Cultura

O partido não pode encarar a cultura como um assunto secundário nas discussões políticas

O Partido dos Trabalhadores tem propostas claras para alguns problemas brasileiros, mas não um programa transparente de ação social na área cultural. Somente após a conquista de prefeituras é que se atentou para esta necessidade. As políticas para o setor tiveram (e têm) o seu nascimento problematizado, porque não foram (e ainda não são) frutos da experiência global do PT. São resultado, apenas, do exercício do poder administrativo.

Nas décadas de 50 e 60, as esquerdas no Brasil mantiveram, com frequência. programas e publicações periódicas nas áreas de teatro, literatura e música. Estes programas eram exercidos concomitantemente à luta política, como uma sedimentação do confronto ideológico. O sentido básico desta iniciativa era articular as informações a partir de um prisma crítico, para constituir uma visão divergente do fenômeno social, em relação ao pensamento das classes dominantes.

Sem entrar no mérito específico da leitura que as esquerdas fizeram daqueles anos no Brasil, parece-nos interessante destacar dois pontos que, no que se refere à forma de atuação política, desenham uma determinada compreensão do complexo humano e social. Primeiro, a efetivação de uma política cultural no interior das organizações políticas, partidárias ou não; segundo, como decorrência dessa efetivação, a percepção do grau de importância e necessidade de uma ação cultural que incidisse no embate social, político e ideológico.

Passados esses anos todos, uma revisão crítica pode até discordar da pertinência de vários dos temas levantados ou dos tratamentos dados, mas o fato é que tal iniciativa foi se diluindo, até quase sucumbir (no decorrer desse processo, é interessante assinalar que, durante os anos 70, tinha-se a opção pela luta armada, onde a questão cultural quase desaparecia, enquanto, nos grandes centros urbanos, os projetos culturais de resistência ganhavam cada vez mais força).

Na década passada, assistimos a um refluxo do papel e da importância da cultura na prática política, como se ambas fossem instâncias estranhas uma à outra. Nos anos 80, o Brasil tomou o caminho da institucionalização, tanto da ação política quanto da cultural. No campo da política tratou-se de uma conquista das mais significativas: veio no bojo do processo de democratização e da anistia (ainda que recíproca e parcial). No caso da cultura, porém, a institucionalização significou o fim de uma atuação de resistência, surgindo em seu lugar a adoção dos modos massificados de produção cultural como modelo privilegiado de expressão (e em muitos casos de alienação), ainda que esforços individuais tenham existido.

Deste modo, entramos nos anos 90 desprovidos de uma visão de organicidade entre política e cultura, na perspectiva dos trabalhadores. Com grande freqüência percebemos no nosso partido a reprodução das velhas visões segundo as quais primeiro mudam-se as condições de vida, para só depois alterar-se a ideologia. Além do mecanicismo explícito, tais concepções compreendem a cultura como um setor estanque, um simples departamento da vida social, sem perceber que ela é o universo no qual se movem as ações cotidianas, as relações de trabalho, as práticas artísticas, a produção e reprodução do conhecimento, os hábitos e costumes, as leis, o embate ideológico e também as ações políticas.

O Partido dos Trabalhadores tem encarado a questão cultural (sem debatê-la a contento) a partir de algumas necessidades imediatas. Uma delas é aquela determinada pelas campanhas eleitorais: nesses momentos a cultura reduz-se ao espetáculo artístico, à condição de ornamento, de mero realce aos palanques e aos programas veiculados pela mídia. Já em outros instantes, a necessidade é resultado de uma vitória eleitoral, quando o comando das instituições do Estado exige do PT a elaboração de políticas culturais. De qualquer modo, elas são realizadas no plano das administrações; não são anteriormente discutidas e efetivadas em programas e práticas no âmbito mais amplo da atuação partidária.

É perceptível que as vitórias eleitorais trouxeram à tona a necessidade de privilegiar a busca de soluções para os problemas básicos da população. Assim, as prioridades das nossas administrações acabaram recaindo nas áreas de transporte, habitação e urbanização. No entanto, parece-nos que nada se transformará neste país (optemos por reforma ou revolução, pela via institucional ou pela ruptura), se o nosso partido não atuar de forma integrada e integradora. Ou seja, entendendo que não só as condições materiais de vida dos trabalhadores precisam ser transformadas, mas também as práticas humanas e sociais. Nossa crítica à eleição de determinadas prioridades não se dá no sentido de negá-las enquanto tais - ela acontece porque as soluções propostas circunscrevem-se via de regra nos contornos do imediatismo e do aparente. O desafio está em conseguir trabalhar essas prioridades de forma conjugada a programas culturais de formação, difusão e informação, pois somente desta maneira alteram-se as relações entre os cidadãos e destes com o mundo.

Estamos convictos de que, se não atuarmos na direção apontada, pouco se contribuirá para a identificação e a solução da contradição principal do capitalismo brasileiro. Um trabalho dessa natureza pode e deve dar-se no plano das administrações. No entanto, exige-se ainda uma ação no âmbito do partido, não de forma atomizada, como admitem as visões corporativistas, mas articulada ao projeto social e econômico.

