Política

O dilema bolchevismo x social-democracia é anacrônico. Para elaborar seu projeto socialista, o partido precisa manter um diálogo crítico com as duas correntes, renovando os métodos de intervenção social e a linguagem desgastada da esquerda.

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Um fantasma parece rondar o PT - o fantasma da social-democracia. Desde seu nascimento - e no curso de sua história - o partido foi intimado por seus atentos observadores a escolher entre o "revolucionarismo arcaico do modelo leninista" e a "moderna social-democracia".

Este problema, porém, antecede a própria formação do Partido dos Trabalhadores.

Quando nos últimos anos da década de 70 surgiu o novo sindicalismo, muitos viram no fenômeno a base social e política para o nascimento de uma social-democracia brasileira. Tão logo se frustraram tais previsões, esses analistas buscaram em cada momento de dificuldade que atravessou o novo e inesperado Partido dos Trabalhadores a oportunidade para voltar a esta quase obsessiva questão.

Assim foi depois da derrota eleitoral de 1982, ou quando o PT, no final de 1984 e início de 1985, recusou-se a ir ao Colégio Eleitoral. Assim ocorreu, igualmente, em 1986, quando o partido colocou-se na contracorrente do Plano Cruzado e colheu magros dividendos eleitorais. Assim aconteceu, finalmente, após a derrota de Lula na eleição presidencial de 1989.

Os mais catastrofistas vaticinaram em cada uma dessas circunstâncias o fim do PT. Outros cominaram o partido a optar pela social-democracia como forma de sobrevivência.

O tema não teria maior relevância se ficasse apenas confinado às inquietações pós-modernas de editorialistas e jornalistas políticos ou ao exame da academia. Passa a ter importância na medida em que se transforma em preocupação para grande parte da militância petista que vive um estado de relativa perplexidade com as aceleradas transformações em curso na URSS e no Leste Europeu, e com as mudanças ocorridas no quadro social e político brasileiro após a posse de Collor, questões cujas respostas incidirão sobre o futuro do partido.

A discussão sobre o tema da social-democracia no PT não pode, no entanto, continuar subordinada aos doutos conselhos que lhe são regularmente ministrados nas páginas da grande imprensa ou nos claustros acadêmicos. Não pode regular-se tampouco pelo doutrinarismo de grupos e tendências que querem aprisionar o partido em conflitos e polêmicas que, rigorosamente, não fazem parte de sua história.

O que une aqueles que aconselham o PT a trilhar os caminhos da social-democracia e os que advertem para os "perigos" desta parece ser o desconhecimento da história do socialismo democrático, da história do PT e, o que é mais grave, da realidade brasileira.

Estas notas procuram discutir questões que permitam colocar o debate em um patamar distinto daquele em que até agora se travou. São observações sumárias e preliminares e seu objetivo é mais o de desencadear uma discussão do que o de encerrá-la. Partem, igualmente, da suposição que o documento O socialismo petista, aprovado pelo 7º Encontro Nacional, com todos seus limites, constitui-se uma eloqüente manifestação do que já se pôde avançar a respeito no debate interno do PT.

Oposições

A oposição entre social-democratas e leninistas, ou bolchevistas, data do fim da 1ª Guerra Mundial, quando se consumou a divisão do movimento operário e socialista, que mergulhara em grave crise a partir do desencadeamento do conflito.

Em 1914, o Partido Social-Democrata alemão (SPD) decidira apoiar o governo do Kaiser em sua aventura bélica. Todos os partidos socialistas da Europa - à exceção do russo e do italiano - se solidarizaram com seus respectivos governos, arrastando o proletariado de seus países à uma luta fratricida nos campos de batalha. Uma profunda crise política e moral se instaurava no socialismo europeu com o desmoronamento da política antimilitarista que vinha sendo construída de forma sistemática pela II Internacional, particularmente a partir do Congresso de Stuttgart, em 1907.

No fim da guerra, o Partido Operário Social-Democrata Russo decidiu mudar seu nome para "comunista". O POSDR não só incorporou na sua denominação aquilo que considerava seu objetivo estratégico, como tentava livrar-se de um rótulo indesejável. A expressão "social-democrata" havia sido conspurcada pelo "chauvinismo" e "capitulacionismo" de seus dirigentes.

"Traição!", bradavam os revolucionários para caracterizar a atitude dos dirigentes social-democratas. Estes, segundo Lenin, faziam parte de uma "aristocracia operária"1 a serviço da burguesia e mantida com os resultados da exploração imperialista. Mas o que a compreensível indignação dos revolucionários não explicava era como a "traição" havia sido seguida pelas massas trabalhadoras de todos os países europeus2.

A guerra, segundo os revolucionários russos, mostrou até que ponto estavam criadas as condições para abater-se o regime capitalista. O conflito era apresentado como expressão da impossibilidade das classes dominantes continuarem a governar como antes, sem lançar mão de seus exércitos para garantir o controle de novos mercados e fontes de matérias-primas. Sem uns e outros, dizia-se, o capitalismo se inviabilizaria.

Por considerar a social-democracia como "traidora" e "apodrecida", os bolchevistas decretaram a "falência da II Internacional" e decidiram formar, em 1919, a Internacional Comunista ou III Internacional, da qual deveriam ser excluídos todos os social-democratas3.

Raízes comuns

Por trás desta profunda divisão que marcou nas décadas seguintes o socialismo mundial, havia muito em comum entre social-democratas e comunistas. Suas origens eram as mesmas. Suas estratégias, táticas e formas de organização e de ação convergiram mais do que fazem supor as ácidas polêmicas que opuseram uns aos outros neste século.

