Para o pensador francês, crise no Oriente Médio, racismo, violência estão relacionadas com achatamento das subjetividades
Para o pensador francês, crise no Oriente Médio, racismo, violência estão relacionadas com achatamento das subjetividades
Impossível definir Félix Guattari como pensador sem levar em conta a sua dimensão militante, já que para ele essas coisas não se separam: a reflexão e suas consequências práticas, o individual e o social, o público e o privado. Por isso mesmo, Guattari foi se transformando nessa espécie riquíssima (e hoje rara) de ser humano que vai sendo expulso, ou se auto-expulsando, de todas as instituições, de todos os lugares onde pensamento e ação se paralisam, comprometidos com a manutenção de posições de poder: as sociedades de psicanálise na França, os movimentos e partidos políticos, os modismos intelectuais que tendem a banalizar na forma de grandes conceitos universais a multiplicidade das singularidades humanas.
Excêntrico (ou seja, fora do centro), mas não marginal; coerente com suas ideias, o autor do Anti-Édipo (com Gilles Deleuze), Revolução molecular, Cartografias do desejo (com Suely Rolnik) e do recente As três ecologias, não se considera sem lugar, num mundo onde os territórios devem ser continuamente reinventados. Esta excentricidade fez com que ele sempre se interessasse pelas formações sociais que expressam dissonâncias subjetivas em relação ao achatamento que o mercado e os mass media promovem: dos movimentos de 68 na Europa à guerra no Oriente Médio, das rádios livres à ecologia, da crise no Leste Europeu à reinvenção do socialismo pelo PT, partido que ele acompanha com interesse desde sua fundação.
A entrevista que se segue foi concedida por Félix Guattari a Antônio Lancetti e Maria Rita Kehl, durante sua última visita a São Paulo, em agosto deste ano. A tradução é de Peter Pál Pelbart.
Podemos começar pelo mais atual: como você está vendo esse conflito no Oriente Médio?
O tempo das opiniões definitivas acabou. Esses acontecimentos me inspiram sentimentos e pensamentos contraditórios. Evidentemente, devemos condenar o gangsterismo internacional de Saddam Hussein, que constitui uma violação flagrante dos direitos dos povos de dispor deles mesmos. Ao mesmo tempo, existe essa política inquietante dos Estados Unidos. É como se desde a queda do Muro de Berlim houvesse uma única superpotência, que se permite tudo: os EUA. Não é certamente assim que se resolverão os problemas econômicos do Terceiro Mundo. A crise iraquiana, que é o prolongamento da guerra Irã-Iraque, inscreve-se no que tem sido, nos últimos decênios, a política capitalista no Oriente Médio. Pode ser que com essa guerra nós entremos num período muito difícil das relações internacionais. Antes, os conflitos locais eram sempre sobrecodificados pelo conflito Leste-Oeste. Os conflitos do Vietnã, do Afeganistão, encontravam sempre seu limite, porque num certo momento atingiam um ponto a partir do qual poderia se desencadear uma guerra mundial. Atualmente este perigo é quase inexistente, de modo que uma guerra local praticamente é ilimitada. Iraque, Israel, podem empregar armas químicas ou atômicas, sem que nenhum constrangimento estrutural nas relações internacionais os interdite.
Qual é o outro lado dessa guerra que você chamou de conflito de subjetividade entre um modo capitalista e um modo árabe?
Os países do Sul, denominação que prefiro a "Terceiro Mundo", estão sendo laminados pela subjetividade capitalista mass mediática. Todas as antigas estruturas sociais e subjetivas estão sendo destruídas, e estão sendo injetadas representações mentais, afetos e ideais de status importados dos países desenvolvidos. Há diferentes níveis de resistência a esses processos de laminação. Nos países do Oriente Médio, isso tornou a inquietante forma de um integrismo que não se pode considerar somente como a retomada de um arcaísmo muçulmano, mas também como uma reinvenção total desses elementos religiosos. Essa reinvenção pode ser comparada com a que Hitler fez de temas como povo, raça, sangue, mitos germânicos. Esses arcaísmos são, na realidade, formas de fascismo moderno, com tudo o que isso implica em termos de ameaça de desestabilização para a Europa - basta ver os efeitos subjetivos que já se fazem sentir, como, por exemplo, o fortalecimento de ideologias racistas, que, especialmente na França, tomaram um peso político considerável.
