Internacional

Interesses capitalistas, diversionismo soviético, imperialismo israelense, demagogia árabe, reivindicações palestinas: os fios da bomba-relógio chamada Oriente Médio só poderão ser desconectados pelas forças progressistas e de esquerda

A crise/falência da ordem internacional construída após a 2ª Guerra e a necessidade de reorganização econômica et pour cause geopolítica do mundo é o pano de fundo sem a observação do qual o conflito do Golfo Pérsico perde grande parte de sua configuração dramática e da dimensão política que carrega.

É este contexto que diferencia fundamentalmente esta guerra de outras crises e conflitos localizados, ou até mesmo regionais, que se verificaram desde 1945. Seja a Guerra da Coréia, a crise da Cashemira ou de Suez, sejam as invasões da Hungria, Tchecoslováquia,Guatemala, Panamá, República Dominicana ou Granada, sejam todas as tensões e conflitos do Oriente Médio, ou mesmo a Guerra do Vietnã.

Isto faz com que a real disputa local pela hegemonia no Oriente Médio – desta vez protagonizada pelo Iraque de Saddam Hussein – ganhe contornos novos e desdobramentos imprevisíveis.

Trata-se também da primeira vez que somos postos numa situação de enfrentar e refletir sobre um desses conflitos pós-guerra fora dos parâmetros da Guerra Fria, da lógica de um mundo bipolar  que hoje esboroa, abrindo espaço para que o grande capital viva a sua “segunda Belle Époque” sem nada que realmente se coloque como uma barreira aos seus objetivos e desígnios – pelo menos até agora.

O desmanche do Leste Europeu, com sua profunda crise política, econômica e ideológica e a opção pela perestroika tiveram como efeitos mais concretos até o momento a reunificação da Alemanha sob a égide dos grandes monopólios e a prostração do poder soviético, inerme, aos pés do bloco capitalista, oferecendo-nos como último ato o voto da URSS no Conselho de Segurança da ONU favorável à intervenção  militar no Golfo.

Foi assim que a URSS jogou definitivamente por terra a bandeira da paz internacional que, sem muita convicção e com alguma hipocrisia, ainda empunhava nas últimas décadas. Desse modo tornou-se cúmplice e contribuiu para a grande aventura hegemonista do senhor Bush de ampliar o conflito do Golfo e garantir a presença de tropas americanas ocupando o Oriente Médio.

Com as reviravoltas do quadro econômico e político internacional os governos títeres de Israel, dos países árabes e dos países islâmicos não são mais garantia suficiente para Washington da defesa eterna de seus interesses no controle das jazidas de petróleo da região. Somente tropas norte-americanas estacionadas na região poderão dar a segurança exigida pelos EUA.

Os Estados Unidos são uma potência em declínio, e os governantes de aluguel do Oriente Médio podem repentinamente decidir vender seus serviços a novos senhores de potências emergentes – a troco de marcos e iens, por exemplo.

A garantia do controle de jazidas petrolíferas é também o que disputa a Comunidade Européia que não sabe o que fazer com a Alemanha Unificada, com a qual lhe presenteou a perestroika.

Por outro lado, os Estados Unidos vivem numa recessão interna que tende a se agravar. A ativação da sua indústria bélica e o redirecionamento do seu parque industrial visando a guerra são saídas desejáveis (para Washington) como possibilidade de solução da crise interna. O mesmo raciocínio vale para países da Comunidade Européia, como a França e a Inglaterra.

Em nome da rosa

A causa da paz internacional foi a grande bandeira dos socialistas revolucionários de 1914, derrotados pelo “pragmatismo” (leia-se traição) da 2ª Internacional (social-democrata). Se é verdade que, por um lado, esta derrota se expressa no assassinato dos líderes espartaquistas alemães Rosa Luxemburgo, Liebknecht e do socialista francês Jaurès (entre outros) e a consumação da guerra; não é menos verdade que esta mesma bandeira da paz internacional que credenciará Lenin e as lideranças revolucionárias russas para o processo de acúmulo de forças que tem seu desfecho em 1917.

