Nacional

Reestruturar suas instâncias, aprimorar a participação popular, formular claramente os conceitos de democracia interna e socialismo. O presidente do PT não tem dúvida: a resolução dessas antigas questões é crucial para a consolidação do PT.

Nesta entrevista realizada em dezembro de 1990, Luís Inácio Lula da Silva fala de algumas questões que o têm preocupado. Contrariando os 'analistas políticos' que disseram que sua decisão de não se candidatar à reeleição era um sinal de desencanto e desânimo com a política, ele mostra que está mais ativo do que nunca.

Nos doze meses que se passaram desde as eleições de 1989, Lula esteve empenhado em novas funções, como a de coordenador do Governo Paralelo. A viabilização desta idéia ajudaria a manter unida a oposição popular brasileira e permitiria clarificar e explicitar propostas alternativas à política do governo federal

Também é novidade o papel internacional que Lula tem desempenhado: hoje, ele é um dos líderes mais importantes da esquerda em todo o mundo.

Mas novas tarefas não excluem as antigas. Em junho, Lula reassumiu a Presidência do PT, voltando a antigas prioridades: a organização do partido e a participação política dos trabalhadores. Este novo período de Lula à frente do PT coincide com a preparação do 1º Congresso e a grande discussão sobre a crise do socialismo; coincide, além disso, com o surgimento de problemas decorrentes, em parte, do próprio crescimento do partido, como a relação entre os organismos do PT e as prefeituras, a distância entre as expectativas criadas pelas nossas administrações e as suas realizações efetivas, e as divergências entre os sindicalistas petistas.

Com tantos atividades e dificuldades à enfrentar, Lula não dispõe de muito tempo – esta foi provavelmente a entrevista mais difícil de ser marcada. Mas em dezembro de 1990 conseguimos e valeu o esforço: ele falou de tudo a Teoria & Debate.

Depois de um ano de Governo Collor, como você vê a situação do País?
Eu acredito que, passados doze meses das eleições de 1989, a sociedade brasileira já descobriu que a política neoliberal do presidente Collor é um fracasso, na medida em que não resolveu nenhum dos problemas que ele prometeu resolver. Não resolveu, por exemplo, o problema da inflação. Embora tenha reduzido a inflação de 84 para 20% ao mês, nós sabemos que essa redução teve um custo alto, que a sociedade tem pago com o desemprego, a política agrícola, o salário, a saúde, a educação. Porque até agora não existe nenhuma iniciativa do governo para resolver esses problemas cruciais. Problemas que já eram cruciais, é bom que se diga, antes das eleições. Acredito que os setores da sociedade que sustentam hoje o Plano Collor o fazem porque estão ganhando com ele ou porque têm medo que a oposição ao plano fortaleça os partidos como o PT, que ao longo desses doze meses vêm questionando a política do governo. A situação atual exige que o PT apresente com urgência uma proposta que incremente o desenvolvimento do país, a distribuição de renda, que ressarça os trabalhadores dos prejuízos que tiveram com a política do Collor de Mello. Que coloque a sociedade brasileira em um patamar de cidadania mínimo. O PT vai se fortalecer se tiver competência e capacidade de apresentar essa alternativa e se diferenciar dos outros partidos que, com a falência do plano, começam a espernear. O PT precisa mostrar para a sociedade que é possível reduzir a inflação criando empregos, com um outro modelo de desenvolvimento.

Eu acho que 1991 será ainda pior que 1990. Não vejo nenhuma perspectiva de melhoria sob o governo Collor, porque ele perdeu o respeito da opinião pública e do Congresso Nacional. Uma coisa importante é que toda e qualquer proposta do Partido dos Trabalhadores tem que ser acompanhada por um trabalho muito sério de organização do movimento popular. É importante deixar claro que apenas a luta institucional deixa o PT muito vulnerável. A chance da nossa proposta alternativa está ligada à capacidade de o partido organizar o movimento social, o movimento sindical, e também à capacidade de elaborarmos alianças políticas com os chamados partidos progressistas para enfrentar o governo central. Eu não estou muito otimista em relação aos governos estaduais - eles não entrarão nesta briga porque todos estarão, no fundo, subordinados ao governo federal. Mas a sociedade ainda tem mecanismos de defesa; ela não tem somente uma bala, tem a cartucheira toda para ser utilizada. O negócio é ir para a porta da fábrica para chamar os trabalhadores para a luta, ir para a rua mostrar que é possível nós termos outro tipo de política econômica, outro tipo de desenvolvimento, outro tipo de sociedade.