Urge ao PT uma política cultural que não se reduza a manifestações superestruturais ou simbólicas. Independentemente de estar ou não no governo, o partido deve levá-la ao conjunto da sociedade, fomentando e estimulando a organização dos trabalhadores em torno dos temas culturais no sentido estrito, e tratando todas as questões sociais no seu sentido mais amplo. Isto significa que devemos estar preparados para exercer uma ação cultural no e a partir do Estado.

O Estado e a cultura
Com muita frequência fala-se da não-intervenção do Estado na cultura. Seus defensores invocam experiências passadas, de natureza autoritária, como os modelos nazifascista, stalinista, o Estado Novo e a ditadura militar. Por certo estes exemplos têm de estar sempre presentes, mas afirmar que, por causa deles, qualquer forma de organização do Estado não deva interferir na cultura, além de ser uma visão inconsistente, significa a defesa da privatização das práticas culturais.

As relações entre Estado e cultura não podem ser entendidas de forma mecanicista, mas analisadas como integrantes de um projeto social, político e econômico. Assim, é preciso levar em conta aqueles momentos em que a atuação do Estado propiciou avanços significativos para o campo cultural.

O projeto político da URSS imediatamente após a Revolução, antes de desembocar no stalinismo, é exemplo significativo. Basta citar que ali foram incentivadas formas inovadoras de práticas sociais, culturais e artísticas que revolucionaram a literatura, as artes plásticas, a música, as artes cênicas, o cinema, estendendo-se até o jornal, a comunicação social e a publicidade. Naquele momento, a revolução era do conteúdo, da forma, da técnica e, principalmente, dos meios de produção,

Evento e Formação

Há um tipo de política cultural que privilegia o evento, e outro que concentra na formação todo o seu esforço. O primeiro procura a descentralização dos espaços e das oportunidades, em nome da democratização do produto, sob o slogan "levar a arte ao povo". O segundo aposta na ampliação do acesso à possibilidade de criação, em nome da democratização do processo de produção artístico-cultural.

No interior do PT e dos setores das administrações que cuidam da cultura há uma nítida tendência para o segundo modelo. A razão disto é que ele está, ao menos aparentemente, mais próximo da socialização dos meios de produção, e aposta na redução da fragmentação da vida dos trabalhadores. Entretanto, o primeiro modelo não deixa de ter adeptos: ele traz resultados (e votos) a curto prazo.

A política de eventos investe na descentralização cultural, criando mecanismos e equipamentos que ampliam o acesso aos bens culturais, expandindo com isso o mercado de consumo. Mas ainda que eles veiculem produções que os meios de comunicação de massa não incentivam, em curto espaço de tempo convertem-se em pólos disseminadores da cultura massificada, pois somente por esta via os resultados de curto prazo almejados estão assegurados.

A política de formação, por seu lado, transforma-se rapidamente em geradora de mão-de-obra. Os produtores iniciados em programas de formação procuram a sua profissionalização nos grandes centros dominados pela mídia. Este é o caminho necessário para que apareçam valores novos, questionadores ou reiteradores dos valores vigentes - hoje, como é próprio do capitalismo, a indústria cultural absorve esses dois domínios, colocando-os no mercado quase que em pé de igualdade e necessidade.

Assim, tanto a formação e o fornecimento de mão-de-obra, como a expansão e a solidificação do mercado consumidor de bens culturais, são fatores necessários e complementares de um mesmo processo de fabricação, veiculação, venda e consumo de cultura. Em poucas palavras, o fenômeno da alienação do trabalho estende-se ao fazer cultural.

A escolha de um ou de outro modelo traz a marca do pecado original de reduzir a questão cultural às linguagens e códigos artísticos, tendo como horizonte máximo a utilização da mídia e/ou a ampliação do debate acadêmico. Além disso (et pour cause), qualquer dessas opções reduz a cultura às manifestações superestruturais, mostrando-se impotente para entendê-la como um universo dentro do qual se move a política e, portanto, impotente também para articulá-la em um projeto global para a sociedade.

Fomento Cultural
Nossa política para a área deve fomentar ações que visem a transformação das estruturas, relações e valores, na direção de uma sociedade socialista.

Isto necessita estar traduzido nos planos de governo e programas de ação cultural de nossas administrações, sem jamais perder de vista que a contradição principal a ser resolvida por nossa política é a capital-trabalho e não a Estado-nação. Se a ação do partido junto à classe trabalhadora deve estimular o surgimento de círculos, centros e fundações culturais independentes, às administrações cabe tê-los como seus interlocutores privilegiados, como base da organização de conselhos (e não apenas e fundamentalmente as corporações profissionais).

São aspectos que se articulam nesta política de fomento cultural, os trabalhos de informação, formação e difusão culturais, que, para um correto desempenho, exigem interfaces precisas e ajustadas com todos os programas das administrações, uma vez que temos uma visão viva e dinâmica da cultura. oposta à de um saber cumulativo, "museológico" ou apenas acadêmico, desvinculado do fazer cotidiano, da produção da vida social presente e futura.

Alípio Viana Freire é membro do Conselho de Redação de Teoria & Debate.

Mário Bolognesi é diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Bernardo do Campo.