Um fantasma parece rondar o PT - o fantasma da social-democracia. Desde seu nascimento - e no curso de sua história - o partido foi intimado por seus atentos observadores a escolher entre o "revolucionarismo arcaico do modelo leninista" e a "moderna social-democracia".
Este problema, porém, antecede a própria formação do Partido dos Trabalhadores.
Quando nos últimos anos da década de 70 surgiu o novo sindicalismo, muitos viram no fenômeno a base social e política para o nascimento de uma social-democracia brasileira. Tão logo se frustraram tais previsões, esses analistas buscaram em cada momento de dificuldade que atravessou o novo e inesperado Partido dos Trabalhadores a oportunidade para voltar a esta quase obsessiva questão.
Assim foi depois da derrota eleitoral de 1982, ou quando o PT, no final de 1984 e início de 1985, recusou-se a ir ao Colégio Eleitoral. Assim ocorreu, igualmente, em 1986, quando o partido colocou-se na contracorrente do Plano Cruzado e colheu magros dividendos eleitorais. Assim aconteceu, finalmente, após a derrota de Lula na eleição presidencial de 1989.
Os mais catastrofistas vaticinaram em cada uma dessas circunstâncias o fim do PT. Outros cominaram o partido a optar pela social-democracia como forma de sobrevivência.
O tema não teria maior relevância se ficasse apenas confinado às inquietações pós-modernas de editorialistas e jornalistas políticos ou ao exame da academia. Passa a ter importância na medida em que se transforma em preocupação para grande parte da militância petista que vive um estado de relativa perplexidade com as aceleradas transformações em curso na URSS e no Leste Europeu, e com as mudanças ocorridas no quadro social e político brasileiro após a posse de Collor, questões cujas respostas incidirão sobre o futuro do partido.
A discussão sobre o tema da social-democracia no PT não pode, no entanto, continuar subordinada aos doutos conselhos que lhe são regularmente ministrados nas páginas da grande imprensa ou nos claustros acadêmicos. Não pode regular-se tampouco pelo doutrinarismo de grupos e tendências que querem aprisionar o partido em conflitos e polêmicas que, rigorosamente, não fazem parte de sua história.
O que une aqueles que aconselham o PT a trilhar os caminhos da social-democracia e os que advertem para os "perigos" desta parece ser o desconhecimento da história do socialismo democrático, da história do PT e, o que é mais grave, da realidade brasileira.
Estas notas procuram discutir questões que permitam colocar o debate em um patamar distinto daquele em que até agora se travou. São observações sumárias e preliminares e seu objetivo é mais o de desencadear uma discussão do que o de encerrá-la. Partem, igualmente, da suposição que o documento O socialismo petista, aprovado pelo 7º Encontro Nacional, com todos seus limites, constitui-se uma eloqüente manifestação do que já se pôde avançar a respeito no debate interno do PT.
Oposições
A oposição entre social-democratas e leninistas, ou bolchevistas, data do fim da 1ª Guerra Mundial, quando se consumou a divisão do movimento operário e socialista, que mergulhara em grave crise a partir do desencadeamento do conflito.
Em 1914, o Partido Social-Democrata alemão (SPD) decidira apoiar o governo do Kaiser em sua aventura bélica. Todos os partidos socialistas da Europa - à exceção do russo e do italiano - se solidarizaram com seus respectivos governos, arrastando o proletariado de seus países à uma luta fratricida nos campos de batalha. Uma profunda crise política e moral se instaurava no socialismo europeu com o desmoronamento da política antimilitarista que vinha sendo construída de forma sistemática pela II Internacional, particularmente a partir do Congresso de Stuttgart, em 1907.
No fim da guerra, o Partido Operário Social-Democrata Russo decidiu mudar seu nome para "comunista". O POSDR não só incorporou na sua denominação aquilo que considerava seu objetivo estratégico, como tentava livrar-se de um rótulo indesejável. A expressão "social-democrata" havia sido conspurcada pelo "chauvinismo" e "capitulacionismo" de seus dirigentes.
"Traição!", bradavam os revolucionários para caracterizar a atitude dos dirigentes social-democratas. Estes, segundo Lenin, faziam parte de uma "aristocracia operária"1 a serviço da burguesia e mantida com os resultados da exploração imperialista. Mas o que a compreensível indignação dos revolucionários não explicava era como a "traição" havia sido seguida pelas massas trabalhadoras de todos os países europeus2.
A guerra, segundo os revolucionários russos, mostrou até que ponto estavam criadas as condições para abater-se o regime capitalista. O conflito era apresentado como expressão da impossibilidade das classes dominantes continuarem a governar como antes, sem lançar mão de seus exércitos para garantir o controle de novos mercados e fontes de matérias-primas. Sem uns e outros, dizia-se, o capitalismo se inviabilizaria.
Por considerar a social-democracia como "traidora" e "apodrecida", os bolchevistas decretaram a "falência da II Internacional" e decidiram formar, em 1919, a Internacional Comunista ou III Internacional, da qual deveriam ser excluídos todos os social-democratas3.
Raízes comuns
Por trás desta profunda divisão que marcou nas décadas seguintes o socialismo mundial, havia muito em comum entre social-democratas e comunistas. Suas origens eram as mesmas. Suas estratégias, táticas e formas de organização e de ação convergiram mais do que fazem supor as ácidas polêmicas que opuseram uns aos outros neste século.
