Economia

Na opinião de Alec Nove, Marx tinha pouco a dizer sobre a economia socialista, e o pouco que disse era irrelevante

Apesar do reconhecimento generalizado de que o socialismo despótico acabou, a impressão é de que não ultrapassamos os marcos da condenação protocolar do burocratismo, deixando as coisas mais ou menos no pé em que estavam no tempo de Trotsky. O stalinismo e regimes equivalentes continuam sendo considerados "degenerações" burocráticas do socialismo e não uma das possibilidades inerentes ao modelo idealizado pelo próprio Marx. Porém é cada vez mais visível que o conceito de socialismo não é unívoco.

Se pretendemos repensar seriamente o socialismo é necessário reconhecer, de saída, que o modelo marxista corrente é a sua variante despótica. No entanto, há muitos obstáculos a vencer. O próprio consenso atual em torno do socialismo democrático acaba atrapalhando, pois parece dispensar-nos da tarefa de apresentar claramente os seus créditos.

De certo modo, essa indefinição é uma imposição estratégica. É preciso manter a esquerda "unida". Ao mesmo tempo, é uma tradição bem assentada refletir sobre o socialismo a partir de compromissos previamente assumidos. Assim, enquanto a real natureza do socialismo dito democrático permanece na obscuridade, tudo se reduz a um dilema: "Trotsky ou Gramsci?".

Na pior das hipóteses, o socialismo democrático já está definido. E isso antes mesmo de qualquer balanço rigoroso. O raciocínio é mais ou menos o seguinte: a abolição da propriedade privada dos meios de produção e a substituição do mercado pela planificação integral e centralizada da economia + democracia política = socialismo democrático. Em outros termos: socialismo marxista - stalinismo = socialismo com democracia.

Tudo se passa como se, depois de revalidar os termos estabelecidos pela tradição dos nossos clássicos, bastasse agora acrescentar urna enérgica reiteração da nossa pureza de intenções, como medida preventiva contra futuras usurpações.

Bem, aqui entram Alec Nove e seu livro A economia do socialismo possível. Diz o autor: "como economista, impressiona-me o fato de que a lógica funcional da planificação centralizada 'se adequa' de maneira fácil demais à prática do despotismo centralizado". O despotismo econômico é a raiz do despotismo stalinista.

A esse argumento podemos contrapor a tese segundo a qual a "planificação centralizada" do tipo soviético é a única via para a concretização da democracia os "produtores associados". Alec Nove contesta o argumento. Afirma que os problemas econômicos do socialismo são muito mais complexos do que imaginam os socialistas. Uma sociedade com seus "planificadores proletários", acertando "tudo numa discussão amigavelmente democrática", é puro devaneio. Para Nove, "Marx tinha pouco a dizer sobre a economia do socialismo, e o pouco que disse era irrelevante ou completamente equivocado". E sentencia: "o socialismo de Marx era utópico".

Segundo o economista britânico, pode-se definir o socialismo de tal modo que "os problemas econômicos, tal como os conhecemos, não existissem". Por exemplo, supondo o advento do "homem novo", altamente motivado e consciente, num ambiente de "abundância", onde inexistiriam escolhas mutuamente exclusivas, e, portanto, onde o conflito sobre alocação de recursos se extinguiria, junto com o egoísmo, já que haveria o suficiente para todos.

Pois bem, são essas e outras suposições fantasiosas que, para Alec Nove, fazem do marxismo uma "utopia romântica". Como antídoto, o seu livro nos oferece o "esboço de um sistema econômico que teria duas características: seria chamado de socialista e seria viável numa escala de tempo razoável". No lugar do grandioso e épico programa que prevê nada menos que "a total emancipação da humanidade", ele nos propõe o seu socialismo "prosaico", onde as questões práticas e cotidianas ganham enorme relevo. Um socialismo concebido em bases tão realistas dificilmente satisfará as vocações messiânicas. Mas não é esse, seguramente, o público de Alec Nove. Ele se dirige aos homens comuns, imperfeitos, e não aos abnegados e incorruptíveis heróis revolucionários, devotados à causa proletária. Esses devotos são considerados "fundamentalistas", e contra eles o livro parece ter sido escrito.