Você acha que foi correta a sua decisão de não concorrer à Câmara Federal? Essa atitude não contribui para piorar o resultado eleitoral do PT? Não permitiu que o Collor e o Quércia se fortalecessem?
Eu tenho recebido de alguns setores da sociedade palavras de elogio ao meu comportamento, à minha decisão. Eu continuo convencido de que a minha posição está correta. No meu caso, para enfrentar um governo como o do Collor, é melhor estar fora do Congresso Nacional, que tornaria boa parte do meu tempo, e atuar na rua, tentando organizar este povo. O Congresso Nacional é um lugar onde trabalham quinhentas pessoas e ninguém parece ver que há diferenças entre elas - não se critica este ou aquele político, mas a instituição como um todo. Acho que, depois de ter acompanhado os trabalhos parlamentares de perto, posso contribuir para que isto mude e a instituição ganhe o respeito da opinião pública, como instrumento da democracia. Priorizo o compromisso com a reestruturação do PT, porque apesar de ter crescido muito eleitoralmente, ele não cresceu do ponto de vista da sua organização.

Eu acho que é preciso a gente voltar a acreditar naquele partido do núcleo de base, naquele partido que propunha uma participação política mais efetiva da classe trabalhadora. Eu aposto muito no Governo Paralelo, porque ele poderá mostrar para a sociedade o outro lado da moeda. Poderá mostrar os seus projetos e as contradições que existem na política oficial. Isso só será possível se houver dedicação quase que exclusiva de minha parte. Acredito que o fato de eu não ter me candidatado vai ser bom para o PT, a médio prazo. Primeiro porque não atrapalhou nosso desempenho nas eleições aqui em São Paulo. Se eu tivesse concorrido, poderíamos ter eleito um deputado federal a mais, no máximo. Acho que isso é pouco diante da grandeza do PT. Não podemos deixar que o eleitoralismo tome conta do partido. Nós percebemos, nessas eleições, que em alguns lugares o comportamento de certos companheiros na disputa maluca por um cargo não se diferenciou da atitude de membros de outros partidos, tanto nos conflitos internos quanto no tipo de campanha. Eu quero ver se ajudo a criar dentro do PT a idéia de que quem quiser ajudar a construí-lo não precisa estar nessa briga maluca pelo poder. Eu posso contribuir sem ser deputado, eu posso contribuir sem ser dirigente. Basta que eu acredite numa coisa chamada organização dos trabalhadores. Não nasci deputado, vivi até os 41 anos de idade sem ser deputado. Ocupar uma vaga na Câmara foi, para mim, uma coisa passageira. Eu queria era ser constituinte, e teria acertado mais se tivesse desistido em 88, quando foi promulgada a Constituição.

Outro assunto polêmico: a questão do 2º turno das eleições de 91. Em muitos estados o PT resolveu não apoiar nenhum dos candidatos que estavam concorrendo. Em São Paulo, inclusive, houve a indicação do voto nulo. No entanto, ao que parece, a maioria do eleitorado do PT, inclusive grande parte dos filiados, não seguiu esta orientação e votou em Fleury para derrotar Maluf. Não há um problema de representatividade do encontro que resolveu essa posição?
Se nós formos analisar sob a ótica da grande imprensa, a gente poderia falar: puxa vida, a direção do partido e os delegados tomaram uma decisão que não foi cumprida pela base, portanto a direção e o encontro não têm representatividade. Mas a coisa não é simples assim, não.

