. Tenho receio de que depois da queda do regime esses conflitos entre facções cresçam, e a luta no seio da oposição acabe paralisando-a.

Outra questão a ser enfrentada é a das minorias. Muitos me perguntam o que acontecerá se elas proclamarem sua independência da República Chinesa. Esse não é só um problema político mas também racial, pois essas populações são discriminadas pelos han (etnia de cerca de 90% dos chineses). No ano passado, quando o exército abriu fogo contra manifestantes em Lhasa, no Tibete, os pequineses ficaram calados. Corremos, desde já, o risco de graves conflitos entre a maioria han e as minorias, o que pode vir a fortalecer um regime de força.

Mudança lenta e violenta

Os recentes acontecimentos na Europa Oriental estão tendo um tremendo impacto no partido e no povo. A queda de ditadores como Ceausescu mostrou ao povo que o poder do PCC não é indestrutível, e muitos funcionários do partido, atemorizados, já preparam sua fuga.

Acredito, porém, que o processo na China vai se desenvolver de maneira diversa. O país é extenso e as províncias guardam muitas diferenças entre si. É praticamente impossível que as coisas mudem totalmente de um dia para o outro. É mais provável que a transformação ocorra aos poucos, de região em região, mais ou menos como nos anos 40, quando a autoridade do governo central foi sendo enfraquecida à medida que o Exército Popular avançava pelo território. Diferentemente do que aconteceu na Europa Oriental, o derramamento de sangue será inevitável. também porque a tradição de democracia entre nós nunca foi muito forte. Para fortalecê-la em meu país, assim que voltar, quero fundar meu próprio jornal. Sei que terei o apoio dos meus leitores. Quando fui expulso do partido pela segunda vez, em 1987, recebi milhares de cartas - mandavam-me alimentos, remédios e até dinheiro. Um jornal como o que sonho será lido por pelo menos 20 milhões de pessoas."

Após a conferência, Liu Binyan respondeu a perguntas de chineses, sinólogos americanos e da repórter brasileira.

Você ainda acredita que o socialismo é a melhor solução para a sociedade contemporânea?
Estou entre aqueles que procuram um terceiro caminho, que não seja o capitalismo - um sistema que aguça as disparidades sociais -, nem o socialismo de Mao e Stalin - alço muito diferente do previsto por Marx. Com isso não quero dizer que o marxismo seja infalível. Considero que Marx errou ao crer na inevitabilidade da revolução violenta. Marx também errou ao antever uma rápida queda do capitalismo, com o empobrecimento cada vez maior dos trabalhadores - o que na realidade não aconteceu. Mas ele acertou na análise dos problemas fundamentais do capitalismo. Não é possível negar totalmente o marxismo. Assim como há várias formas de capitalismo, estão se desenvolvendo novas formas de socialismo.

Na sua opinião o que está acontecendo no Leste Europeu é um desenvolvimento do socialismo?
Acredito que durante quatro ou cinco anos a população desses países vai querer seguir na direção do capitalismo. Porém, esses povos, nos últimos quarenta anos, acostumaram-se com os baixos aluguéis, a saúde gratuita, o pleno emprego, e valorizaram essas conquistas. Quando elas forem anuladas - e isso está começando a acontecer -, acho que preferirão evoluir para o socialismo.

Qual o papel dos trabalhadores urbanos na luta pela democracia na China?
A maioria das vítimas da repressão às manifestações do ano passado foi de trabalhadores. Sua entrada em cena levou Deng Xiaoping a suprimir os protestos com violência. Os líderes operários que sobreviveram estão todos na prisão: muitos foram fuzilados sumariamente. Os trabalhadores foram e sempre serão a principal força contra o regime.

E quanto aos jovens da Praça da Paz Celestial?
Sem dúvida, os estudantes conseguiram chamar a atenção do mundo para a China. No entanto, o movimento estudantil carece de teoria e objetivos, neste sentido, está bem aquém do movimento do Muro da Democracia. Isso talvez possa ser explicado pelo fato de os estudantes serem muito jovens, inexperientes, e terem crescido justamente no período de passividade, quando depositávamos esperanças no governo de Deng Xiaoping.

