Nacional

É difícil imaginar que se possa consolidar a democracia no Brasil e mesmo criar mecanismos de participação popular sem que se introduzam modificações profundas na dinâmica que gera as distorções apontadas aqui. Daí a necessidade de partidos como o PT proporem modificações na Constituição

É muito difícil compreender o recente fenômeno de descrédito popular em torno do funcionamento das instituições parlamentares ( e mesmo da própria política) no Brasil, sem associar isso ao déficit histórico de representação verificado na experiência republicana brasileira, de modo particular com o funcionamento da representação proporcional a partir de 1946. A literatura existente sobre o assunto filia-se a distintas matrizes interpretativas, mas apesar disso estabeleceu-se, nos últimos anos, um razoável consenso crítico entre os principais autores em torno de algumas questões centrais: a amplitude do direito de voto, a estrutura de composição de representação política e o sistema eleitoral strictu senso.

No primeiro caso, a crítica voltou-se para a insuficiente amplitude do direito de voto no país, o que historicamente acentuou a tendência à oligarquização do sistema político; e, em seguida, tratou também do grau com que esse direito é efetivamente assegurado na dinâmica de funcionamento do sistema eleitoral. De fato, desde os seus primórdios, o regime republicano brasileiro impôs uma série de limitações ao reconhecimento do direito formal de pertencer à comunidade política, de modo particular no que se refere à restrição do direito de voto aos analfabetos. É certo que algumas restrições originárias caíram ao longo da história republicana (como no caso da limitação do sufrágio feminino até 1930), mas mesmo na Constituição liberal de 1946, apenas os alfabetizados com dezoito anos ou mais gozavam do direito de eleger seus representantes e, assim, de influir na formação de governos. Naturalmente, para um país onde o analfabetismo está fortemente associado com enormes desigualdades sociais e regionais, esta restrição constitucional implicou a marginalização do processo eleitoral de mais de 1/3 da população por um largo período de tempo. Durante a década de 70 as taxas de analfabetismo decresceram, mas em 1980 ainda havia 27% da população adulta fora do universo dos eleitores e portanto à margem da cidadania política plena. Só a partir de 1985 esse quadro começou a se alterar, mas ainda em sentido limitado: naquele ano o Congresso Nacional aprovou uma emenda constitucional garantindo o direito de voto, mas o não de ser votado, aos analfabetos de dezoito ou mais anos de idade. Mais tarde, em 1988, o Congresso Constituinte também incluiu, no novo texto constitucional, o direito de voto facultativo aos brasileiros de dezesseis ou mais anos de idade.

Nas eleições presidenciais de 1989 votaram cerca de  82 milhões de pessoas de um total de pouco mais de 150 milhões de habitantes. Trata-se de um avanço considerável se esse índice for comparado com as taxas de países de democracia consolidada e com o mesmo índice do país no final de século passado, quando se introduziu o regime republicano.

O segundo aspecto relativo ao funcionamento do sistema representativo refere-se à estrutura de composição da representação política e alude a uma questão mais de fundo. Trata-se dos efeitos geradores de profunda distorção do princípio da representação proporcional e que decorrem das regras de funcionamento do sistema introduzido pela Constituição de 1946 ( de modo  particular, o ordenamento decorrente do artigo 58 daquele texto constitucional). Desde o 2º pós-guerra, o sistema proporcional que vigora no Brasil consagrou uma alocação desigual de cadeiras na Câmara Federal, de tal modo que, na prática, a representação de alguns estados consolidou um peso político muito maior do que a de outros.

Evidentemente, esse desbalanceamento afeta o equilíbrio que, supostamente, o princípio de representação deveria implicar. Mas o problema não se resume só a este aspecto: tradicionalmente, tem-se reservado uma enorme representação aos pequenos estados e territórios do Norte e do Nordeste, em claro contraste com a sub-representação dos estados maiores do Centro-Sul. Como já se disse, “ao aumentar artificialmente a representação de uma cultura política tradicional, atrasada, dominada pelos líderes locais, freqüentemente latifundistas, proprietários rurais, coronéis de todos os tipos, ou pessoas de sua escolha ou confiança; o sistema eleitoral terminou por prejudicar a maioria da população dessas áreas.” e do resto do país e, desta forma, institucionalizou um veto político-eleitoral antecipado a qualquer política de reformas econômico-sociais. O referido artigo  58 da Constituição de 1946 superdimensionava a representação das oligarquias mais atrasadas no Congresso e subdimensionava os estados mais populosos, como São Paulo, onde sabidamente se concentram as forças mais modernas e progressistas. Segue-se da dinâmica anterior que o quociente eleitoral tem sido bastante mais baixo nos estados menores e mais atrasados. De 1950 a 1970, por exemplo, o número de votos necessários para se eleger um deputado em Alagoas foi menos de um terço do número exigido em São Paulo.