O papel de dirigente nos leva a assumir determinadas atitudes. Quando eu era dirigente sindical, nem sempre as propostas que a diretoria defendia eram aprovadas na porta da fábrica. Eu cansei de levar propostas para a assembléia e ouvir: "Não, não é isso que nós queremos. Nós queremos outra coisa." E isso não significava uma diminuição do papel do dirigente. Muito pelo contrário, o dirigente saía engrandecido. Por quê? Porque ele teve a coragem de dizer para a massa: "Olha, eu penso tal coisa." E a humildade de colocar a sua proposta, sem medo de ser derrotado. Ora, no PT aconteceu exatamente o mesmo. A direção do partido e o encontro tiveram a coragem de dizer o seguinte: "Nenhum dos dois candidatos atende minimamente aos interesses da classe trabalhadora, portanto nós não queremos assumir o risco de aconselhar o voto neste ou naquele. Nós queremos dizer para a sociedade de São Paulo e de outros estados que a melhor posição, neste instante, é votar nulo." Essa foi uma decisão moral. Ninguém tem o controle dos votos, o voto é secreto. Mas acreditamos que boa parte dos petistas cumpriu a determinação da direção. Embora muitos integrantes e simpatizantes do partido tenham votado no Fleury, eu não condeno o encontro nem a direção. Não adianta ninguém vir me dizer que o encontro não era representativo, porque o mesmo tipo de encontro indicou o Lula para presidente, o Suplicy para senador e a Erundina para prefeita. Foi acertada a posição do partido. Nós cometemos apenas um equívoco: a direção estadual, logo na primeira semana após o 1º turno, ir a público falar em voto nulo. Nós poderíamos ter dito que estávamos abrindo um processo de debates e propor uma prévia. Por ocasião da escolha da Luiza Erundina, ficou provada a importância da prévia. O partido poderia ter feito vídeos com os principais dirigentes expressando suas opiniões - esses vídeos iriam para os diretórios, e aí as pessoas votariam livremente.

Ou seja, seria uma forma de envolver, quem sabe, 30 mil pessoas na decisão. É possível que se tivéssemos realizado uma prévia entre o pessoal mais politizado, teria dado voto nulo. E outra entre a massa de filiados ao PT, de não militantes, poderia ter dado Fleury. Porque são públicos diferentes, com compreensões políticas diferentes. Quando eu falo em prévia, em instante algum questiono a decisão do partido. Nem Maluf nem Fleury mereciam o voto dos petistas. Agora, se o Maluf for colocado como paradigma, qualquer um que venha a se candidatar será menos ruim que ele. Mas não é esse o paradigma do PT. Nós apresentamos o candidato Plínio de Arruda Sampaio, que era o melhor, o mais honesto, o mais idôneo, o de maior capacidade intelectual. O povo não quis. O PT não tem, portanto, nenhuma responsabilidade em relação aos outros candidatos. Ou o partido age assim para educar a população, ou vira um maria-vai-com-as-outras. Precisamos, também no 1º Congresso do PT, discutir o nosso conceito de democracia. Porque tem algumas pessoas que dizem o seguinte: "O meu direito de votar é coisa de foro íntimo. Então eu voto em quem bem entendo." A pergunta que faço é a seguinte: onde entra o partido? Acredito que a liberdade individual termina quando prevalece sobre ela a vontade coletiva. O que é preciso garantir é que a liberdade coletiva seja deliberada com a maior democracia, com o maior debate, com a maior participação, com a maior transparência possível. Tem companheiros que falam tanto na sua própria pessoa que não vêem que é o PT que elege as pessoas. Então o mandato, na verdade, é do partido. E ninguém pode tripudiar o partido como alguns tripudiam. Com tranquilidade, no 1º Congresso, temos que discutir tudo isso. Precisamos inclusive refazer a nossa Carta Eleitoral. Quem assinar essa carta e se eleger vai ser obrigado a cumprir o que ela determinar.

Em São Paulo houve figuras expressivas do partido que não acataram a orientação do encontro. A grande imprensa está noticiando a punição que alguns diretórios municipais estão discutindo. Você acha que essas pessoas devem ser punidas?
Eu acho que, antes do Encontro Estadual, todo e qualquer petista tem o direito de expressar a sua opinião e defendê-la publicamente. Mas depois que o partido votou e adotou uma posição, todos nós estamos obrigados a defender a resolução aprovada.