O lado positivo dessa geração é que ela não sofreu a educação tradicional, não sofreu influência do pensamento feudal e da pregação "socialista" do partido, já que esta foi bastante reduzida depois da morte de Mao. Portanto, os jovens são muito críticos do sistema, o que por vezes os leva a adotar posições individualistas, consumistas e a favor do sexo livre, como se tudo o que pregávamos na época de Mao fosse errado.

Os camponeses foram muito beneficiados pelas reformas econômicas e são a maioria da população. É neles que o regime se apóia contra a população urbana?
Vivi treze anos entre os camponeses e posso assegurar que o partido exerce menos controle sobre eles do que sobre outros setores da sociedade. É verdade que os dez anos de reformas foram muito mais efetivos no campo que na cidade. Antes de 1979, o camponês era um verdadeiro escravo. As mudanças econômicas trouxeram muita liberdade para os trabalhadores do campo. No passado, eles não possuíam nada e não tinham nada a perder. Agora, querem que o Estado proteja suas posses contra o banditismo, temem o caos e querem se livrar do que resta de controle do partido. Ignoro sua força organizada. Por enquanto, os camponeses são uma força subterrânea, mas bastará o povo se levantar para a revolução que eles apoiarão.

Qual a situação atual das forças oposicionistas dentro e fora da China?
Desde junho de 1989, surgiram mais de dez organizações clandestinas no país, porém boa parte da oposição continua no PCC. A ala reformista e a ala democrática têm a sua importância na base no partido, mas na cúpula essas forças são minoria, pois muitos contemporâneos de Mao ainda dão as cartas. Quanto às organizações no exterior, elas precisam amadurecer.

Com a queda das burocracias comunistas no Leste Europeu, alguns intelectuais dissidentes estão se tornando dirigentes em seus países. Você, como membro da Frente Democrática no exílio, já está se preparando para assumir o poder na China?
Fui um dos fundadores da Frente Democrática, criada em outubro de 89, na França, mas decidi não participar de sua direção. O motivo é que assim como Su Shaozhi (intelectual exilado nos Estados Unidos) - que se autointitula "o último marxista chinês" -, acho que estou idoso para tanto. Acredito que contribuo mais como escritor para a instauração de um regime democrático na China.

Você foi membro do PCC dos dezenove aos 62 anos. Na sua autobiografia, você resgata o que seria "uma forma mais elevada de lealdade", que pautou o comportamento dos militantes que não se subordinaram à direção do partido. Você ainda acredita na reforma do Partido Comunista Chinês?
De alguma forma sempre combati a burocracia e o conservadorismo dentro do partido. Em 1956, comecei a escrever artigos críticos, revelando que Mao começara a restringir a ação dos intelectuais pelo menos desde 1942, quando, na célebre reunião de Yanan, não admitiu a interpelação do escritor Wan Shin We e decretou seu fuzilamento sumário. Essas críticas me valeram o exílio para o campo e o rótulo de ultradireitista, que carreguei por 22 anos. A pressão era tanta que durante muito tempo eu mesmo me considerei culpado.

Enquanto vivi entre os camponeses, o partido foi se tornando cada vez mais corrupto. Quando voltei para Pequim, o grau de degeneração do PCC me surpreendia mais do que aos meus colegas intelectuais que não haviam deixado a cidade. Para mim, isso era insuportável e recomecei a fazer denúncias nas páginas do próprio jornal do partido.

Muitos leitores, então, tomaram coragem e passaram a ter uma atitude de contestação. Acredito em muita gente que ainda está no PCC. Talvez um terço de seus membros sejam boas pessoas.

Marília Andrade é jornalista e autora, juntamente com Luís Favre, de A Comuna de Pequim – A revolta dos estudantes contra os mandarins vermelhos, Editora Busca Vida, 1989 (um artigo com o mesmo título foi publicado em T&D nº7).

(Colaboraram Luís Favre, Joana Andrea Martins e Ana Cristina Magalhães)