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Entrevista com Eduardo Suplicy, o primeiro e único senador eleito pelo PT. Ele varreu a corrupção da Câmara Municipal de São Paulo e se tornou amigo público n°1. Agora, como o primeiro e único senador eleito pelo PT, prepara-se para furar a barreira conservadora que encontrará em Brasília, na luta contra a recessão e o autoritarismo do atual presidente.

Eduardo, 49 anos, não tem barba, nem usa boné; seus ternos são bem cortados e nada mais estranho do que imaginá-lo conclamando as massas para a revolução. Como se não bastasse, é Matarazzo, é Suplicy, e mora em uma casa confortável no Jardim Europa, pela qual deverá pagar um IPTU leonino em 1991. Ele tem tudo para ser um daqueles burgueses folgados, mas - enfant terrible - é o primeiro e único senador eleito pelo Partido dos Trabalhadores.

Suplicy foi ser gauche na vida em 1980, quando saiu da bancada estadual do defunto MDB, para fundar o PT. Dois anos depois, elegeu-se deputado federal. Em 1985, candidatou-se a prefeito de São Paulo; em 1986, a governador. Coisa de quem já foi pugilista, as duas derrotas consecutivas não o nocautearam ou o deixaram ressentido. Na histórica eleição que alçou Luiza Erundina à condição de prefeita da maior cidade da América do Sul, 200 mil pessoas - um Maracanã lotado - fizeram de Suplicy o vereador mais votado do Brasil. E lá foi ele ser presidente da Câmara Municipal da Paulicéia.

A sua gestão transformou-se em pesadelo para os marajás e o harém de maranis. Com ar de bonzinho, de quem não quer nada, o Eduardo provou que roupa suja de vereador não se lava em casa. As sucessivas descobertas de mamatas, falcatruas e maracutaias revelaram a existência, dentro do Palácio Anchieta, de um verdadeiro sindicato do crime. Apesar das ameaças de morte - chegaram a disparar tiros contra o prédio da Câmara - e de um incêndio mafioso que destruiu documentos que incriminavam velhas raposas da política paulistana, Suplicy prosseguiu no trabalho de apuração de irregularidades e escândalos, limpando a área para a reforma administrativa daquele órgão legislativo. Resultado: tornou-se conhecido como o amigo público número 1.

Nas últimas eleições, boa parte dos paulistas votou naquele que "rouba mas faz" para governador e em Eduardo Suplicy, "aquele que prende quem rouba", para senador. A razão se incomoda com tamanha esquizofrenia; o consolo é que, daqui a quatro anos, o povo, esta entidade insondável, terá chance de acertar por inteiro.

A entrevista que se segue foi feita na manhã do dia nove de outubro, quando as projeções dos institutos de pesquisa já apontavam a vitória do candidato do Partido dos Trabalhadores. Foi uma conversa rápida - era a terceira entrevista que o senador concedia em menos de doze horas - porém consistente. Um retrato 3x4 de alta definição para o leitor de Teoria & Debate.

O candidato do PDS ao senado, o jornalista Ferreira Neto, promoveu, no 2º turno da campanha presidencial, em seu programa de televisão, um palanque para Fernando Collor de Mello caluniar o PT e o Lula; depois entrou no esquema de Paulo Maluf. Você sentiu algum prazer especial em derrotar esta figura?
Minha concepção de política difere muito da de Ferreira Neto, seja do ponto de vista programático, seja no que diz respeito ao comportamento ético. Embora afirme ser um jornalista imparcial, a sua candidatura ao Senado serviu para revelar de uma vez por todas a sua parcialidade. Ele não apenas abraçou de corpo e alma a causa de Fernando Collor de Mello, e deu seu apoio aos métodos de Paulo Salim Maluf, como declarou, no programa de Hebe Camargo, ser um inimigo mortal do Partido dos Trabalhadores. Ele, que se diz um pioneiro na realização de debates - teve até méritos em promover aquele entre Franco Montoro e Reynaldo de Barros, em 1982 -, recusou-se a participar, assim como Guilherme Afif Domingos, do realizado pela Rádio Excelsior - uma atitude que, a meu ver, não contribui para o exercício da democracia. Ao longo dos últimos meses, procurei mostrar aos eleitores as nossas diferenças em relação aos outros candidatos, dizendo que os que apostavam no lucro máximo privado, muitas vezes obtido de forma inescrupulosa, como o melhor caminho para o Brasil, poderiam optar por nossos adversários, pois meu compromisso era com aqueles que acreditavam em um redirecionamento de valores, para a construção de uma sociedade mais fraterna. A minha satisfação é pela vitória dessas idéias, e por ela ter sido alcançada com gastos modestos de campanha, um marco na história da democratização do país.