Também em público?
Também. Porque se eu começasse a falar que, apesar de o partido ter tomado tal decisão, eu ainda achava melhor aquela outra, o PT não precisaria mais tomar decisão alguma, o negócio ficaria na base do cada um por si, não precisaria existir partido. Acho que não é apenas o caso de punir pura e simplesmente os que desacatam as resoluções, mas de estabelecer um canal de discussão com essas pessoas, a fim de educá-las para a convivência democrática interna. Estou defendendo a idéia de que a direção nacional convoque um encontro com os prefeitos, para se estabelecer uma política de relação entre o Poder Executivo e o partido. Antes de falar em punição, é preciso dar todo direito de resposta à pessoa que não acatou a decisão do encontro. Se a sua defesa não for suficiente e o partido chegar à conclusão que foi cometido um desvio, então ela deverá sofrer sanções. Não vejo problema em expulsar alguém do partido, até porque ninguém é obrigado a ficar no PT.

Você acha que os prefeitos do PT têm contribuído para o fortalecimento do Partido? Têm correspondido à expectativa?
Eu poderia enumerar alguns dos problemas que as prefeituras tiveram. Nós tomamos posse em 12 de janeiro de 1989, com uma grande maioria de pessoas inexperientes assumindo cargos administrativos. Pela primeira vez, um partido que nasceu e se fortaleceu fazendo oposição assumiu a máquina do Poder Executivo. Só isso representa uma dificuldade enorme.

Depois a gente teve duas eleições seguidas, que consumiram quase que 50% do tempo das nossas administrações, porque, por menos que se queira a gente se envolve no processo eleitoral. Os nossos adversários aproveitaram para abrir uma pesada guerra ideológica contra nós. Nós começamos a ser cobrados por problemas que há séculos existem em São Paulo, impossíveis de serem resolvidos de uma hora para outra: começamos a ser culpados pelo transporte, pela saúde etc.

Eu acho que as nossas administrações estão no caminho certo. Hoje ninguém pode acusar nenhuma prefeitura nossa de corrupção. De certa forma, os nossos prefeitos conseguiram moralizar a máquina administrativa. Agora, temos muito o que aprender. Nós ainda não criamos os Conselhos Populares e nem aprendemos a estabelecer uma relação democrática entre administração e partido. Nós ainda não criamos um grupo de trabalho para manter canais de comunicação com o movimento social, para evitar inclusive desacertos entre a administração do PT e o movimento sindical. 1991 deve ser o ano das administrações do PT. Olívio Dutra, por exemplo, vai ter um desempenho extraordinário em Porto Alegre, porque acabou o problema de dívida da prefeitura e ele vai poder começar a investir. Aqui em São Paulo a gente começa a ver centenas de obras importantes para a sociedade. Nós temos que ter preocupações é no campo político. É preciso estabelecer urgentemente uma relação melhor entre a nossa administração e o partido. Senão tanto um quanto o outro ficarão isolados e isso não leva a lugar nenhum. Alguns prefeitos começaram a fazer o seguinte discurso: "Eu não sou prefeito do PT, sou prefeito da minha cidade e, portanto, tenho que governar para todos." Lógico que isso é verdade. Mas governar com base no quê? Com base no programa feito pelo PT. Porque foi o PT que elegeu a pessoa com o seu programa. Isso não significa que o partido vá interferir na máquina administrativa, nem implica que o partido vá discutir a demissão desse ou daquele funcionário. Esse não é o papel do partido. Seu papel é definir as prioridades, e o da prefeitura é tentar levar essas propostas para a sociedade.

Queremos que a cidade seja governada a partir de um projeto do PT. As prefeituras são máquinas podres, cheias de vícios. Aos poucos nossos prefeitos começam a perceber que nem tudo aquilo que eles propuseram pode ser executado de modo completo. E aí o partido passa a ser inconveniente. Porque o PT continua com seu próprio discurso. Porque a militância que ajudou a elegê-los continua a exigir aquelas melhoras imediatas que a gente prometeu durante a campanha eleitoral. Então, de um lado o partido cobra e, de outro, as prefeituras têm que justificar o não cumprimento de certos objetivos, o que resulta em um distanciamento. Nós aí começamos a ouvir: "O PT atrapalha", "A direção atrapalha". Mas na verdade não é a direção que atrapalha. Se os eleitos se lembrassem do discurso que faziam para se eleger, perceberiam que o partido não está fazendo nada mais do que cobrar coerência deles. O que eles precisam é, ao invés de tentar romper com o PT, procurar estabelecer uma política de convivência para resolver esse impasse. Até para termos coragem de declarar para a opinião pública que tais e tais coisas não podem ser feitas agora.