A social-democracia é o resultado histórico das profundas transformações pelas quais passou o capitalismo europeu, e, com ele, o movimento operário, nas últimas décadas do século XIX. A derrota da Comuna de Paris, em 1871, causou não só o massacre, prisão e exílio de dezenas de milhares de trabalhadores franceses, como uma onda mundial de histeria antioperária, superior àquela que havia sacudido a Europa em 1848.

A Alemanha passava a ser, no lugar da França, o centro do movimento operário. A este deslocamento na geografia política correspondia igualmente uma mudança no eixo de atuação dos trabalhadores. Ao invés das ações insurrecionais e dos grupos conspirativos de distintas inspirações doutrinárias, que marcaram o movimento operário francês, surgia o cada vez mais massivo proletariado alemão, disciplinadamente organizado em seus sindicatos, dirigidos pelo SPD. A via eleitoral vinha sendo seguida desde 1866 e, em 95, pouco antes de sua morte, Engels saudava o "uso inteligente" do sufrágio universal pelo proletariado da Alemanha.

O Partido Operário Social-Democrata Russo, dividido a partir de 1903 nos moderados mencheviques (minoritários) e nos revolucionários bolcheviques (majoritários), via na social-democracia alemã uma fonte de inspiração permanente4.

O proletariado - dizia Lenin necessitava de um partido, distinto da classe, formado por revolucionários profissionais, originários na sua maioria de fora dela, que dominasse a teoria da história para poder alterar seu curso e lançar-se à conquista do poder.

A teoria era o "marxismo", isto é, a herança teórica de Marx e Engels que resultara na mais acabada análise crítica do capitalismo, e das possibilidades de sua transformação, que o movimento socialista mundial jamais conhecera.

O problema, que sempre ocorre quando a teoria se pretende onipotente para explicar (e transformar) a história5.

A herança intelectual e política dos fundadores entrava em contato com estas novas realidades e "o marxismo" concretamente passou a ser o resultado de distintas leituras e das correspondentes aplicações da obra de Marx/ Engels a estas realidades mutáveis. Deixava de existir, apesar dos esforços de manutenção da ortodoxia, um marxismo. O processo de mundialização do marxismo implicava o surgimento de marxismos.

Muitos conhecem a famosa polêmica que agitou no final do século XIX a social-democracia alemã (e, através dela, a de todo o mundo) entre Bernstein e Rosa Luxemburgo.

O primeiro fez um forte ataque às teses de Marx sobre a tendência à pauperização absoluta da classe operária e à desaparição das classes médias, ao mesmo tempo em que criticava a idéia de que a revolução seria o resultado das contradições insolúveis do modo de produção capitalista. Em decorrência ele advogava uma estratégia operária fundada na conquista de reformas sucessivas nos marcos do capitalismo, que desembocasse em uma sociedade nova sem a necessidade de uma ruptura revolucionária.

Rosa criticou Bernstein, centrando seus ataques na ilusão deste sobre as possibilidades de autotransformação do capitalismo. O socialismo seria obra da classe trabalhadora, mas sua viabilidade estava inscrita na impossibilidade do capitalismo evitar sua própria bancarrota.

Esta visão economicista do capitalismo e de suas possibilidades de transformação acabou por revelar-se uma matriz comum de toda a social-democracia. Era compartilhada pelos setores revolucionários, que advogavam a tomada violenta do poder, e pelos reformistas, que defendiam as conquistas por meios pacíficos e que não aceitavam explicitamente as teses de Bernstein.

Reformistas e revolucionários, fixando-se objetivos distintos, partiam, no entanto, do mesmo suposto: havia "leis científicas" do desenvolvimento capitalista. Uma "necessidade histórica" impelia o proletariado em determinada direção. O socialismo era uma ciência. O que diferenciava uns dos outros eram os métodos e os ritmos.

A partir da crise desencadeada com a posição assumida pela maioria social-democrata em 1914, desenvolveu-se entre os revolucionários, sobretudo os russos, uma tendência a radicalizar a análise sobre o papel destes condicionantes históricos.

Contra o evolucionismo moderado que dominava a social-democracia, depois de 1914, desenvolveu-se uma corrente voluntarista a partir da idéia de que o capitalismo vivia sua crise geral e terminal.

Já que as condições objetivas para a revolução estavam reunidas, restava apenas possuir uma direção política capaz de potencializá-las. Bastava criar as condições subjetivas: novos partidos políticos e uma nova Internacional. Mas o argumento aqui gira em torno de si mesmo.

Como separar de forma tão radical condições objetivas das subjetivas?

O elemento subjetivo - a social-democracia - era o resultado da expansão do capitalismo (elemento objetivo). O próprio Lenin abraçou esta tese quando formulou sua teoria sobre a "aristocracia operária". Nela, como vimos, ele admitiu que a direção do movimento operário podia ser corrompida pelo próprio inimigo burguês, a ponto de fazer a política deste.

Mas se somente o partido de vanguarda era capaz de operar no proletariado a transformação de sua consciência espontânea (reformista) em consciência de classe (revolucionária), pela fusão da teoria revolucionária com a dinâmica das lutas dos trabalhadores, como explicar que fora justamente o partido mais preparado intelectualmente (o SPD) que se deixara "corromper"?

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Divisor de águas

Com a conquista do poder pelos bolchevistas, em outubro de 1917, consumou-se a divisão do movimento operário e socialista internacionais.

A partir daí a expressão social-democrata passou a ter, para parte das esquerdas, uma conotação pejorativa, um sinônimo de conciliação com a burguesia e de traição à causa operária.

A Internacional Comunista, fundada em 1919, afirmava que a revolução estava na ordem-do-dia. Faltava apenas um partido com vontade política para dirigir as massas que se levantavam contra seus opressores. O capitalismo, dizia, agonizava e somente sobreviveria se direções traidoras lhe dessem trégua. A revolução passava pela constituição de organismos de duplo poder na sociedade, segundo a lição dos sovietes russos, e devia desembocar na ditadura do proletariado, forma superior de democracia, radicalmente distinta das "democracias burguesas" existentes no Ocidente.