A guerra de 1914 marca o fim da Belle Époque e, depois dela, o mundo se reorganiza: o Império Britânico e a França permanecem como potências econômicas e militares de primeira linha, os Estados Unidos emergem como  potência internacional e, das cinzas do Império Russo, surge o primeiro Estado operário: a União Soviética.

É sobre os escombros do Império Turco que os novos senhores do mundo procederão a partilha do Oriente Médio, traçando já naquela época fronteiras artificiais que delimitam Estados e que dividem nações e tribos, ao mesmo tempo que reúnem internamente povos que não pretendiam conviver num mesmo espaço. Com esta partilha a Inglaterra afirma na Península Arábica seu poder político. Posteriormente Londres procederá a novas divisões arbitrárias na região, retirando da antiga província turca do Iraque uma parte do seu território e criando artificialmente o Kuait. O Kuait é erigido em protetorado britânico e só conquistará independência política nos anos 60.

A paz defendida por Rosa, Liebknecht, Jaurès, Lenin e outros revolucionários em 1914 traz em si e sintetiza o melhor da tradição socialista que remonta ao século passado. Antes de mais nada, essa paz internacional é um princípio ético. Do ponto de vista filosófico ela integra a dinâmica de um pensamento e ação de transformação do mundo em igualitário e justo.

Do ponto de vista da teoria política, decorre do entendimento de que as fronteiras dos Estados nacionais modernos interessam apenas às burguesias destes Estados, que através da manutenção destas fronteiras partilham entre si as riquezas e os recursos naturais, dividindo e explorando a classe trabalhadora. Assim, a burguesia acumula lucros, realizando o capital, enquanto a classe trabalhadora é mantida explorada e oprimida. Desse ponto de vista, as guerras são resultado das disputas interburguesas em torno dos mercados, riquezas, terras, zonas de influência etc. Essa mesma tradição aponta que as guerras são decididas  pelas classes dominantes na defesa de seus interesses, mas que são levadas a cabo pelos filhos da classe trabalhadora e do povo em geral (os soldados), que morrem nas frentes de batalha ou voltam mutilados, na defesa de impérios que os oprimem. São também os trabalhadores  e o povo que arcam com todas as dificuldades e misérias acarretadas pelas guerras e têm que reconstruir – em situação cada vez mais precária e de maior exploração – os impérios dos senhores. Nas guerras, a burguesia, através de seus discursos  chauvinistas e patrioteiros, leva a classe trabalhadora e o povo ao ponto mais degradado de desunião, fazendo com que se assassinem mutuamente nas trincheiras, ao mesmo tempo em que perdem a referência da contradição capital-trabalho. A paz internacional é, portanto, um princípio ético fundamental do internacionalismo proletário.

De Aquino a Gorender

Esta posição intransigente contra as guerras desencadeadas pelo capital não implica, porém, concepções ingênuas sobre o uso da força, da violência, das armas.

Uma discussão antiga, legitimada desde a Idade Média por São Tomás de Aquino, já estabelece o direito de rebelião contra os tiranos.

É com base no direito à rebelião – com todos os ingredientes que o termo pode pressupor  em termos de violência – que a burguesia inaugurará uma nova fase da história da humanidade em 1789 na França, e que várias colônias de potências européias conquistarão sua independência. As guerras de libertação nacional do nosso século põem-se no mesmo rol. Para os revolucionários socialistas a rebelião, mais que um direito,  foi sempre encarada como um dever do oprimido. Para esses mesmos revolucionários  -  e desde o século passado, vide a experiência da Comuna de Paris – pegar em armas foi sempre a única alternativa que as classes dominantes deixaram aos trabalhadores na defesa de suas conquistas, pois toda vez  que se sentiram ameaçadas  as classes dominantes usaram armas contra os trabalhadores e o povo. Assim, o uso da violência pode ser justo ou não: depende de que a usa, contexto, objetivos, contra quem.

As sucessivas gerações de revolucionários fizeram essa discussão ao longo dos últimos dois séculos. O último texto publicado no Brasil a este respeito – e do nosso conhecimento – se encontra no livro O combate nas trevas, de Jacob Gorender, quando ele discute com grande pertinência o caso da execução de Elza Fernandes, ordenada pelo Comitê Central do PCB na segunda metade dos anos  30, e a execução de um militar capturado nos combates da guerrilha da VPR no Vale do Ribeira em 1971.