Planificação e burocratização

Na economia capitalista, a informação acerca do que, como e quanto produzir é ditada pelo mercado. É também o mercado que efetua a interligação entre as incontáveis atividades econômicas.

No socialismo, quem possui aquela informação e efetua as interligações é o centro de planificação. Nove informa que a economia soviética trabalha, em quantidades desagregadas, com cerca de 12 milhões de produtos. Existem mais de 50 mil indústrias e outras tantas dezenas de milhares de estabelecimentos, onde uns são fornecedores de outros e precisam coordenar adequadamente as suas atividades, a fim de que o funcionamento global da economia seja assegurado.

Evidentemente, a tarefa de interligar a totalidade do circuito econômico não é simples nem fácil. O plano gestado pelo centro será necessariamente abrangente. Porém a abrangência, lembra o autor, é inversamente proporcional ao detalhamento. E mais: o enfoque obrigatoriamente quantitativo deixa de lado a qualidade dos produtos.

Além disso, cabe ao centro monitorar a execução do plano, para que tudo o que for necessário esteja no lugar certo, no momento certo, segundo quantidades e qualidades determinadas. Enfim, o centro precisa garantir que os bens e serviços de todos os tipos requeridos pelas empresas e pelos consumidores finais cheguem conforme as especificações corretas, dentro do prazo e que sejam garantidas as suas reposições em intervalos regulares.

Para dar conta desse imenso trabalho, os produtos e os ramos de produção são agrupados e administrados cada qual por um departamento que, por sua vez, está subordinado a um órgão superior. Esses departamentos encontram-se em permanente ligação entre si, realizam intermináveis reuniões, efetuam consultas mútuas, reportam-se aos órgãos superiores, tomam uma infinidade de decisões que farão crescer inevitavelmente as papeladas. Nesse labirinto burocrático, quando um erro for cometido, não haverá, literalmente, culpados, consagrando a célebre "irresponsabilidade organizada".

Essa gigantesca e complexa burocracia é, no dizer de Alec Nove, uma necessidade funcional de uma economia centralmente planificada. Se a "degeneração" burocrática do Socialismo encontra aí a sua explicação, Nove demonstra que sem aquela máquina burocrática a economia socialista simplesmente não funcionaria.

Mercado de ofertas

Na verdade, o centro não tem condições de trabalhar com 12 milhões de produtos. Estes são reduzidos a 43 mil produtos básicos, de modo que cada produto é um agregado de 250 subprodutos. Mas isso não melhora muito as coisas.

Primeiro, porque a quantidade de informações continua descomunal para ser manipulada com eficiência. Segundo, o enfoque do plano é eminentemente quantitativo: t, km, m2, rublos etc. Terceiro, ele é elaborado do ponto de vista exclusivo do produtor.

A economia socialista apresenta-se, pois, como um gigantesco e unilateral mercado de ofertas.

O centro elabora o plano prevendo tudo o que deverá ser produzido num dado ano. O plano prevê quem deverá fornecer o que para quem. O fornecedor é assim incorporado ao plano e, nesse sentido, passa a desfrutar de um monopólio absoluto frente ao seu "cliente". Como não há mercado, a negociação entre fornecedor e cliente está descartada: a alocação de recursos se transforma num ato meramente administrativo.

Naturalmente, as grandes organizações, com o seu poder de pressão sobre o centro, estão em melhor posição. É compreensível, portanto, que elas tendam a buscar o máximo de auto-suficiência, ramificando suas atividades com vista ao auto-abastecimento (auto-oferta, diz Nove), para contornar a necessidade de fornecimentos externos e fortalecer a sua posição dentro do plano.