A derrota das breves experiências soviéticas na Hungria e na Finlândia, o fracasso das primeiras tentativas insurrecionais na Alemanha, a contenção do avanço das tropas do Exército Vermelho sobre Varsóvia e, principalmente, as enormes dificuldades internas que enfrentavam os soviéticos, determinaram o arquivamento dos planos de uma imediata e generalizada revolução na Europa. A vaga desencadeada pelo Outubro soviético havia passado. Produzia-se um refluxo ("temporário") que aconselhava uma política moderada e uma aproximação com a social-democracia.

Mas a tática de Frente Única, como ficou conhecida esta nova orientação da Internacional Comunista, fracassou sobretudo naquele que seria o "laboratório" privilegiado de toda política operária e socialista: a Alemanha.

Não cabe nesta reconstituição sumária e esquemática analisar em detalhe este período e apurar as responsabilidades dos principais atores deste verdadeiro drama histórico.

Aos bolchevistas vale a crítica por suas tentativas de generalizar a experiência soviética, a partir de uma apreciação discutível - teórica e empiricamente falando - da economia mundial, sem levar em conta a situação concreta e as tradições do movimento operário em outros países, sobretudo na Europa Ocidental.

É possível - ainda que discutível - que na Rússia os valores da democracia representativa, que muitos chamavam (impropriamente) de "burguesa", não tivessem grande significação para as massas. Afinal, os trabalhadores haviam, por duas vezes (1905 e 1917), desenvolvido esta original experiência dos sovietes, fora dos marcos institucionais vigentes no Ocidente. Mas a verdade é que a ditadura do proletariado, em nome da qual se dissolveu a Assembléia Nacional Constituinte eleita em 1917, e onde os bolchevistas ficaram em minoria, não teve existência real. Os sovietes rapidamente deixaram de existir, os partidos foram sendo sucessivamente suprimidos e, a pouco andar, a Rússia se transformara em ditadura de um partido. A oposição que existiu não foi entre democracia representativa e ditadura do proletariado, mas entre aquela e a ditadura do partido.

Mesmo considerando as enormes limitações da democracia nos países capitalistas da Europa Ocidental, que não haviam chegado naquele momento sequer a realizar plenamente as reformas liberais, não se pode desconhecer as conquistas políticas que os trabalhadores haviam obtido no marco das instituições vigentes.

Na polêmica de Lenin com Kautsky sobre a democracia e a ditadura do proletariado se opõem duas avaliações distintas da significação da democracia para os trabalhadores. Aqueles valores que os bolchevistas e a Internacional Comunista consideravam como instrumentos para enganar os trabalhadores (o sufrágio universal. por exemplo), em realidade haviam sido conquistas duramente arrancadas às classes dominantes. Uma vez conseguidas, elas permitiram aos trabalhadores ocupar um lugar distinto na sociedade. Os direitos à sindicalização, à greve, à liberdade de imprensa e organização partidária, isto é, o acesso à cidadania, além de conquistas materiais (inexistentes na Rússia czarista), configuravam um conjunto de valores caros ao Ocidente e haviam sido fundamentais para a classe operária constituir sua identidade.

Contra a social-democracia pesavam, no entanto, duríssimas acusações. Em primeiro lugar, sua atitude frente à Guerra Mundial, cujo preço foi pago essencialmente pelos trabalhadores, a grande maioria dos que morreram ou foram mutilados nos campos de batalha.

É claro que a política da maioria dos partidos social-democratas não pode ser sumariamente julgada através de categorias como "traição", "capitulação diante da burguesia" etc. Ainda que tudo isso tenha existido e provocasse (e até hoje possa provocar) indignação, o problema fundamental é o de saber por que uma força operária da importância do SPD (mas também outros partidos socialistas) não foi capaz de conduzir o proletariado em uma direção, mesmo que não necessariamente aquela seguida pelos bolchevistas na Rússia. Trata-se, sobretudo, de examinar que antecedentes havia na política social-democrata que conduziram ao trágico desfecho de 1914. É evidente que este problema não pode historicamente ser capitulado simplesmente como um "erro político", um acidente de percurso.

Da mesma forma, a política do SPD no imediato pós-1ª Guerra parece ter sido mais dominada pelo temor que lhe inspiravam os revolucionários espartaquistas do que por um compromisso com as transformações sociais que se abriam para a Alemanha com a débâcle do Império, em consequência da derrota militar. Vacilando, inclusive em seu compromisso com a República, a social-democracia mergulhou numa tortuosa política de colaboração com o conservadorismo. O episódio do assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht e, dias mais tarde, de Leo Jogishes é emblemático. Ele criou um litígio entre comunistas e socialistas que pesou de forma decisiva sobre as relações futuras de ambas as forças, como bem observou Hanna Arendt6.

Questões mais atuais

Nos meses que se seguiram ao fim da 2ª Guerra Mundial subsistiu a ilusão de que o movimento operário e socialista ingressaria em uma nova etapa.

Mas a bipolaridade do período da "guerra fria", a partir de 1947, fez com que se rompessem as alianças constituídas pelo mundo afora nos marcos de governos reformistas de "união nacional", nos quais predominava a união socialista-comunista.

Não foi a questão da "reforma" ou da "revolução" que produziu esta ruptura, mas antes a forma pela qual incidiram sobre os partidos operários os interesses das duas grandes potências vencedoras da guerra: URSS e Estados Unidos.