A social-democracia é o resultado histórico das profundas transformações pelas quais passou o capitalismo europeu, e, com ele, o movimento operário, nas últimas décadas do século XIX. A derrota da Comuna de Paris, em 1871, causou não só o massacre, prisão e exílio de dezenas de milhares de trabalhadores franceses, como uma onda mundial de histeria antioperária, superior àquela que havia sacudido a Europa em 1848.
A Alemanha passava a ser, no lugar da França, o centro do movimento operário. A este deslocamento na geografia política correspondia igualmente uma mudança no eixo de atuação dos trabalhadores. Ao invés das ações insurrecionais e dos grupos conspirativos de distintas inspirações doutrinárias, que marcaram o movimento operário francês, surgia o cada vez mais massivo proletariado alemão, disciplinadamente organizado em seus sindicatos, dirigidos pelo SPD. A via eleitoral vinha sendo seguida desde 1866 e, em 95, pouco antes de sua morte, Engels saudava o "uso inteligente" do sufrágio universal pelo proletariado da Alemanha.
O Partido Operário Social-Democrata Russo, dividido a partir de 1903 nos moderados mencheviques (minoritários) e nos revolucionários bolcheviques (majoritários), via na social-democracia alemã uma fonte de inspiração permanente4.
O proletariado - dizia Lenin necessitava de um partido, distinto da classe, formado por revolucionários profissionais, originários na sua maioria de fora dela, que dominasse a teoria da história para poder alterar seu curso e lançar-se à conquista do poder.
A teoria era o "marxismo", isto é, a herança teórica de Marx e Engels que resultara na mais acabada análise crítica do capitalismo, e das possibilidades de sua transformação, que o movimento socialista mundial jamais conhecera.
O problema, que sempre ocorre quando a teoria se pretende onipotente para explicar (e transformar) a história5.
A herança intelectual e política dos fundadores entrava em contato com estas novas realidades e "o marxismo" concretamente passou a ser o resultado de distintas leituras e das correspondentes aplicações da obra de Marx/ Engels a estas realidades mutáveis. Deixava de existir, apesar dos esforços de manutenção da ortodoxia, um marxismo. O processo de mundialização do marxismo implicava o surgimento de marxismos.
Muitos conhecem a famosa polêmica que agitou no final do século XIX a social-democracia alemã (e, através dela, a de todo o mundo) entre Bernstein e Rosa Luxemburgo.
O primeiro fez um forte ataque às teses de Marx sobre a tendência à pauperização absoluta da classe operária e à desaparição das classes médias, ao mesmo tempo em que criticava a idéia de que a revolução seria o resultado das contradições insolúveis do modo de produção capitalista. Em decorrência ele advogava uma estratégia operária fundada na conquista de reformas sucessivas nos marcos do capitalismo, que desembocasse em uma sociedade nova sem a necessidade de uma ruptura revolucionária.
Rosa criticou Bernstein, centrando seus ataques na ilusão deste sobre as possibilidades de autotransformação do capitalismo. O socialismo seria obra da classe trabalhadora, mas sua viabilidade estava inscrita na impossibilidade do capitalismo evitar sua própria bancarrota.
Esta visão economicista do capitalismo e de suas possibilidades de transformação acabou por revelar-se uma matriz comum de toda a social-democracia. Era compartilhada pelos setores revolucionários, que advogavam a tomada violenta do poder, e pelos reformistas, que defendiam as conquistas por meios pacíficos e que não aceitavam explicitamente as teses de Bernstein.
Reformistas e revolucionários, fixando-se objetivos distintos, partiam, no entanto, do mesmo suposto: havia "leis científicas" do desenvolvimento capitalista. Uma "necessidade histórica" impelia o proletariado em determinada direção. O socialismo era uma ciência. O que diferenciava uns dos outros eram os métodos e os ritmos.
A partir da crise desencadeada com a posição assumida pela maioria social-democrata em 1914, desenvolveu-se entre os revolucionários, sobretudo os russos, uma tendência a radicalizar a análise sobre o papel destes condicionantes históricos.
Contra o evolucionismo moderado que dominava a social-democracia, depois de 1914, desenvolveu-se uma corrente voluntarista a partir da idéia de que o capitalismo vivia sua crise geral e terminal.
Já que as condições objetivas para a revolução estavam reunidas, restava apenas possuir uma direção política capaz de potencializá-las. Bastava criar as condições subjetivas: novos partidos políticos e uma nova Internacional. Mas o argumento aqui gira em torno de si mesmo.
Como separar de forma tão radical condições objetivas das subjetivas?
O elemento subjetivo - a social-democracia - era o resultado da expansão do capitalismo (elemento objetivo). O próprio Lenin abraçou esta tese quando formulou sua teoria sobre a "aristocracia operária". Nela, como vimos, ele admitiu que a direção do movimento operário podia ser corrompida pelo próprio inimigo burguês, a ponto de fazer a política deste.
Mas se somente o partido de vanguarda era capaz de operar no proletariado a transformação de sua consciência espontânea (reformista) em consciência de classe (revolucionária), pela fusão da teoria revolucionária com a dinâmica das lutas dos trabalhadores, como explicar que fora justamente o partido mais preparado intelectualmente (o SPD) que se deixara "corromper"?