Do ponto de vista prático, apesar de as organizações de pequeno porte serem tão imprescindíveis quanto inevitáveis, a pulverização da economia é indesejável, visto que inviabiliza qualquer esforço de planificação. Em sua lógica, a economia centralmente planificada inclina-se pela valorização do gigantesco e da padronização e, no limite, tal lógica conduz à determinação do consumo pelos produtores. Ou seja: numa economia centralmente planificada, os consumidores adaptam-se compulsoriamente à oferta. É pegar ou largar.

Para Nove, o socialismo marxista é concebido a partir do primado da produção, cujos fundamentos remontam ao próprio Marx. Em sua teoria, lembra, Marx separou cuidadosamente valor de troca e valor de uso e afirmou que este último, não sendo mensurável, não era passível de comparação, ignorando aquilo que é decisivo na ponta do consumo. "Duas máquinas, digamos, podem exigir o mesmo esforço para serem produzidas, mas se uma for mais produtiva, mais conveniente de se trabalhar do que a outra, então, por qualquer ponto de vista prático que se possa conceber, ela vale mais", afirma Nove.

A transposição dessa visão marxista para a administração do socialismo foi um fator de distorção do preço, pois ele leva em conta apenas o dispêndio ou o custo (valor) e descarta o resultado ou o efeito utilidade (valor de uso). Com isso, exclui-se o consumidor, de modo que o preço socialista não reflete nem a demanda nem a escassez.

Não seria exagerado concluir que Alec Nove diagnostica aí um desprezo estrutural pelo consumidor - um dos aspectos mais problemáticos de uma economia socialista centralmente planificada. Pode-se dizer que o centro de planificação parece substituir o consumidor, exatamente como a vanguarda substitui, na política, a massa trabalhadora.

Distorções da planificação

Tudo isso explica as inúmeras distorções inerentes à economia central e integralmente planificada. A mais característica, da qual outras decorrem, é a seguinte: o administrador das unidades tende a priorizar o atendimento às metas (quantitativas) do plano em detrimento da satisfação dos clientes e consumidores. Cumprir as metas do plano é o seu móvel primário, invertendo, dessa maneira, meios e fins. Essas metas podem teoricamente coincidir com os desejos dos consumidores, porém aquela inversão dará oportunidade para que o cumprimento das metas se sujeite a diversas manipulações. Como as metas são estabelecidas em termos quantitativos, a resposta dos administradores tende a ser igualmente quantitativa. Desse modo, exemplifica Nove, se a meta for estabelecida em toneladas, "isso premia o peso e penaliza a economia de material. Se a medida for o valor bruto em rublos, os benefícios estão em fazer bens caros, usando material caro. Toneladas por quilômetro induz os encarregados pelo transporte a carregar bens pesados em longas distâncias". Por fim, em suas unidades, os administradores cuidam, por sua vez, para que o desempenho seja apenas razoável, a fim de não se verem no ano seguinte diante de exigências maiores que não terão como cumprir.

Liberdade econômica socialista

O despotismo burocrático é, assim, o desdobramento lógico de uma economia centralmente planificada. Isso leva à conclusão de que um socialismo pluralista e democrático é impensável sem a correspondente liberdade econômica. Contudo, uma economia socialista supõe o controle social. Como articular então socialização e liberdade econômica? Para Nove, a chave se encontra numa organização que preserve a autonomia tanto do consumidor quanto do produtor. E isso requer uma sábia e competente combinação entre planificação e mercado.

A autonomia do consumidor passa pela restauração do mercado - o único meio para que possa manifestar livremente as suas preferências e para regular as decisões microeconômicas, democratizando-as. A do produtor passa pela reestruturação do aparato econômico, dotando-o de maior flexibilidade, a fim de permitir a livre escolha das condições de trabalho. Para o autor, são pelo menos cinco as formas principais de atividades econômicas organizadas: as empresas estatais de bens de produção e instituições financeiras; as empresas socializadas de grande porte, cuja direção é responsável perante a força de trabalho: as cooperativas autogeridas; as pequenas empresas privadas e, finalmente, os profissionais autônomos.