Os PCs do Ocidente entraram em um novo período de isolamento, de um marcado sectarismo pró-soviético, enquanto nos partidos social-democratas começavam a acontecer dois movimentos: o abandono de qualquer veleidade doutrinária que pudesse ser associada à herança marxista e revolucionária e a definição de uma estratégia de governo a partir da qual viriam a ser aplicadas, sobretudo na Europa, políticas de welfare state, o Estado de bem-estar. Para a social-democracia alemã, esta dinâmica culminaria na adoção do Programa de Bad Godsberg, aprovado pelo SPD em 1959.

O balanço deste período, no qual se dão os primeiros passos para a construção de uma Europa unida, tem sido até aqui dominado por discussões ideologizadas de ambos os lados.

Os social-democratas insistem em destacar seu papel na reconstrução econômica de uma Europa devastada pela guerra, na conquista de melhorias consideráveis para as classes trabalhadoras e na ampliação da democracia política.

Seus críticos denunciam os custos sociais e políticos da reconstrução: a subordinação aos interesses da grande burguesia monopólica, a integração política e militar com os Estados Unidos. A política de distribuição de renda - prosseguem - poderia ter-se implementado de forma mais radical. Não foram eliminados bolsões de pobreza como aqueles representados pelos trabalhadores imigrantes. Em alguns países - como na França, por exemplo -, a social-democracia aparece associada a aventuras coloniais. As reformas ocorreram, conclui-se, porque a própria burguesia européia deu-se conta, desde o fim da 2ª Guerra, que teria de fazer "sacrifícios", sob pena de que novas áreas do mundo fossem ganhas para o campo socialista.

Mais contemporaneamente, os social-democratas se referem ao desmoronamento do Leste Europeu e à crise da URSS como sinais da superioridade do modelo de economia, sociedade e Estado que construíram na Europa Ocidental sobre aquele do "socialismo real".

Em apoio a suas teses mencionam o fracasso das economias estatal-burocráticas do Leste e o colapso dos regimes ditatoriais que foram derrubados e/ou estão sofrendo radicais transformações. Criticam a degradação ambiental provocada pelos governos destes países, o declínio da qualidade de vida e o sufocamento da vida cultural.

A social-democracia européia, no entanto, não tem como ocultar suas dificuldades na atual conjuntura. Amarga um prolongado período de oposição em dois países importantes como a Inglaterra e a Alemanha Federal. No primeiro assistiu uma poderosa ofensiva liberal que corroeu as reformas econômicas e sociais que o Labour havia desenvolvido no pós-guerra.

Na Alemanha, seus planos de volta ao governo podem estar comprometidos pela maré conservadora que acompanha o processo de unificação do país.

Em países em que governa, como a França e a Espanha, vê-se muitas vezes na incômoda condição de promover políticas econômicas de combate à inflação que em nada se diferenciam do figurino neoliberal de elevado custo social: desemprego (particularmente na Espanha) e concentração da riqueza (que vem sendo registrada na França). Em muitos países - como na Suécia e na própria Espanha - bases sindicais próximas da social-democracia entram em choque com a orientação do governo. É particularmente agudo o conflito entre a UGT, central sindical próxima dos socialistas, e o governo de Felipe Gonzáles.

América Latina

É significativo que toda a referência histórica à social-democracia tenha se circunscrito a exemplos europeus. Com efeito, não há registro de experiência social-democrata consistente na América Latina e, particularmente, no Brasil.

O modelo soviético - tanto como projeto de tomada do poder, como via de desenvolvimento econômico e social - exerceu durante um certo período uma atração maior no continente. Isto se expressa menos na existência de Partidos Comunistas (salvo exceções, com pequena influência) do que na forte presença de uma ideologia difusa na esquerda, que enfatiza a conquista do poder através de meios insurrecionais, numa visão instrumental da democracia e em um modelo de economia fortemente centralizado e estatal. É óbvio que os êxitos que a União Soviética teve - pelos menos no início de sua história - em superar o "subdesenvolvimento", em realizar um complexo projeto de industrialização, acabariam por exercer um grande fascínio sobre a intelectualidade revolucionária de países que se sentiam muito mais identificados historicamente com a atrasada e autocrática Rússia czarista, do que com as democracias capitalistas da Europa Ocidental.

Razões sociológicas e de cultura política acabaram por aproximar mais as vanguardas revolucionárias da América Latina do paradigma soviético (em suas versões maoísta, guevarista e outras) do que do modelo social-democrata.

Alguns poderão argumentar que a América Latina viveu importantes experiências social-democratas, como o peronismo na Argentina, o getulismo no Brasil, o battlismo no Uruguai, o aprismo no Peru etc. Enfim, todos os fenômenos que a sociologia política batizou de populismo não seriam outra coisa que experiências social-democratas sui generis.

Os próprios protagonistas destes movimentos parecem estar convencidos do argumento. Muitos são os peronistas que se consideram social-democratas e que buscam uma aproximação com a Internacional. O PDT, no Brasil, que reivindica a herança de Getúlio, qualifica o varguismo como experiência social-democrata e está filiado à Internacional Socialista. O mesmo ocorre com o Apra peruano, também filiado à IS.

Sem entrar em uma discussão conceitual, não parece haver evidências que permitam historicamente assimilar os fenômenos políticos anteriormente mencionados à social-democracia.

Esta supõe, na sua origem, uma forte presença operária industrial na sociedade, que se desdobra em um poderoso movimento sindical, provocando, depois, a formação de um partido. Estas condições não estavam reunidas em nenhum dos países latino-americanos nos anos em que as experiências citadas se desenvolveram, quando a classe operária era amplamente minoritária.

A expansão da industrialização não acarretou um incremento crescente e orgânico das correntes populistas, mas seu estancamento ou retração. O caso argentino, onde é indiscutível a vigência até hoje do peronismo, é a exceção que confirma a regra. Há que reconhecer, no entanto, que a força do peronismo se explica pelo fato deste movimento constituir uma verdadeira cultura de resistência das classes trabalhadoras argentinas, frente às vicissitudes políticas que estas vivem desde os anos 50.