Dos anos 60 para cá, ao mesmo tempo que houve uma emergência do subjetivo na cena político-social, facilitada pelos mass media, aconteceu também um achatamento das pequenas diferenças individuais e grupais, uma invasão e uma simplificação das próprias subjetividades pelas esferas política, econômica etc. Quando você fala da laminação que a lógica de mercado impõe às diferenças, o que é que fica reprimido, capturado pelo mercado, ou por políticas fascistas, ao invés de libertado, como se anuncia?
O problema se coloca aparentemente em termos de difusão sobre um mercado subjetivo agora planetário - de imagens, representações, enunciados etc. Toda a questão é saber como essas imagens e representações são consumidas - se tomadas somente numa relação de sugestão, que implica por parte dos consumidores uma espécie de passividade, ou se reapropriadas individual e coletivamente. Mas há um desafio aí, micropolítico, político, primordial, porque essa reapropriação não se dá necessariamente no sentido progressista. A força dos movimentos racista-reacionários, como a Frente Nacional, na França, ou o Pamiat, na Rússia, é que eles catalisam uma autonomia subjetiva, ao sair da consumação passiva da media. Há uma potência libidinal nesses movimentos reacionários. Nesse sentido, é que não dá para considerá-los movimentos totalitários, simplesmente. Essa característica é que lhes dá capacidade de ganhar terreno sobre os movimentos operários tradicionais. Então, de duas, uma: ou os movimentos progressistas, os movimentos de liberação contemporâneos perderão terreno - incapazes de apreender os novos dados da subjetivação coletiva -, ou adquirirão meios de fazer com que essa subjetivação se dê de maneira verdadeiramente progressista, desenvolvendo referências de liberação, criando novos espaços de liberdade, propondo novos horizontes à subjetivação, fora dos marcos tradicionais e conservadores, e, em particular, reinventando os modos de se fazer política, porque essa temática não é só ideológica e não seria suficiente que o PT, por exemplo, levantasse a bandeira da revolução molecular. É preciso que o PT comece a fazer a sua própria revolução molecular, a sua própria análise institucional - especialmente num terreno que me parece evidente, que é o do papel das mulheres na organização -, o que representa descentrar as preocupações políticas tradicionais.
O Brasil está marcado pelo estigma do novo. O lema do governo Quércia é Novo Tempo; o do governo Collor, Brasil Novo. Estas representações pressupõem a velhice e o fracasso do socialismo. Este excesso do uso do novo tenta apropriar-se do efeito Leste Europeu com uma intencionalidade neoliberal...
Não conheço bem a realidade brasileira, mas me parece que o capitalismo foi capaz de integrar subjetivamente o planeta, sem conseguir fazê-lo do ponto de vista econômico. Quais são os únicos "sucessos" do capitalismo no Terceiro Mundo? As medalhas ganhas ao custo de uma exploração impressionante: Hong Kong, Formosa, Coréia do Sul, Cingapura etc. Mesmo onde havia possibilidades imensas, como no Oriente Médio, pode-se dizer que o balanço, levando em conta a vida de milhões de indivíduos, é totalmente negativo. Em relação aos países do Leste Europeu, é possível que com muita dificuldade a Alemanha Oriental se integre ao sistema. Pode ainda ocorrer a integração de parte da Tchecoslováquia ou da Hungria, uma integração parcial de certas áreas geopolíticas, mas na grande maioria dos casos os países do Leste e as Repúblicas Soviéticas correm o risco de cair num processo de terceiro-mundização. Então, o triunfo do capitalismo liberal, confesso que não o vejo muito bem, pois se for para transformar a periferia de Moscou em alguma coisa como o Bronx ou o Harlem, acho que a vitória é relativa.
Fale da ideia de liberdade e sua relação com o "fim do socialismo".
Pessoalmente, não vejo inconveniente algum em que se termine com uma falsa representação do socialismo burocrático, um socialismo de Gulags - e mesmo de um socialismo tutelado, como esse de Cuba. Não é algo que nos force a tomar uma posição depressiva; é algo que libera o campo do possível: vai ser preciso reinventar alguma coisa que se chame socialismo ou tenha qualquer outro nome, não importa. Para isso, é preciso que os objetivos de luta sejam muito menos dogmáticos. Deve haver uma orientação para uma concepção pluralista de mercado e Estado, o que acarretará o fim de um certo dualismo mecanicista entre a função pública e a privada. Acho que existe toda uma invenção institucional que implica a autonomização das entidades sociais e culturais, não através do mito da autogestão absoluta, mas de articulações com diferentes mercados. Por exemplo, os empreendimentos educacionais ou psiquiátricos deveriam escapar dessa espécie de dilema diabólico, entre a tutela burocrática do Estado, que é quase esterilizante (pelo menos na França), e a captura pela área privada. Há todo um terceiro setor instituído, de economia social, experimentação coletiva, que as novas formações políticas deveriam sustentar - o que significaria, da parte delas, renunciar à associação com tendências corporativistas que existem no movimento operário e entre os funcionários. Um outro problema é o da redefinição das relações entre o trabalho e a atividade social. A informatização e a robotização da produção tendem a eliminar muitos postos de trabalho tradicionais. Com isso, criam-se novas perspectivas, como a de se incorporar o trabalho doméstico ao regime salarial. O último ponto é que as organizações políticas, elas mesmas devem se redefinir, redefinir o tipo de articulação que têm com seu campo pragmático. É por essa via que talvez haja a recomposição de um "socialismo". Mas essa via requer um enriquecimento, uma maior complexidade em relação aos organismos militantes tradicionais, existentes sob o centralismo democrático.
