O artigo de César Benjamin publicado em Teoria & Debate nº 12, "Nossos verdes amigos", constitui sem dúvida o ataque mais pretensioso à esquerda ecológica no Brasil. Trata-se da reafirmação das análises materialistas do século passado sobre população, recursos, caráter progressista do desenvolvimento das forças produtivas e uma minimização dos riscos ambientais e do potencial político das lutas ecológicas.
Benjamin cita os conhecidos relatos sobre em as condições de vida dos trabalhadores ingleses e dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro no início do século passado e constata as inegáveis melhorias que a Revolução Industrial trouxe, deduzindo que nem piorou... Trata-se do lado progressista do capitalismo. O efeito estufa, o buraco na camada de ozônio, a ameaça de guerra nuclear passam ao largo, como ficções. Afirma a dificuldade da rápida ou generalizada adoção de tecnologias alternativas, como a energia eólica e a solar, e praticamente retoma a antiga linha da suposta neutralidade das tecnologias. Refuta, com base em depoimentos de um cientista, a relação entre a poluição de Cubatão e a incidência de anencefalia nesta cidade, argüindo o exagero dos ambientalistas, como se esta fosse a única ou a principal agressão à vida e à saúde da classe trabalhadora de Cubatão... Esta que já foi a cidade mais poluída do mundo, onde parte da Serra do Mar desabou, onde os esgotos contaminaram a represa Billings, onde os cientistas constataram os maiores índices de doenças do aparelho respiratório, só foi parcialmente despoluída graças à ação conjunta de ecologistas e sindicatos. Citando outro relatório, Benjamin contesta a falta de segurança da usina nuclear de Angra I no que diz respeito (exclusivamente) a sua situação geológica de resistência aos sismos, como se esta fosse a principal crítica dos ecologistas ao programa nuclear brasileiro, caro, perigoso, desnecessário, secreto, com conexões militaristas, sem consulta à comunidade científica nacional.
Benjamin cita dois comentários de Vitor Buaiz, ecologista do PT e prefeito de Vitória, acerca da contaminação por agrotóxicos e da poluição do ar, e contesta sua veracidade, questionando: "Pode ser que os resultados indiquem apenas o maior refinamento das técnicas de pesquisa, sem que haja fiscos à população." Ora, este é precisamente o argumento dos latifundiários e capitalistas agrários, contestado pela CUT, Contag e Diesat, que oferecem estatísticas concretas de milhares de trabalhadores contaminados por agrotóxicos. Vitória é uma das capitais com maior índice de poluição do ar. Nós nos orgulhamos de ter apoiado Vitor Buaiz, através da assessoria de Luiz Antônio Prado, no enfrentamento corajoso da poluição da Companhia Siderúrgica Tubarão e outras empresas poluidoras que fazem com que a população respire concentrações inaceitáveis de particulado, dióxido de enxofre e metais. Foram também os ecologistas do PT que em 1989 trouxeram ao Rio dois secretários de governo de Luiza Erundina para apresentar os programas de coleta seletiva do lixo em favelas e do gás natural nos táxis e nos ônibus. Estes programas começam a ser implantados em São Paulo e representarão melhorias objetivas na saúde e na qualidade de vida das populações urbanas.
César Benjamin ironiza um comentário de Liszt Vieira e de Gabeira acerca da relação dos índios com o meio ambiente e qualifica de enorme bobagem a possibilidade dos índios caiapós terem tido algum dia aglomerações de 70 mil habitantes. Ora, na realidade esta hipótese é levantada pelo cientista Darrell A. Posey no artigo "Os caiapós e a natureza", publicado no nº12 da revista Ciência Hoje, de junho de 1984. Parece que Benjamin só leu os números da Ciência Hoje a partir do ano em que começou a trabalhar nesta revista da SBPC, e que, mesmo não sendo cientista, considera sérios apenas os pesquisadores que concordam com suas centenárias convicções. Curiosamente, a matéria de capa do nº 12 de Ciência Hoje intitula-se "Lixo atômico - o que fazer?", em que o cientista Joaquim Francisco de Carvalho conclui que a questão ainda não foi resolvida e que não há soluções definitivas e seguras. Benjamin descobriu um livro publicado há cinco anos - Ecologia política no Brasil - do qual pinçou várias frases, fora dos contextos, para desqualificar as preocupações dos ecologistas, suas premissas, suas teses e suas propostas. Benjamin busca no comportamento pessoal de algumas dessas lideranças, ou de uma delas (Gabeira) elementos para reduzir o conjunto das correntes ecolibertárias ou eco-socialistas ao narcísico projeto de promoção pessoal. César se veste de psicólogo e não esconde seus ressentimentos para ridicularizar as preocupações políticas de uma parcela considerável da juventude do planeta.