A proposta social-democrata, em sua origem, e, ao menos, em sua retórica, durante décadas, foi um projeto classista. O discurso e a prática populistas sempre advogaram abertamente a colaboração de classes, fundamental para seu projeto nacionalista desenvolvimentista. O elemento chave desta colaboração foi o Estado. O populismo privilegia o conflito nação x imperialismo, negando a contradição capital x trabalho.

A experiência brasileira

No Brasil não se pode falar de uma tradição social-democrata. Multiplicaram-se partidos socialistas de vida curtíssima durante a Primeira República. sem que se tenha constituído uma organização nacional expressiva. como ocorreu na Argentina. Uruguai ou Chile, para só citar três casos.

O Partido Socialista Brasileiro, surgido na "redemocratização", em 1945, apesar de ter abrigado intelectuais expressivos da esquerda brasileira, teve pequena significação social e política e jamais poderia ser confundido com os PS europeus. O mesmo se pode dizer em relação ao PSB, resultante da reforma partidária dos anos 80.

A formação do Partido Comunista - contrariamente ao que ocorreu em quase todo o mundo, inclusive nos três países antes citados - não resultou de cisão do Partido Socialista. A maioria esmagadora dos que ajudaram a formar o PCB vinha do anarco-sindicalismo, especialmente seu primeiro grupo dirigente. Nos anos 30 o PC recebeu um importante contingente de civis e militares influenciados por visões reformistas e autoritárias da sociedade brasileira.

Competindo com o PC, além dos anarquistas, existiam correntes reformistas, muito dependentes dos favores do Estado, que dificilmente poderiam ser assimilados à social-democracia.

Estas ganharam importância depois de 1930, quando ocorreu o enquadramento do movimento sindical autônomo que existia até então. É importante sublinhar que as novas formas de organização sindical das classes trabalhadoras, a partir dos anos 30, longe de serem a expressão de lutas vitoriosas do movimento operário, foram, antes, a conseqüência de importantes derrotas que ele sofreu no limiar do Estado Novo e logo depois de 1937. A política seguida pelo Partido Comunista no imediato pós-2ª Guerra e, posteriormente, em fins dos anos 50, até o Golpe de Estado, ao invés de constituir uma nova alternativa operária e popular no Brasil, somente reforçou o projeto varguista, tornando-o mais vulnerável, como se pôde constatar em 1964.

Não se pretende negar as reformas que o getulismo proporcionou ao movimento operário, ainda que a contrapartida delas fosse o enquadramento dos sindicatos no modelo corporativo de inspiração fascista e, logo, sua perda de autonomia. O que se está simplesmente ressaltando aqui é o abismo existente entre o varguismo e a social-democracia.

Esta, como forma de consciência de classe dos trabalhadores, permitiu-lhes não só o acesso a importantes vantagens materiais como uma presença relativamente autônoma na sociedade e a conquista da cidadania a partir de suas próprias lutas e de suas formas de organização sindical e partidária.

O varguismo foi uma operação de cooptação do movimento operário - construída a partir da derrota de seus setores mais combativos - seguida de seu enquadramento nas estruturas do Estado e da outorga de algumas benesses próprias de um welfare state.

As experiências da social-democracia têm como cenário a democracia representativa, que se amplia e radicaliza com a intervenção do movimento operário. O varguismo se desenvolveu em períodos democráticos (1934-35 e 1951-54), mas a maior parte do tempo sob regime ditatorial aberto (1930-34 e 1937-45) ou disfarçado (1935-37).

No Brasil, é possível que a conjuntura mais semelhante à do surgimento da social-democracia européia seja aquela de fins dos anos 70, quando emerge o fenômeno do novo sindicalismo e, na esteira dele, o Partido dos Trabalhadores.

PT social-democrata?

A tentação de associar o nascimento do PT à formação da social-democracia européia tem sido, como se viu, frequente. Resultado da constituição de um movimento sindical autônomo, classista, instalado nos setores mais modernos da indústria brasileira, o PT foi capaz, igualmente, de atrair para suas fileiras, como a social-democracia o fizera décadas antes, amplos segmentos de assalariados, intelectuais e setores populares. Em seu programa - onde o socialismo é reivindicado - dá-se ênfase especial às conquistas das classes trabalhadoras, explicitadas em um conjunto de reformas econômicas e sociais a serem desenvolvidas nos marcos de uma efetiva democratização da sociedade brasileira.

Distintamente da social-democracia, no entanto, o PT não reivindica uma filiação doutrinária, marxista ou de qualquer outro tipo. Ao contrário, afirma seu pluralismo ideológico, ou o seu caráter "laico".

Ainda em sua formulações iniciais, o partido assumiu claramente sua distância em relação tanto ao "socialismo burocrático", dos partidos comunistas, como em relação à social-democracia. Esta posição é reiterada no documento O socialismo petista.

Desta recusa de filiação doutrinária e de ligação com as correntes históricas da esquerda neste século surge a tese de que o socialismo petista é processual, isto é, define seu conteúdo a partir da própria dinâmica das lutas dos trabalhadores e da consciência que eles ganham em suas experiências cotidianas.

Mas estas declarações seriam suficientes? Por trás desta preocupação de independência não haveria um esforço retórico de encobrir uma filiação a uma das duas correntes negadas em seus documentos?

O PT não seria um partido social-democrata envergonhado? Ou um PC enrustido? "O último partido comunista", sem sabê-lo, como afirmam muitos de seus críticos?

Os argumentos, mesmo sendo superficialmente defendidos, têm de ser enfrentados.