É assim que na 2ª Guerra, defendendo a bandeira da paz internacional, as esquerdas revolucionárias irão à luta. No mundo inteiro. De um lado, organizando a resistência na própria Alemanha e Itália e nos países ocupados. Muitos desses processos  de resistência resultaram em vitórias internas que mudaram radicalmente no pós-45 a face desses países, como a Albânia, Iugoslávia e China.

Por outro lado, depois da invasão alemã ao território soviético, as esquerdas (mesmo dos países não invadidos) se lançaram à guerra, de diversos modos: era a defesa do primeiro Estado socialista. O internacionalismo proletário.

Os comunistas brasileiros, vivendo a ditadura do Estado Novo, foram dos primeiros em nosso país a pressionar Getúlio a declarar guerra ao Eixo, sobretudo a partir do momento em que submarinos alemães começaram a incursionar em nosso litoral, afundando navios brasileiros. A este respeito é muito ilustrativa a entrevista de Jacob Gorender publicada por Teoria & Debate nº11.

E agora, ONU?

A nova ordem construída depois da 2ª Guerra traz consigo a ONU, a Guerra Fria, uma Alemanha dividida e desarmada e um Japão também desarmado.

A ONU, desde sempre, mostrou-se incapaz de arbitrar pela paz em qualquer crise que envolvesse diretamente interesses das grandes potências. Ainda assim, como representação institucional, conseguiu expressar a nova ordem, na medida mesmo em que os destinos da paz ficavam por conta da Guerra Fria. Esta teve seu fim oficial na Conferência Européia Internacional reunida em Paris em 1990. Claro está portanto que a ONU pode se encontrar às vésperas de profundas transformações ou até mesmo de extinção, uma vez que a ordem que representou ruiu, a Guerra Fria acabou e a nova ordem a ser estabelecida poderá vir a necessitar de outra instituição com características próprias e adequadas ao rearranjo.

A Alemanha está reunificada e hoje alguns dos seus próceres levantam no Bundestag a necessidade de ser rearmarem para a defesa dos EUA, da “civilização ocidental e cristã” - que como todos sabemos, por alguma “licença poética” inclui o Japão. De qualquer modo, Berlim e Tóquio dirigem as duas economias mais fortes do mundo atual.

Dundun is calling

O “Estado militarista” é uma expressão cunhada por Galbraith que, poucos anos depois da paz de 45, já denunciava e advertia para os perigos de uma nova economia construída fundamentalmente com vistas à guerra. Ora, apesar da visão de Galbraith ser limitada, pela incapacidade de entender o Estado enquanto expressão do poder de classe, ele acerta em muitos pontos.

Pois bem, a lógica de montagem dos parques industriais visando a guerra é tal que não apenas define planos diretores e urbanísticos de cidades e regiões (estabelecendo pólos petroquímicos, traçados de rodovias etc) como vai muito além: a fábrica do inocente batom que vemos diariamente em vitrines, bolsas e penteadeiras, ou que a tranqüila e pacata vendedora da Avon oferece de porta em porta com o eficiente slogan traduzido do americano “Blim-blom, Avon is calling” pode rapidamente, com pequeníssimas alterações, substituir a fabricação das cápsulas de cosmético pela produção de cápsulas de balas para armamentos. O sistema é o mesmo: Blim-blom, dundum is calling!

Do mesmo modo, a Olivetti e/ou a Remington podem transformar do dia para a noite a fabricação dos tabuladores de suas pacíficas maquinas de escrever em produção de peças para o disparo de metralhadoras, e assim por diante.

Esses exemplos deixam claras duas coisas: primeiro, que o rearmamento do Japão e da Alemanha dependem apenas e tão somente do nihil obstat das duas potências em declínio (EUA e URSS) e sua concretização, após o sinal verde, pode se dar num lapso de tempo tão curto que dê margem mais uma vez aos desavisados de suporem a superioridade desses povos. Segundo, que quando falamos de guerra como reativadora de indústria armamentista ou bélica, não estamos falando apenas das empresas voltadas diretamente para a produção de mísseis, tanques, canhões, bombardeios etc. Falamos na indústria como um todo, na reativação da economia como um todos.