Evidente que cada uma destas questões deve ser respondida por aqueles que colocam a defesa da vida, da natureza e das liberdades indissoluvelmente ligada às lutas pela libertação dos trabalhadores e pela transformação do conjunto das relações econômicas, sociais, éticas e culturais.
Cabe, no entanto, uma indagação prévia: qual o objetivo político do artigo? Benjamin não dirige sua alça de mira ortodoxa contra os grandes poluidores, desmatadores, mercadores de agrotóxicos, armamentos ou tubarões da especulação imobiliária. Sua ira de classe se abate justamente sobre aqueles que de forma melhor ou pior fundamentada se opõem aos desígnios destes diversos tipos de capitalistas predatórios, que se apropriam do meio ambiente e intoxicam solos, mananciais e os pulmões da classe trabalhadora.
No interior dos movimentos ambientalistas existem amplos setores conservadores, que pretendem manter a pureza da ecologia afastada dos partidos de esquerda e dos sindicatos. Temos nossa ecodireita, os verdes clorofílicos, os ecólogos oficialistas. Não é contra estes que se dirige a eloqüência de César, mas justamente contra os que tentam acrescentar a dimensão ecológica à luta dos sindicatos e movimentos sociais, algumas vezes circunscrita ao economicismo e ao corporativismo.
O novo não é a ecologia ou os propalados exageros quanto às agressões à fauna, à flora, aos mares e aos ares. Isto tudo tem mais de 150 anos. O novo é Chico Mendes e Marcos Terena, que curiosamente foram completamente omitidos do artigo, mesmo quando este se refere às principais lideranças ecológicas do país. Estas autênticas lideranças dos seringueiros e das nações indígenas são quadros do PT que ampliaram as propostas do partido quanto ao ecodesenvolvimento da Amazônia e à necessidade de estabelecermos uma democracia pluriétnica no Brasil.
O novo não é que ecologistas, feministas, pacifistas e libertários desenvolvam críticas ao socialismo autoritário, centralizador, militarista, machista, e busquem sua matriz não apenas no stalinismo, mas também no economicismo e no racionalismo presentes no pensamento de Marx e Lenin. Toda esta discussão ganhou notoriedade na década de 60, quando César Benjamin começava a militar conosco no movimento secundarista e lia Marcuse, Guevara e Alexandra Kollontai, nos intervalos da História da riqueza do Homem, de Leo Huberman, e dos escritos de Marx, inclusive as críticas a Malthus que, como se viu, Benjamin não esqueceu, passados 22 anos. Foi na década de 70, quando os movimentos pela paz, pelos direitos das mulheres e pela defesa do meio ambiente ganharam força política real, e balançaram os paradigmas do crescimento centralizador e predatório, cercado por bases de mísseis nucleares e de populações desprovidas de poder e cercadas de resíduos químicos, que uma série de pensadores socialistas, como André Gorz, Rudolf Bahro, Dupuy começaram a integrar de forma sistemática estas dimensões no cerne da formulação da transformação socialista.
O novo é que nós vivemos no momento de maior perplexidade de toda a história do socialismo, pois não ruíram apenas os muros e as polícias secretas, símbolos do socialismo autoritário, que o PT critica vigorosamente desde seu nascimento como partido político. Os princípios gerais da superioridade do plano sobre o mercado, do coletivo sobre o individual e do inevitável desenvolvimento econômico e cultural libertos do fantasma das crises cíclicas do capitalismo desabaram, colocando para os socialistas democráticos questões muito maiores do que nossa capacidade atual de resposta. Curiosamente, César ignora estas questões e brande com vigor contra a esquerda ecológica os postulados do materialismo histórico e o caráter revolucionário do inexorável desenvolvimento das forças produtivas, como se nada disto estivesse sendo seriamente questionado e não merecesse, no mínimo, uma profunda reflexão.
Do recurso ao racionalismo
Toda a crítica sistematizada por Benjamin aos postulados da esquerda ecológica brasileira sobre população e recursos parte de um pressuposto totalmente falso: o de que estes estão fundamentados, respectivamente, nas teses de Malthus e no Relatório Meadows, de 1972, conhecido como Os limites do crescimento.
A melhor e a mais ampla crítica ao Relatório Meadows foi feita há seis anos, em janeiro de 1985, na defesa da tese de doutoramento de Carlos Walter Porto Gonçalves: Os limites do 'Limites do crescimento': uma contribuição à reflexão sobre natureza e história, apresentada no Instituto de Geociências da UFRJ, onde lecionávamos. Carlos Walter pertence à coordenação nacional dos ecologistas do PT, junto a Osmarino Amâncio (do Conselho Nacional dos Seringueiros), Geovani Gregol e Gert Schincke (vereadores do PT em Porto Alegre), João Alfredo (deputado do PT no Ceará), Maurício Waldman e dezenas de outros companheiros, à qual fui recentemente incorporado. Carlos Walter foi também fundador do núcleo de ecologia do PT-RJ, juntamente comigo, Liszt Vieira, João Batista Petersen e outros trinta companheiros.