O partido deve ser uma espécie de consciência crítica das nossas administrações. Isso não significa fazer crítica pela crítica, mas discutir semanalmente, quinzenalmente com o prefeito as linhas gerais do programa de governo, organizar a montagem dos Conselhos Populares, dinamizar a participação da sociedade na Prefeitura. Afinal de contas, nós viemos ou não viemos para renovar? Nós viemos ou não para mudar radicalmente a forma de administração e o funcionamento da máquina? Não basta dizer "eu estou fazendo esta ou aquela obra". Um governo não é avaliado apenas pela quantidade de poços artesianos, asfalto e pontes que ele faz. Um governo também é avaliado pela sua relação com o povo. Nós não podemos terminar o nosso mandato sem criar os Conselhos Populares. É importante ir a Janduís para ver como eles estão se organizando, porque lá existem conselhos por rua, enquanto aqui nós sequer conseguimos montar um da cidade. Algo está errado no PT, na administração, ou nos dois. A única coisa que não podemos dizer é que o povo está errado.

Há uma certa distância entre o pessoal que milita no movimento sindical e o que milita no PT. Recentemente, a CUT adotou uma posição contrária a do partido e resolveu participar do chamado entendimento nacional. Como você vê isso?
Eu acho que em certos momentos surgirão diferenças, mesmo porque a CUT não é do PT. A CUT é mais ampla que o partido. Agora a CUT vai abrigar companheiros do PCdoB e do PCB. Nós queremos que a Central seja a representante da classe trabalhadora brasileira como um todo. Cada vez mais, é importante criar espaço para que companheiros do PT ligados à direção executiva da CUT possam participar das reuniões do diretório do partido com direito a voz ativa, para que levem para a CUT propostas discutidas conosco. Não está havendo este relacionamento, existem dificuldades em estabelecê-lo. No congresso do PT temos que definir isto com clareza. No que diz respeito ao entendimento nacional, isso não aconteceu; quando o PT tentou discutir, a participação da Central já estava encaminhada. Mas acredito que houve uma mudança importante no comportamento da CUT: começam a ficar claras para a sociedade quais as propostas que a Central tem. A CUT foi a um encontro com os empresários, e pela proposta feita por eles e pelo Antônio Medeiros ficou claro que o pacto é uma farsa, o que eles querem é uma capitulação da classe trabalhadora diante do governo e da crise que vivemos. A CUT fez críticas, apresentou outro documento, e eu acho que esse foi um papel importante que ela cumpriu.

Você falou sobre a importância do Governo Paralelo. Na verdade, ele tem enfrentado muitas dificuldades para se implantar, para demonstrar a que veio.
Eu estou feliz porque essa iniciativa começa a despertar uma curiosidade muito grande nos membros do PT. O pessoal espera muito do Governo Paralelo. Mas o PT atravessa, como todo o Brasil, uma crise financeira sem precedentes. Não há semana em que eu não tenha que correr atrás de empréstimos para o partido. Isso repercute no Governo Paralelo: a estrutura dele é mínima, nós temos só quatro funcionários e não temos condições de dar um melhor atendimento aos coordenadores dos grupos de trabalho. Além disso, ele foi implantado no dia 15 de julho do ano passado, exatamente no auge da campanha eleitoral, e o Lula, que era o coordenador geral e que tinha obrigação de estar permanentemente fazendo as coisas andarem, estava fazendo campanha para os candidatos a governador. Mas a partir de agora não há mais desculpas.

Nós precisamos elaborar os projetos setoriais e fazer um acompanhamento mais sistemático da política governamental. Temos que ser o contraponto ao governo Collor. Acredito piamente que até a metade de 1991 o Governo Paralelo vai ser consolidado. Ele vai se tornar uma alternativa concreta para a sociedade brasileira, uma fonte de referências. A minha intenção é viajar para as capitais, fazer debates nas universidades, no movimento sindical, lançar projetos populares de política agrícola, abastecimento e reforma agrária no país inteiro. Ou seja, a sociedade vai perceber que tem alguém no Brasil que além do discurso apresenta coisas concretas. Vamos precisar utilizar todo o potencial do movimento social e do PT para implantar o Governo Paralelo de verdade. É necessário, também, conversar com outras forças políticas para saber qual a disposição delas de participar do Governo Paralelo.