Deve-se entender esse mercado não como uma volta à economia capitalista, mas como uma alternativa necessária contra o poder burocrático. Nessa perspectiva, o mercado deverá funcionar dentro dos marcos de uma economia que não estará voltada primariamente para a obtenção do lucro, cumprindo um papel diferente: o de um importante instrumento na construção de uma liberdade econômica socialista.

Nove reconhece, no entanto, que a sua proposta alternativa de socialismo "possível" não está isenta de problemas. Porém, como ele mesmo adverte desde o início, não espera "nada perfeito, nada ótimo", apenas "algo que funcione com boa probabilidade de evitar tanto o despotismo como uma ineficiência intolerável".

Certamente, a originalidade do socialismo "possível" de Nove se deve ao fato de ter sido concebido fora de qualquer visão estratégica. A sua posição é, como diz, a de um advogado com muita simpatia pela causa do cliente. Não se pode pedir a um livro mais do que ele se propõe a dar. Porém, acreditando que "os meios afetam os fins", Nove afirma que "um socialismo democrático só pode ser concebido sob a condição de que a maioria o deseje". E constata: "no momento ela não o deseja, a despeito da depressão e do desemprego". É o máximo que diz. Mas não se deve censurá-lo por isso. Em sua detalhada exposição dos problemas e das soluções possíveis para a construção de uma economia socialista e democrática, ele mostrou a superioridade do projeto alternativo de organização social pelo qual a esquerda vem lutando. Sobre este livro, Perry Anderson escreveu: "Livre de qualquer cálculo estratégico, dirigido apenas pela generosidade e decência evidentes que inclinam o autor - ceteris paribus - a uma ordem econômica mais justa, a imagem resultante de uma sociedade possível é tão sensível e cativante que é provável que colabore mais para conversões ao socialismo do que qualquer outro trabalho recente, de formação mais convencional ou engajada na esquerda". Para um livro com essas características, só resta acrescentar que a sua recepção, no Brasil, foi, para dizer o mínimo, decepcionante.

Luiz Koshiba é professor de História na Unesp de Araraquara.

Revolução tem limite

Livro: A economia do socialismo possível, de Alec Nove, tradução de Sérgio Goes de Paula, Editora Ática, 375 páginas, 1989.

Durante a campanha da Alemanha, Napoleão ordenou que os sinos das igrejas repicassem em todas as cidades onde o exército francês entrasse. Certa vez, suas tropas marcharam sobre uma cidade e nenhum sino soou. Napoleão chamou o burgomestre e perguntou por que sua ordem não fora obedecida. "Bem, Sua Majestade Imperial", respondeu o burgomestre,"há cinco razões. A primeira é que não temos sinos." "Pare! A única razão é esta!", gritou o imperador.

A história acima é contada por Alec Nove em seu livro Economia política e socialismo soviético, de 1961. Ela ilustra bem a opinião do autor sobre os problemas do socialismo: é preciso estudá-los através de uma abordagem realística, que leve em conta os limites do possível, ainda que a teoria os tenha desconsiderado. "Estes limites existem", diz, "e apontá-los não é atacar o marxismo ou qualquer outra doutrina".

Considerado durante anos um "inimigo do socialismo" dentro da União Soviética, Nove faz parte  dos estudiosos ocidentais que só tiveram seus livros liberados - e vistos como contribuições preciosas - depois do início da perestroika.

Alec Nove, ou Alexandre Novakavsky, nasceu em Leningrado em 1915. Seu pai era menchevique e foi preso pelos bolcheviques. Por isso, sua família fugiu para a Inglaterra depois da Revolução. Naturalizado inglês, serviu no exército britânico durante a 2ª Guerra Mundial.

Nove foi diretor do Instituto de Estudos Soviéticos e do Leste Europeu, e lecionou entre 1963 e 1982 na Universidade de Glasgow, onde é professor emérito. Seu interesse pela economia socialista data de 1950. Escreveu entre outros O sistema econômico soviético, Stalin era mesmo necessário?, História econômica da URSS e A economia soviética, publicada no Brasil em 1961, pela Editora Zahar.