O fato de ter surgido em um país cujo campo cultural da esquerda era dominado pelo PC (em concubinato com o populismo), de abrigar em suas fileiras, e mesmo nas direções, muitos ex-militantes formados na escola das organizações comunistas, e de conviver em seu interior com grupos e tendências de inspiração leninista e/ou trotskista, contribuiu para que o PT pensasse muitos de seus problemas através desta cultura política até então hegemônica e da qual ele procurou dissociar-se já em sua fundação7.

Esta impressão se reforça cada vez que a voz ruidosa de alguns grupos e tendências existentes no PT se faz ouvir mais do que a do próprio partido, produzindo uma cacofonia comprometedora. Reforça-se, também, sempre que o discurso petista aparece excessivamente estatista ou complacente com algumas experiências do socialismo real.

A contrario sensu, cada vez que os dirigentes do PT (ou da CUT) admitiram sua disposição de participar de negociações com o patronato ou com o governo, ou foram confrontados com responsabilidades governamentais, ou se manifestaram sobre problemas do socialismo e da democracia com maior liberdade (ver a recente entrevista de Francisco Weffort à Folha de S.Paulo), não faltou quem prognosticasse uma "virada social-democrata" do partido.

Não é o caso de analisar esmiuçadamente cada um desses argumentos e subargumentos. Mais importante é expor algumas circunstâncias que cercam a formação do PT e ver em que medida elas podem ajudar na compreensão do problema. Não se trata de saber se o PT é (ou será) social-democrata ou comunista, porém de avançar na definição da natureza deste partido cuja originalidade pode escapar a muitos brasileiros, mas seguramente não a observadores estrangeiros.

De tanto ler e ouvir, todos sabem que a história só se repete como farsa. Como esperar, assim, que quase um século após, uma força social e política como o PT tivesse de refazer o caminho da social-democracia ou do bolchevismo?

Não é o caso, aqui, de exigir dos analistas do PT um pouco da "modernidade" que os fascina tanto.

Socialista, sem querer confundir-se com comunismo e com a social-democracia, o PT enfrentou desde o início uma dificuldade que até hoje não está resolvida: qual socialismo?

Quando, em uma de suas mais famosas boutades, ao ser perguntado se era comunista ou social-democrata, Lula respondeu que era "torneiro mecânico", ele expressou de forma jocosa, mas ao mesmo tempo significativa, as dificuldades e as virtudes da definição socialista petista.

Em primeiro lugar, reiterava a distância em relação a alternativas que representavam um passado com o qual o PT não queria comprometer-se. Em segundo lugar, sublinhava metaforicamente que importava menos sua definição ideológico-doutrinária e mais sua condição operária, o que é relevante em um país sem tradição proletária de esquerda. E, por último, apontava para o fato de que as definições políticas do partido estavam grandemente condicionadas por sua base social e que esta noção processual de socialismo se vinculava às experiências de luta dos trabalhadores.

Desde seus documentos iniciais, o PT afirmou que o socialismo não é apenas um horizonte longínquo a ser buscado e atingido, mas algo a ser construído e que se incorpora na dimensão cotidiana das lutas.

O movimento operário, que foi e é o principal componente social do partido, forjou-se desenvolvendo articuladamente três tipos de lutas que apresentavam conteúdos anticapitalistas: contra o arrocho; pela autonomia e liberdade sindical; e contra a organização do processo de trabalho e a disciplina patronal nas empresas.

Os componentes sociais que aderiram ao PT e participaram de sua construção - operários fabris e trabalhadores de áreas de serviços, camponeses e trabalhadores rurais, profissionais liberais e técnicos assalariados, pobres das periferias urbanas - garantiram um programa que transcendia as reivindicações operárias.

Os componentes políticos – ex-militantes de organizações de esquerda, grupos e partidos de extrema-esquerda, católicos ligados às igrejas progressistas, personalidades vinculadas à luta pelos direitos humanos, setores mais radicalizados da oposição democrática -, permitiram que o partido ampliasse seu conceito de democracia mais além de uma simples volta ao Estado de Direito. Eles incorporaram temas fundamentais para a renovação da cultura política de esquerda, que apontam para uma compreensão maior dos processos de exploração e dominação e, por conseqüência, ampliam o espectro das lutas pela democracia.

Há, no entanto, outro elemento fundamental para sublinhar a especificidade do projeto subjacente à formação do Partido dos Trabalhadores: a crise do socialismo como projeto e como realidade.

Nacionalmente, as esquerdas brasileiras estavam exauridas. As forças mais tradicionais, sobretudo os partidos comunistas e o nacional-populismo tinham pequena expressão social e diminuta presença nos setores fundamentais da sociedade, além de demonstrar escassa capacidade de elaboração teórico-política.

A esquerda revolucionária, como a outra, fora muito golpeada pela repressão nos anos 70 e se encontrava atomizada. Encontrava-se mergulhada em um debate estéril com a velha esquerda e digladiava-se em infindáveis polêmicas doutrinárias.

Internacionalmente, sobretudo a partir da evolução política na Polônia, desencadeava-se uma nova etapa da crise do socialismo real que culminaria com as profundas transformações que marcaram a URSS e o Leste Europeu neste final de década.

A contemporaneidade das experiências do PT no Brasil e do Solidariedade na Polônia permitiu aos militantes do partido, sobretudo aos de origem operária, desenvolver uma crítica radical do sistema político vigente nos países do chamado socialismo real. Chamou a atenção, principalmente, para o problema das relações socialismo-democracia e para a existência de valores democráticos que transcendiam formas específicas de organização política da sociedade, como, por exemplo, a liberdade e a autonomia sindicais, o pluralismo político, a liberdade de imprensa e de manifestação, o respeito aos direitos humanos, etc. Em contextos históricos distintos, os trabalhadores poloneses e brasileiros enfrentavam o mesmo tipo de problemas com suas respectivas ditaduras.