As dificuldades de instauração do Governo Paralelo se resumem, então, na sua falta de disponibilidade na época em que foi criado e nos problemas financeiros e de infra-estrutura?
Olha, eu acho que há outras coisas. Tenho a obrigação de transformar essas pessoas que fazem parte do Governo Paralelo em agentes políticos. Porque elas são figuras extraordinárias do movimento social, do movimento intelectual, mas não têm o hábito de fazer política. E como a coisa ainda não emplacou, as pessoas não dão prioridade ao Governo Paralelo. Acredito, porém, que esse quadro vai mudar em breve.

Qual o papel internacional do PT? Nos últimos anos, principalmente, as iniciativas de política exterior do PT têm aumentado.
Eu sou suspeito para falar dessa questão, porque sou muito presunçoso: acho que o Partido dos Trabalhadores é a grande novidade política da década de 80 no mundo inteiro. O sindicato polonês Solidariedade, antes dos desvios, no começo dos anos 80, também foi uma novidade política que despertou curiosidade, mas não se compara ao PT. Às vezes eu brincava com um companheiro da Alemanha Oriental: "Se vocês quiserem, a gente pode mandar dois ou três quadros do PT para ensinar aos alemães orientais como criar um partido democrático." Porque é verdade; poucas vezes na história política de um país houve um partido com as características do PT. Um partido capaz de juntar tantos pensamentos diferentes, capaz de juntar comunistas com cristãos, companheiros que defendem o modelo cubano com companheiros que defendem o modelo não sei de onde. Como o PT é, na verdade, um grande espaço público, ele acabou nos educando para a convivência democrática. Na Europa Ocidental, no Leste Europeu, há uma curiosidade enorme em conhecer o PT. Mas nós não sabemos trabalhar corretamente a nossa imagem no exterior. O PT deveria mandar regularmente informações sobre o partido para todo o mundo, a fim de que as pessoas acompanhassem mais de perto a nossa dinâmica. Por exemplo, o PT derrubou o Muro de Berlim em 1980, quando nasceu. Já naquela época a gente dizia claramente o seguinte: não é possível criar um partido que não permita o direito de organização sindical, o direito de greve, o pluralismo político, que não envolva, a sociedade nas discussões. Esta posição credencia o PT para discutir os problemas da esquerda internacional. Apesar disso, temos uma atitude humilde demais diante de partidos de outros países. Talvez isso seja resquício do colonialismo... O fato de não sermos ligados a nenhuma Internacional é outra coisa importante. Manter relações com as forças democráticas de todos os continentes dá uma credibilidade muito grande. O partido ainda não tem dimensão da importância da secretaria de Relações Internacionais, da necessidade de equipá-la, de fortalecê-la. Na medida em que saia mais para o mundo, o PT vai ter condição de ocupar um espaço sem precedentes na história política brasileira.

Como você avalia hoje as várias correntes de esquerda na América Latina? Quem seriam nossos parceiros principais?
É difícil dizer, porque a América Latina tem hoje correntes muito heterogêneas. Existem cerca de treze partidos de esquerda na Argentina. Fica difícil estabelecer qual o aliado preferencial. Nós temos, por exemplo, uma relação privilegiada, fraterna até, com a Frente Ampla no Uruguai, com a Frente Sandinista, com a Frente Farabundo Martí. No Peru nós temos relações com a Esquerda Unida e com outros partidos. Na Argentina, no México, na Venezuela, nossa política é manter relações com o maior número possível de forças de esquerda. Isso dá uma credibilidade muito grande para nós, porque não trancamos a nossa porta e possibilitamos a unificação da esquerda, do movimento sindical latino-americano.

Hoje, quais são os desafios da esquerda no panorama internacional?
A esquerda está perplexa. Depois da queda do Muro de Berlim e da perestroika, ela está refletindo sobre seus erros. Muitos demoraram a compreender que o povo queria mudanças efetivas. O socialismo se transformou em uma coisa burocrática, rançosa, que não dava respostas à modernidade, à produtividade, às questões democráticas. Como a esquerda não soube propor as mudanças, a direita soube capitalizar e tirar proveito de mudanças que poderiam ter sido realizadas por parte da própria esquerda. No Brasil e na América Latina, o momento é grave. Porque muitos partidos políticos eram, na verdade, satélites das agremiações do Leste Europeu, do PC soviético. A esquerda deve aprender a lição de que é a massa que deve elaborar o seu projeto de socialismo; vai ter que aprender que não é possível criar um partido de vanguarda se a própria massa não se transformar em vanguarda.