Como se explica o fato de você ter conseguido cerca de 25% do total de votos para senador, e o Plínio de Arruda Sampaio, candidato a governador, não ter atingido nem 10%?
Eu fui candidato a governador em 1986 e sei que é muito mais difícil: a posição adversa da imprensa e o extraordinário poder econômico dos nossos adversários têm um peso muito maior neste tipo de eleição. Lembro-me que, naquele ano, outros fatores também prejudicaram minha candidatura, como o assalto a uma agência do Banco do Brasil, em Salvador, por militantes petistas, e o episódio de Leme, quando o PT foi acusado falsamente de ter provocado o conflito entre polícia e bóias-frias, que resultou na morte de duas pessoas. Tive, ainda, problemas com segmentos do partido. Acho que aprendi muito com tudo isso. Na eleição deste ano, três fatores contribuíram para que eu fosse eleito: o excelente nível de relacionamento com as bases e a direção do PT, o reconhecimento pela minha atuação na Câmara Municipal de São Paulo; e o fato de ter sido candidato majoritário em outras oportunidades, que, aliado à repercussão do meu trabalho como vereador, tornou-me mais conhecido dos eleitores, de uma forma positiva. Obviamente, o Plínio de Arruda Sampaio também é um homem público conhecido; foi um deputado federal que teve posições de destaque como líder do PT na Assembléia Nacional Constituinte. A qualidade de seu trabalho determinou que o partido o escolhesse para candidato ao governo paulista.

O Plínio afirmou, numa entrevista coletiva, que você foi eleito porque tem muitos amigos nos meios de comunicação e porque sua proposta é menos radical que a dele.
O Plínio terá maior sucesso, conseguirá maior apoio, quando for mais generoso em seus sentimentos humanos.

O eleitor que votou em Collor, "o caçador de marajás", e em Suplicy, o moralizador da Câmara Municipal de São Paulo, consegue perceber a diferença entre os dois?
Recentemente, o senador Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, quis fazer uma comparação entre o meu trabalho na Câmara Municipal de São Paulo e o realizado por Fernando Collor de Mello. Mas tenho a certeza de que a população sabe que as minhas posições e as do presidente da República são muito diferentes. O meu esforço pela transparência dos atos da administração, a firmeza na apuração de irregularidades, somam-se à crítica ao Plano Collor e à defesa de uma política econômica civilizada que prestigie o crescimento do país, a melhoria do nível de emprego e uma distribuição mais justa da renda e da riqueza.

Ao falar de suas intenções e ideais políticos, você gosta de usar parábolas nas quais as imagens de céu e inferno, bem e mal, aparecem com freqüência. Você se sente imbuído de uma missão?
A procura da verdade é, para mim, uma coisa importante. Não devemos escondê-la, nem ter medo de procurá-la, seja em que plano for. Por exemplo, no 2º turno, em São Paulo, onde estava a verdade? Em dizer que Fleury e Maluf eram iguais? Não, porque eles não são iguais; são males de natureza diferente. Maluf participou da ditadura militar, apóia-se no poder econômico mais retrógrado em troca do uso indevido da máquina estatal. Seus métodos para angariar votos na última eleição indireta para presidente da República feriram a dignidade do Parlamento. A alternativa Fleury também não era boa: o governo do PMDB gastou exageradamente em publicidade, discriminou os prefeitos que não o apoiavam, sucateou a escola pública etc. Mas, ainda assim, apesar de sermos oposição a ambos, temos de reconhecer que, na problemática trajetória rumo à democratização do país, o PMDB e o PDS desempenharam papéis diferentes. Nós deveríamos ter refletido melhor sobre isso, antes de dizer que os dois eram absolutamente iguais.

Você acredita em Deus?
Bem, minha formação é católica. Às vezes eu vou à igreja, participo de uma comunhão - especialmente quando vejo que ela tem um sentido de fraternidade entre os homens. Acho que Deus é ter amor ao próximo.

E no diabo, você acredita?
Eu não me incomodo muito com este conceito. O que eu vejo é que existem pessoas que agem sem escrúpulos.

Falando nessas coisas, as relações entre o PT e a imprensa são difíceis. Você acha que elas podem melhorar?
Nós temos que estar conscientes de que a imprensa não vai nos favorecer muito. A Luiza Erundina tornou-se prefeita, o Lula foi para o 2º turno e eu fui eleito senador, apesar dos meios de comunicação. O nosso papel é cobrar da imprensa a informação correta, sobretudo em relação ao nosso partido - eles mesmos não dizem que procuram informar os fatos aos leitores?

Você pretende se candidatar a prefeito de São Paulo em 1992?
Vou para o Senado sem deixar de estar atento aos problemas da minha cidade, da qual gosto muito. Eu participei com muita vontade da campanha para prefeito, em 1985. O desafio de administrar São Paulo me agrada bastante, mas acho cedo para dizer qualquer coisa sobre a possibilidade de me candidatar em 92.

Ser o primeiro e único senador eleito pelo PT não lhe parece simbólico demais? Você poderá defender efetivamente os trabalhadores em uma câmara tão conservadora?
Eu sei que vou encontrar lá uma porção de pessoas acomodadas, porém já vi um parlamento ser modificado pela atuação de alguns poucos, que, pelo ritmo de trabalho, pelo exemplo, acabaram influenciando os outros.