Com isso associavam-se definitivamente no discurso petista as noções de socialismo e democracia.

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Socialismo e democracia

Esta é uma problemática familiar para o PT, pois o partido constituiu seu espaço de intervenção social e política lutando pela democracia e nesta luta foi tecendo uma teia de relações entre ela e o socialismo, o que nem sempre ficou visível até porque muitas vezes não foi suficientemente refletido.

Ao definir sua intervenção na vida política brasileira como de "acumulação de forças" e ao definir um programa de reformas qualificado de "democrático-popular", o PT resolveu um problema e deixou em aberto outros.

A acumulação de forças e o programa democrático-popular chamavam a atenção para o fato de que o socialismo não era o objetivo imediato do partido. Isto é óbvio, pois somente cabeças muito acaloradas poderiam imaginar que o socialismo se colocava como questão de atualidade imediata. Até aí, porém, o PT não se diferenciava dos partidos comunistas, por exemplo.

A questão mais de fundo está na forma pela qual se articulam a luta por este programa democrático-popular com os objetivos socialistas. Aqui a discussão com a social-democracia e a pergunta sobre as perspectivas de sua vigência em países como o Brasil assumem uma considerável importância.

Desde sua matriz bernsteniana, a social-democracia associou a mudança social e política às reformas parciais do capitalismo. Sobre este ponto registram-se duas posições.

Uma, mais "à esquerda", segundo a qual as reformas teriam um caráter cumulativo e terminariam levando ao socialismo, pensado como regime qualitativamente distinto. A política de nacionalizações desempenharia um papel fundamental neste modelo.

Esta posição social-democrata foi em grande medida também assumida pelos partidos comunistas, tanto nos países capitalistas avançados, como, e sobretudo, nos países subdesenvolvidos.

Outra, mais "à direita" e, talvez, mais fiel a Bernstein, para qual não havia uma diferença qualitativa entre capitalismo e socialismo. O socialismo passava a ser o próprio movimento pelas reformas. Com a crise teórica e prática do "socialismo real" esta tese ganhou muitos adeptos.

A questão é fundamental para a discussão estratégica da esquerda, para ficar fiel à linguagem de inspiração militar do leninismo. A melhor maneira de abordá-la não é discutindo a tese geral, em abstrato, mas examinandos no contexto brasileiro.

A pergunta, central para a social-democracia, sobre se as reformas têm efeito cumulativo e abrem o caminho para mudanças qualitativas ("revolucionárias") na sociedade merece uma resposta cuidadosa.

Lula muitas vezes escandalizou a esquerda petista quando disse que, para ele, revolução no Brasil era toda a população tomar café da manhã, almoçar e jantar. Ou ir à escola. Ou ter uma moradia minimamente decente. Ou poder ser atendida com eficiência e dignidade em um hospital público. Ou, finalmente, ter uma parcela de terra para poder plantar e viver em seu estado.

"Revolução? Mas isso são só reformas!", bradará um indignado guardião da doutrina. È vero. Mas o que significa consegui-las?

Basicamente um agudo processo de lutas sociais: o simples desenho de uma estratégia que permita viabilizar cada uma destas "pequenezas" mostra os obstáculos existentes na sociedade brasileira, constituídos por sólidos interesses que se ramificam pelo conjunto das classes dominantes e que extravasam em muito qualquer "racionalidade" econômica.

A questão propõe uma rearticulação da luta pela democracia política com a democracia social e destas duas com o socialismo. Há muitos anos esta é uma discussão importante para setores da social-democracia e passa a sê-lo igualmente para as esquerdas engajadas nos processos de transformação nos países do "socialismo real".

O "formalismo" da democracia é justamente criticado quando ele se revela incapaz de dar-se uma dimensão social. Isto ocorre sempre que o princípio abstrato da liberdade se sobrepõe à necessidade de uma igualdade concreta e, é bom não esquecer, ao da fraternidade.

Mas esta reivindicação da democracia social não se pode fazer à margem da democracia política, ou, como pretendem alguns, contra ela, ainda que os conflitos sejam previsíveis neste terreno.

A democracia política não pode ser entendida apenas como um meio de chegar-se à democracia social, ou a uma posição melhor de luta por ela.

A democracia política é um fim em si. Um valor estratégico e permanente. Se esta tese é social-democrata, paciência: sejamos social-democratas.

Mas não é um problema doutrinário que está em jogo e sim questões políticas fundamentais. A luta pelo socialismo - para conduzir ao socialismo e não a estes mostrengos que desabaram no Leste Europeu, nem a sociedades desiguais governadas por partidos socialistas - tem que levar em conta o potencial político-revolucionário das reformas sociais e tirar as conseqüências disto no plano da luta pelo poder.

Um dos avanços do PT é abandonar a idéia do poder como um lugar a ser tomado e reformado (proposta social-democrata) ou tomado, destruído e reconstruído (proposta revolucionária clássica).

Esta inovação, pelo menos para o debate político brasileiro, tem de ser aprofundada, sob pena de, aí sim, o PT sucumbir a uma das teses mencionadas e das quais se distanciou.

O poder é algo a ser construído e é fundamental captar a complexidade das tarefas que decorrem deste propósito.

Não se pode reduzir esta frase a sua leitura reformista: construir o novo gradualmente dentro do velho até que, clic...

Não se pode, tampouco, transformar esta tese em uma versão da estratégia de "duplo poder".

Construir agora o poder popular e levá-lo a um enfrentamento com o "poder burguês". Nem mesmo o Governo Paralelo, criado pelo PT este ano, escapou desta interpretação bolchevista. A julgar por algumas leituras que foram feitas dessa iniciativa, ela se transformou em uma espécie de Estado Maior alternativo que sinalizaria a ilegitimidade do poder atual e estaria pronto para substituí-lo tão logo a "correlação de forças permita"...