Está se falando de uma organização crescente no campo social, se é que compreendo o que você diz. Eu pergunto: o que será da dimensão do prazer, do divertimento? Será que isso pode ser organizado? Como é possível manter dimensões da vida que não sejam diretamente regidas por lógicas de estado ou mercado? Eu acho que a maior violência que uma lógica capitalista nos impõe, sem que percebamos, é este achatamento do tempo, que causa um desconforto, um descontentamento existencial que talvez possa explodir nessas demonstrações fascistas que você apontou. As pessoas não agüentam mais viver neste mundo tedioso, opressivo, e não conseguem localizar o descontentamento.
Bom, se a finalidade das lutas sociais e das lutas de subjetivação sair de uma lógica estrita de correlação de forças para a apropriação de bens e a tomada do controle das formações de poder; se, em lugar disso, for dada outra finalidade à atividade social e à individual, de ressingularização da existência, mais no sentido do dissenso que do consenso, deve-se adotar uma lógica segundo a qual as coisas não são brancas ou pretas, sim ou não, mas compostas. Uma lógica que evoca o que Freud chama de processos primários. É esta a dimensão ético-política sobre a qual eu insisto tanto. Um exemplo que diverte é a reflexão que Merleau-Ponty fez em uma de suas aulas. Ele visitou uma escola de método Freinet, e uma criança lhe perguntou: "No ano que vem nós seremos obrigados a ser livres?". Não se pode obrigar os pedagogos e os professores a utilizar métodos revolucionários, não se pode obrigar os trabalhadores de saúde mental a se "converter" à psicoterapia institucional. É preciso existir um fator de autodeterminação. Não se pode regulamentar - seja o Collor, seja o PT, dá na mesma, não teria sentido.
Mas o que eu queria perguntar é se a via política é adequada para mudar comportamentos da via privada. Se isso não seria uma redução do privado ao público.
Talvez haja uma micropolítica do privado e objetivos moleculares que trabalham o público. Há, provavelmente, um cruzamento, uma transversalidade entre o que você chama de a via do público, e a do privado, que faz com que, por exemplo, o problema da emancipação da condição feminina se coloque ao mesmo tempo numa micropolítica privada e também nas relações no plano público, restabelecendo sistemas de parentesco, redefinindo a distribuição de responsabilidades em todos os aspectos da vida social e individual.
Ainda se fala em "luta ideológica" em relação a essas coisas. É um processo lento, não?
Muito lento quando se concebe a ideologia como uma modelização cognitiva procedente de um modo discursivo, pedagógico etc. No entanto, algumas vezes existem mutações ideológicas muito brutais, muito rápidas, como nos anos 60, ou como a que ocorre no Oriente Médio.
Você veio várias vezes ao Brasil e tem contato com o PT há dez anos. Que impressão você leva desta última viagem, e, mais especificamente, o que você achou do Hospital Anchieta, em Santos, um investimento concreto de uma administração petista na área psiquiátrica?
No início eu me perguntava se o PT, sob influência desses componentes sectários, "grupusculares", dogmáticos, não se transformaria numa formação política tradicional. Eu me lembro, por exemplo, dos debates com a Katerina Koltai, com o Liszt Vieira, no começo dos anos 80, sobre drogas, onde todas essas dimensões da revolução molecular não podiam ter lugar dentro do PT. Com a expansão extraordinária do partido, tenho a impressão de que a situação evoluiu muito, e que estamos numa posição transitória: ou haverá uma situação em que, de um lado, existirão os militantes de campo e, de outro, os militantes de aparelho - e a meu ver, se isto acontecer, o PT terá o destino de uma organização tradicional e talvez perderá sua influência -; ou, ao contrário, o PT continuará a ser um laboratório social em grande escala e inventará um novo tipo de militância, um novo tipo de liderança. Neste caso, ele pode ter plenas condições de tomar o poder no Brasil, de ter uma importância considerável em toda a América Latina e mesmo no mundo inteiro... Porque não existem muitos laboratórios sociais hoje em dia tão ricos e progressistas quanto o PT. Quanto à segunda pergunta, com esse apoio da Prefeitura de Santos, que me parece precioso, vocês estão tendo uma experiência extraordinária no campo do que se poderia chamar de revolução psiquiátrica.