Quem serão seus prováveis aliados no Senado?
Acho que poderei contar com uma pessoa como o Darcy Ribeiro, do PDT do Rio de Janeiro, que é um político brilhante, um intelectual criativo, cheio de idéias. Mas só chegando lá, vou poder ver.

Você declarou que pretende reduzir o mandato e o salário dos senadores.
A proposta de redução do mandato é uma proposta de todos aqueles que foram candidatos ao Senado pelo PT. Os mandatos dos governadores, prefeitos, deputados, vereadores, são de quatro anos. O mandato de maior responsabilidade, o do presidente da República, é de cinco anos. O mandato de oito anos faz com que muitos se acomodem; então, logo que se iniciem os trabalhos no Congresso, vamos apresentar uma proposta de emenda constitucional para diminuir este período tão longo para quatro anos. Quanto aos salários, hoje a diferença dos rendimentos de senador em relação ao salário mínimo é da ordem de cem para um. Vamos tentar diminuir gradativamente esta diferença, durante os próximos quatro anos.

Qual será a primeira tarefa da bancada do PT no Congresso renovado? Há vários pontos da Constituição que precisam ser regulamentados.
Há muito o que fazer. De início, devemos regulamentar os crimes de responsabilidade do presidente da República e dos ministros, e procurar conter a decretação de medidas provisórias como forma de implementar a política econômica do governo federal. Além disso, vou requerer informações sobre o que acontece com os diversos fundos sociais - PIS, FGTS etc. - e eventualmente propor que se regulamente a utilização destes recursos, no sentido de garantir uma maior transparência e a democratização de seu uso. Pretendo, ainda, apresentar um projeto que garanta o direito de acesso dos trabalhadores às informações econômico-financeiras das empresas na hora da negociação coletiva, e outro que estabeleça que o governo tenha como diretriz de sua política econômica o pleno emprego, e não a recessão, como método de combater a inflação. É fundamental, também, exigir do Executivo um maior diálogo com o Congresso e a sociedade, para enfrentar as pressões dos credores internacionais.

Na sua opinião, o chamado "entendimento nacional", proposto pelo governo federal, deve ser levado a sério?
É importante que Central Única dos Trabalhadores, com o apoio do PT, esteja aberta ao diálogo - aliás, ela nunca deixou de estar. Agora, é preciso que haja respeito às proposições da CUT, e cabe ao PT exigir isto. No que se refere ao "entendimento nacional", é preciso levar em conta que o presidente não construiu sua política econômica através do diálogo, como era de se esperar de um democrata. Só depois, quando começaram a surgir problemas com o plano, é que a CUT foi chamada para conversar.

Depois destas eleições, o equilíbrio de forças das tendências petistas mudou?
Eu acho precipitado emitir uma opinião. De qualquer forma, eu não sou um especialista em política de tendências e nunca me preocupei muito com este tipo de coisa.

Como você se definiria ideologicamente? Você é socialista ou social-democrata?
Eu acho secundárias estas definições. Sou a favor da construção do socialismo por formas democráticas, pela conscientização das pessoas. O socialismo se dá na transformação dos valores humanos, que mudam através de exemplos, de nossas atitudes cotidianas. Relações menos autoritárias contribuem para a construção do socialismo.

Você não acha que aqueles petistas que foram fazer cursos de formação política na extinta Alemanha oriental ficaram meio decepcionados com a queda do muro de Berlim?
Sempre foi importante para o Partido dos Trabalhadores o estudo das experiências de construção do socialismo em Cuba, União Soviética, China etc. Acho que o PT deve examinar com atenção o que está ocorrendo na Alemanha unificada, avaliar o que houve de positivo e negativo nos países do Leste Europeu. Precisamos manter um diálogo fraterno e ao mesmo tempo franco com Cuba, manifestando nossas concordâncias e discordâncias. Isto é saudável e não significa uma aprovação a regimes totalitários - no programa do PT está claro que queremos construir o socialismo com democracia.

Você concorda que os conceitos de imperialismo e luta de classes precisam ser revistos?

Ele varreu a corrupção da Câmara Municipal de São Paulo e se tornou o amigo público nº1. Agora, como o primeiro e único senador eleito pelo PT, prepara-se para furar a barreira conservadora que encontrara em Brasília, na luta contra a recessão e o autoritarismo do atual presidente.

A luta de classes no Brasil é um fato evidente; nós somos um dos países com maior disparidade social e um dos mais intensos graus de exploração do trabalho. Isto é parte de nossa interação com o Primeiro Mundo capitalista. Não se pode negar a existência do processo de luta de classes e do imperialismo. Tais coisas não se apagam de uma hora para outra.

Eugênio Bucci é editor de Teoria & Debate.

Mário Sabino é editor- assistente de Teoria & Debate.