Você está contente com a vitória de Lech Walesa na Polônia?
É muito difícil ter uma opinião sem conhecer o quadro efetivo do contexto polonês. Eu não quero fazer um julgamento precipitado, porém é bem possível que o Walesa não tenha hoje a mesma posição de defesa das aspirações e conquistas da classe trabalhadora. É verdade que na Polônia não existia socialismo, e sim uma burocracia encastelada no poder, mas ficar propondo economia de mercado, ficar propondo a volta do capitalismo como solução para o problema da Polônia... Acho que o Walesa precisaria andar um pouco pelo mundo para conhecer não o capitalismo europeu, mas o da África, da Ásia, da América Latina para ele perceber que o capitalismo não é a modernidade bonita da Europa, é a miséria que nós estamos vivendo aqui no Brasil. De qualquer forma, ele é um trabalhador que conseguiu chegar lá. Eu só espero que tenha serenidade e maturidade suficientes para ajudar a melhorar a situação do povo polonês.

Em 1991, vamos realizar o 1º Congresso do PT e um dos temas centrais do debate é a questão do Socialismo e a estratégia para alcançá-lo. Fale um pouco sobre isso.
A minha opinião é que nesse congresso nós devemos ser muito mais pragmáticos do que fomos até agora, pois o PT tem a perspectiva de chegar ao governo em 1994. Ou seja, acho que precisamos formular essa "utopia" a partir de bases concretas, a partir do acúmulo de experiência de dez anos. Precisamos pensar em um projeto de socialismo para a nossa conjuntura. Por isso, é necessário discutirmos esta questão de forma madura, com a maior profundidade possível. É chegado o momento de as correntes pararem de tentar impor esta ou aquela visão de socialismo e pensarem como deve ser o socialismo do PT, um partido que governa cidades importantes, que tem chance de governar estados importantes, que pode ganhar a Presidência da República.

O PT vai ter que deixar de só formular propostas para um futuro muito distante e apresentar soluções para o presente. É necessário envolver setores da sociedade que não estão no partido na discussão sobre o socialismo: o movimento sindical, o movimento popular. Porque senão vira uma coisa um pouco vanguardista e essa coisa vanguardista normalmente não é entendida pela massa. É preciso, repito, envolver a massa na elaboração desse projeto. O congresso pode realizar essa tarefa e acho que vai ser um acontecimento extraordinário porque vai possibilitar ao partido a discussão mais ampla de temas importantes

Como você vê a situação atual do PT?
Para um partido com dez anos de existência, o PT está até maduro demais. No entanto, temos ainda uma espécie de cultura antialianças, antiacordos políticos, que não consegue diferenciar determinados níveis de discussão. Na política de alianças, por exemplo, o PT precisa estar sempre aberto e encará-la como uma questão tática que você adota de acordo com a conjuntura, sem precisar abrir mão dos princípios do partido e do objetivo de ganhar o poder. Embora a gente tenha um discurso basista, é preciso aprimorar a participação da base, seja nos núcleos, seja nos movimentos sociais - muita gente utiliza o discurso basista apenas para dar sustentação ao seu próprio discurso. A base tem participado pouco das nossas decisões porque os núcleos não funcionam corretamente e muitos setores organizados da sociedade têm uma dinâmica que não permite a participação mais efetiva na vida partidária. Nós ainda não conseguimos, como já disse, criar os Conselhos Populares, embora estejamos governando há dois anos cidades muito importantes. Fizemos uma campanha falando no poder popular, na participação popular, e até agora muito pouco foi feito neste sentido. Como a massa pode participar? Justamente através desses conselhos e da colaboração do movimento sindical com as instâncias do partido. Precisamos superar essas distorções e dificuldades, pois a grandeza do PT não pode ser medida apenas pelo seu desempenho eleitoral, mas pela sua inserção no movimento social, pela sua capacidade de organização e formação política.

Paulo Vannuchi é jornalista.

João Machado é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.