O que sobrou da Revolução Molecular? Parece que a grande recusa que os jovens prometeram fazer, nos anos 70, em relação à sociedade de consumo, não se concretizou.
Eu acho que você interpretou essa temática num sentido unicamente progressista. Se você evocar os fenômenos da contracultura nos anos 60, verá bem a conjunção entre isso que eu chamo dos fenômenos da revolução molecular, isto é, das subjetivações emergentes, e das temáticas utópicas e progressistas. Mas são duas coisas independentes. A revolução molecular, eu repito, e parece que nunca repito o suficiente, se exprime também através de fenômenos conservadores, de reterritorialização, como o racismo crescente, a violência, a droga etc. Enfim, esses também são componentes da revolução molecular.
Mas por que então você usa o termo "revolução"?
Porque são transformações sui generis, que implicam uma nova percepção do mundo, uma nova percepção da violência, uma nova relação com o corpo, uma nova relação com o tempo, que participam de uma revolução/produção: se você quiser, poderíamos dizer produção molecular. Se o termo "revolução" atrapalha, pode-se substitui-lo facilmente por produção subjetiva, ou por produções emergentes. Pois bem, essas problemáticas de produção da subjetividade ou revolução molecular foram sistematicamente afastadas e sufocadas pelos pensamentos capitalista e socialista - pelos pensamentos dominados, pela transcendência dos poderes de Estado.
Mas hoje isto explode de todos os lados, nos países do Leste Europeu, China, Oriente Médio, através de modalidades muito diferentes, com um avanço demográfico incrível, que faz com que centenas de milhões de jovens no planeta não encontrem seu lugar na sociedade dominante; isto explode com os problemas de racismo, com os problemas da condição feminina que continuam a se colocar. Então, eu não digo que isto vá caminhar num sentido progressista, mas que os movimentos progressistas devem se recentrar, para reformular sua ação sobre este tipo de problemática, pois, do contrário, eles farão a política dentro dos belos bairros do Rio e São Paulo, falarão na televisão, mas isso não terá a mínima relação com as realidades sociais, políticas e afetivas de um país como o Brasil.
Dentro do PT há algumas concepções, até dominantes, que entendem a micropolítica como oposição à macropolítica, e chamam o pensamento de Guattari, Deleuze e de Foucault de concepções minimalistas do poder...
Por que eu me interessaria por um partido político como o PT? Eu sempre disse, sempre, sempre, que é primordial construir grandes máquinas de guerra social, máquinas capazes de ações centralizadas, de intervir sobre as relações de força etc. - porque sem isto a revolução molecular permanece somente molecular, escapa por todos os lados e não pode influir sobre as grandes relações sociais. O que provocou a explosão do conservadorismo em todos os países desenvolvidos nos anos 80 foi precisamente o fracasso da revolução molecular dos anos 60. A onda reacionária dos anos 80 foi fruto do fracasso da revolução molecular. Fracassou porque não se construiu novas máquinas sociais e a velha CGT, o velho PC, a velha social-democracia continuaram a capitalizar os movimentos sociais. Mas havia lugar para a invenção de um PT na França! Eu tentei intervir neste sentido, mas não tive sucesso.
Talvez seja o caso de perguntar qual a sua noção de progressismo.
É isso, é a própria noção de progressismo que é preciso colocar em questão, este mito da dialética hegeliana, da dialética marxista. de pensar que quanto mais a história avança, mais as máquinas técnicas e científicas se desenvolvem, e que teremos um horizonte resplandecente diante de nós. Nós temos também um horizonte de fascismo planetário, um horizonte de explosão demográfica, de degradação total do planeta no plano ecológico, e esta é também a "finalidade da história". Tudo é possível neste plano, e daí o caráter completamente angustiante, dramático, da situação, mas também o seu caráter exaltante, porque as práticas sociais, a criatividade, a inventividade. em quaisquer domínios, colocam ao nosso alcance o futuro da humanidade, e também da biosfera, a sobrevivência do planeta etc.