Articulando a luta pela democracia política com a luta pela democracia social, o PT busca dar atualidade ao socialismo e tirá-lo do campo da pura utopia. Esta articulação se desdobra em uma intervenção que recobre múltiplos espaços no plano social e no plano institucional, sabendo que estes dois domínios não são estanques e se interpenetram todo o tempo.

No plano social, o grande desafio que se coloca para o PT é o da organização dos explorados e oprimidos e do combate, onde a organização já existe, das tendências corporativas que atingem o movimento sindical.

A questão da organização da sociedade é vital, sobretudo se tem em conta que vastos setores de trabalhadores e desocupados - os "descamisados" de Collor - têm sido a base social, e não só eleitoral, de projetos autoritários de todos os tipos.

Organizar exige mais do que voluntarismo e supõe um trabalho de invenção política, que renove radicalmente os métodos de intervenção social e a linguagem da esquerda. Exige igualmente um conhecimento mais profundo da sociedade, particularmente das representações que estes milhões de brasileiros têm de sua condição social e de suas perspectivas de mudança.

No plano institucional, o PT deve assumir decididamente um projeto de reforma e democratização do Estado.

Isto significa combater ação dos grupos privados, dos oligopólios, cartéis e cartórios que, a despeito da fraseologia liberal da burguesia brasileira, sugam o Estado e o colocam a reboque de seus interesses particulares.

Neste sentido, o partido deve assumir sem medo uma postura republicana, de defesa da res publica, da coisa pública, buscando com esta luta uma eficácia imediata - a de colocar os recursos públicos a serviço do povo dando a este movimento uma significação pedagógica. Nada melhor do que este tipo de ação para provar como o Estado está a serviço das classes dominantes e não é um instrumento de conciliação social, como pretende a ideologia dominante.

A reforma do Estado não passa por soluções tecnocráticas e gerenciais, que o façam semelhante à "eficiente" empresa capitalista, nem se resume ao combate à burocracia, entendida apenas como uma camarilha de ociosos ou aproveitadores que se encastelaram na máquina administrativa. Ela é antes de tudo um processo político de democratização da coisa pública, o que supõe o desenvolvimento de múltiplos mecanismos de controle da sociedade sobre o Estado e suas empresas, através das organizações sociais, do Parlamento etc.

Para construir seu projeto de transformação socialista do Brasil, o PT precisa escapar do dilema bolchevismo x social-democracia. Para tanto, necessita despir-se de preconceitos que dominaram a esquerda durante décadas e que produzem hoje, em meio à crise por que passa a idéia de socialismo, efeitos opostos porém simétricos: de um lado, a defesa intransigente da ortodoxia, como se nada houvesse ocorrido; de outro, o abandono da noção de socialismo em proveito de um (neo)liberalismo que nem mesmo os (neo)liberais praticam.

O PT não tem que deixar de ser "radical", somente porque isto arranha os ouvidos daqueles que nunca tiveram compromisso efetivo com qualquer mudança neste país. Mas ele não tem que ser complacente com idéias e práticas que, em nome do socialismo, só afastaram as esquerdas das massas pelo seu conteúdo e formas elitistas e autoritárias.

A escolha de seus interlocutores nacionais e internacionais está vinculada a esta preocupação de construir um projeto socialista para o Brasil levando em conta as ricas, e às vezes dramáticas, experiências do socialismo internacional. Abre-se fundamentalmente para uma nova esquerda que se constitui (ou se reconstrói) politicamente na América Latina e que enfrenta vicissitudes semelhantes às nossas. Com ela, se dispõe a construir um novo caminho no continente, como ficou evidente no Encontro de São Paulo, em julho último.

Dialoga, sem preconceitos, com a social-democracia, e com as expressões do comunismo renovado que se manifestam em países como a Itália ou mesmo no Leste Europeu.

Colabora, ainda, com forças alternativas, como os verdes alemães, o SOS Racisme da França e outros movimentos que buscam saídas originais para a crise da esquerda, a partir da luta por objetivos que têm a capacidade de questionar modelos e propor novas formas de organização social e política.

A "reconstrução" do Leste Europeu se dará em meio a duros embates sociais e políticos, desmentindo a tese de que a luta de classes acabou. A social-democracia destes países (e por extensão a de toda a Europa) será confrontada com a necessidade de impulsionar lutas sociais e políticas nesta região ou perder o controle do processo para os conservadores, como já ocorreu.

Da mesma forma, a aplicação dos programas de ajuste em quase toda a América Latina colocará a esquerda mundial diante do desafio de oferecer um programa de reformas que compatibilize o combate a problemas emergenciais graves, como a inflação, com a necessidade inadiável de resolver questões estruturais com as quais não é mais possível conviver: a miséria, a fome, o analfabetismo etc.

O mundo não assiste ao fim da história hoje, como pretendem alguns, mas, ao contrário, a uma aceleração sem precedentes desta. É bem possível, no entanto, que se esteja assistindo ao fim de um ciclo na história do socialismo, que tem seu início com a formação da social-democracia e que em boa parte deste século foi dominado pelo conflito entre socialistas e comunistas.

É ilusório pensar que o PT é um fenômeno isolado no mundo. Ele faz parte deste processo de transição da esquerda mundial. Neste sentido, é um partido pós-social-democrata e pós-comunista. Constrói sua identidade não combatendo estas correntes, mas dialogando criticamente com elas, voltado para novos (e velhos) desafios que seus ancestrais não puderam responder.

Radical, de esquerda, socialista e, por esta razão, moderno. Este é o PT. Sem medo de ser feliz.

Marco Aurélio Garcia é professor do Departamento de História da Unicamp, membro da Comissão Executiva Nacional e Secretário de Relações Internacionais do PT

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