A ecologia política não trabalha de forma alguma com o conceito de que os recursos naturais são estáticos, finitos e limitados. O próprio conceito de recurso é histórico e depende das tecnologias disponíveis, do seu acesso pelas classes sociais e do seu emprego nas formações sociais concretas. O que não aceitamos é a posição do racionalismo econômico, que reduz a natureza a uma coleção de matérias-primas e a população à categoria de força de trabalho. Este reducionismo sempre foi utilizado pela burguesia para justificar a especulação imobiliária, o armamentismo e a espoliação dos povos do Terceiro Mundo, o ecocídio e o etnocídio. O socialismo autoritário sempre utilizou a lógica economicista para defender a militarização do trabalho, a "batalha da produção" e o adiamento infinito de todas as utopias igualitárias e libertadores dos revolucionários.
É igualmente falsa a afirmação, decorrente da anterior, que a ecologia política aponta para objetivos próximos ao crescimento zero. Na década de 80, a economia brasileira apresentou em alguns anos crescimento negativo, ou seja, diminuição absoluta da produção material de bens e serviços, e, no entanto, a Amazônia e a Mata Atlântica, os solos e os rios, os tímpanos e o sistema nervoso dos trabalhadores, as encostas e o litoral não deixaram de ser agredidos pelo desenvolvimento capitalista e predatório das forças produtivas e improdutivas no nosso país. A questão não é a taxa, mas a qualidade do crescimento e sua repercussão sobre o nível de vida da população. Os resultados do crescimento econômico não podem ser avaliados simplesmente por uma fria porcentagem, que mede se a economia cresceu 3% ou 8%. Os sistemas de contabilidade das economias ocidentais e as do ex-socialismo real não consideram indicadores de qualidade de vida, como grau de satisfação e tempo livre, e passam ao largo da contabilização das perdas ambientais. Se você ajuda a educação do seu filho ou melhora sua saúde com ginástica e alimentação equilibrada, isto significa um redondo zero para a contabilidade nacional; mas se compra objetos supérfluos, gasta mais gasolina em engarrafamentos e compra quilos de calmantes e antibióticos, o PNB cresce e agradece.
A contabilidade capitalista apura, para efeito de amortização, apenas o desgaste de máquinas, prédios e equipamentos. A destruição das florestas, o empobrecimento dos solos, a exterminação dos cardumes dos rios e do litoral não aparecem jamais nestas contas. A natureza é considerada uma somatória de bens infinitos e gratuitos. Por isto os capitalistas resistem tanto a investir em equipamentos de controle da poluição - eles os consideram um custo suplementar, supérfluo, que afetará a sua taxa de lucro. Sua lógica é a de internalizar os lucros e externalizar os custos sócio-ambientais. As lutas ecológicas, sob este prisma, afetam a taxa de lucro sim e significam melhoria da qualidade de vida, salário indireto representado por menos gastos em saúde, peixe mais abundante ou mais área pública para o lazer. Esta dimensão estratégica da luta ecológica escapa naturalmente àqueles que se preocupam com o trabalhador exclusivamente durante as oito horas que ele está dentro da fábrica, na qualidade de produtor de sobretrabalho para outrem, ou seja, para os que o reduzem à categoria de força de trabalho.
As economias do socialismo autoritário trabalhavam com a contabilidade do Sistema de Produção Material (SPM), supostamente fundada no princípio do valor-trabalho, em que também estava ausente a depreciação ambientar, já que as riquezas naturais não eram o produto do trabalho humano. Escrevemos há seis anos (Como fazer movimento ecológico, Ed. Vozes, 1985) por que a devastação ambiental era enorme nesses países. A apropriação pelos trabalhadores dos meios de produção limitava-se ao seu caráter jurídico e não implicava poder efetivo de decisão e gestão coletiva: o que produzir, como produzir, para quem produzir. Não havia qualquer democratização real da informação e poder efetivo de pressão da população sobre a gestão do seu patrimônio ambiental. O poder "divino" das metas dos planos qüinqüenais e o discurso oficial economicista, baseado na redenção pelo desenvolvimento das forças produtivas, desqualificavam qualquer demanda ambiental de sindicalistas e ambientalistas que ameaçassem uma vírgula das metas centralmente planificadas. Sem imprensa independente ou opinião pública, o economicismo materialista, que Benjamin redescobre, conseguiu arrasar completamente o ambiente e a saúde dos trabalhadores nestes países.