As "lutas intestinas" no PT têm muito a ver com este "efeito Hegel" entre os militantes de esquerda, ou, por outro lado, com a concepção religiosa da militância. Qual a distinção entre uma prática democrática da igualdade e uma democracia da diferença?
A questão das lutas intestinas se liga à problemática da alteridade. Não se trata de aceitar o outro em sua diferença e sim de desejar o outro em sua diferença, como escreve Emmanuel Levinas. As lutas intestinas são lutas capitalistas, de afirmação narcísica: "não quero saber o que o outro pensa, quero deter o saber absoluto, o que me confere poder". São neuroses da esquerda.
E o aspecto religioso dos conflitos?
Um dos grandes sucessos do PT, a meu ver, foi o de ter sido capaz de capitalizar o que há de melhor na subjetividade religiosa - o aspecto da devoção, da abertura ao outro etc. - nas práticas sociais dos militantes católicos. Mas se trata de entender essa pertinência às ideologias religiosas como algo fora da esfera ideológica. Essas noções existenciais como ser mulher, ser artista, viver alguma relação de transcendência, não pedem julgamento da ordem de certo ou errado, quem tem razão etc. Pelo contrário, são vivências que implicam um reconhecimento do outro em suas diferenças existenciais. Isto é possível graças à abertura de espírito, à rica sensibilidade de um personagem como Lula, que possibilitou a coexistência de militantes marxistas dogmáticos com militantes católicos. Isto, porém, tem um aspecto negativo: há uma religiosidade militante que pode ser sentida como intrusiva pela população, como se fosse coisa de novos padres. Para mim, isto é um problema de ecologia mental das organizações. O investimento militante totalizante empobrece as outras dimensões da vida. Viver fanaticamente a militância, não dormir etc.. empobrece a riqueza da vida - a existência não se resume à militância. Este tipo de modelação subjetiva também tem um sentido capitalista, um sentido religioso, reducionista. Para isso acho que o melhor remédio é o humor, misturado à ternura. Outro aspecto da aceitação das diferenças dentro do PT é o jogo que existe entre os rostos dos líderes. Veja estes dois, o Lula e o Suplicy, (e não é por acaso que os tomo como exemplo): são tão diferentes, e, no entanto, tanto em um como em outro se percebe imediatamente (no sentido da apreensão não-discursiva) uma enorme riqueza, uma enorme ambigüidade em suas posições existenciais. Não são formais, fabricados. Neles há uma inquietação, uma ternura... Deles emerge uma problemática pessoal, individual, de aspectos contraditórios. A imagem dos dois subverte a idéia de liderança típica da media - o tipo bon chic/bon genre -, e acho que foi isso que permitiu a expansão fulgurante do PT entre a opinião pública.
Nas eleições presidenciais, o PT enfrentou uma verdadeira guerra de mídia, principalmente no segundo turno. Para enfrentá-la, apropriou-se de certos clichés - "Rede Povo", por exemplo -, decompôs algumas unidades semióticas e utilizou outras consagradas. Qual a sua hipótese acerca desta práxis?
O sucesso do Lula em 89 foi por ele ter mostrado que poderia ser como os outros, no sentido da capacidade de performance em relação à subjetividade dominante própria dos líderes. Evidentemente, a calúnia deve ter contribuído para a derrota, mas acho que ele perdeu precisamente porque não trabalhou suficientemente a sua singularidade; se ele tivesse marcado mais a diferença existencial específica,, talvez tivesse vacinado a opinião pública contra as calúnias. Mas ele fez demais o jogo das identificações subjetivas, e talvez por isso não tenha sido capaz de legitimar a tempo suas diferenças. Aí entra a necessidade de um grande trabalho de subversão da subjetividade mass mediática. Isto se pode fazer pela invenção de novas relações mediáticas, pela evolução das técnicas, pela reapropriação dos meios (como, por exemplo, o caso do vídeo TV Tantan, feito pelos pacientes do Hospital Anchieta), e também pela subversão da media existente, desfazendo as armadilhas mass mediáticas nos debates e nas emissões dos diversos partidos.
Para terminar: a maioria dos partidos políticos, incluindo o PT, propiciam a esperança. Spinoza disse que a esperança e o medo são paixões tristes-reativas, que uma não se entende sem a outra. O que você acha da esperança?
É uma droga como o álcool, o cigarro... E sempre dá para fazer uma pirueta com a esperança.
Antônio Lancetti é analista institucional e um dos coordenadores do Programa de Saúde Mental da Prefeitura de Santos.
Maria Rita Kehl é membro do Conselho de Redação de Teoria & Debate.