Outro mecanismo que acentua a distorção da representação corresponde ao princípio que atribui, independentemente da população e do número  de eleitores, o número fixo de três senadores por estado. Aqui, a tendência à oligarquização  das instituições de representação foi levada ao extremo, como indica a comparação entre os casos do Acre e do estado de São Paulo: um voto dos eleitores acreanos, pesa tanto, para fins de resultado eleitoral, quanto o de oitenta a cem paulistas. “Deixando-se de lado os extremos, o número de votos necessários para eleger um senador nos seis estados mais desenvolvidos do país – Guanabara, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul – era, em 1962, três vezes e mio maior do que nos restantes. Com 57% dos votos válidos, estes seis estados detinham apena 27% dos senadores”, como lembrou recentemente Bolivar Lamounier. Ou seja, o sistema eleitoral brasileiro atribuía aos estados mais atrasados e de maior peso oligárquico o controle total e absoluto do Senado.

Estas distorções do princípio da representação são explicadas por argumentos que alguns autores designaram como a teoria da dupla erosão do sistema político brasileiro: a erosão da legitimidade do sistema de representação e a erosão de sua eficácia. No primeiro caso, o déficit de legitimidade do sistema – que acaba por ser espraiar  para o conjunto do sistema político – decorre do fato de que o sistema eleitoral institucionaliza distorções na representação, não apenas em detrimento das forças consideradas dinâmicas, ou seja, do Brasil moderno, mas comprometendo até mesmo as aspirações por mudanças estruturais dos setores mais pobres da população dos próprios estados mais atrasados.

O resultado é um sistema de representação que, historicamente, tem estado afastado das demandas por mudanças estruturais encontradas na sociedade. Daí decorre a sua carência crônica de legitimidade. Quanto a erosão de eficácia, o argumento se refere à fragmentação ou à não-aglutinação de forças políticas relevantes, decorrentes da imensa capacidade de concentração de recursos que os setores tradicionais logram, dessa maneira, conservar em suas mãos, tornando, portanto, bastante instáveis e imprevisíveis os alinhamentos políticos-parlamentares que atuam no Congresso Nacional. Assim, na tradição política brasileira, a representação proporcional tende a ser a expressão de uma excessiva indisciplina partidária, e mesmo da proliferação de alianças políticas que, como se sabe, são muitas vezes celebradas ao completo arrepio dos programas partidários. Mesmo reconhecendo-se que estes fatores não são seus únicos causadores, o argumento chama a atenção para o fato de que, em última análise, esse quadro de distorções está na raiz do déficit de estabilidade e de permanência encontrado no sistema político como um todos. O que, de outra parte, aponta para o sentido profundo da crise política do país na última década.

A terceira questão sobre as dificuldades do funcionamento da democracia representativa no país é relativa aos mecanismos mediante os quais se opera a conversão  dos votos dos cidadãos em uma determinada distribuição de cargos legislativos, ou seja, o sistema eleitoral strictu senso. O sistema de representação proporcional brasileiro baseia-se nos quocientes eleitoral e partidário para fazer a distribuição  de cadeira entre os partidos, e no chamado método das maiores médias para distribuir as sobras de votos. O quociente eleitoral se determina pela divisão do número de votos válidos (inclusive os votos em branco) pelo número de cadeiras que legalmente assegurado para cada estado; o quociente partidário resulta da divisão do número de votos de cada partido pelo quociente eleitoral. Tradicionalmente, a legislação eleitoral determina ainda que as sobras de votos (resultantes dos cálculos indicados antes) se distribuem somente entre os partidos que tiverem alcançado o quociente eleitoral, obedecendo-se os seguintes procedimentos: primeiro o número de votos de cada partido é dividido pelo número de cadeiras que o partido já obteve mais um, sendo que a cadeira adicional será alocada ao partido que tiver maior média. A operação repete-se para a distribuição das cadeiras que ainda restarem. O problema deste sistema é que ele não assegura a proporcionalidade, na medida em que as cadeiras que são alocadas aos partidos não são necessariamente proporcionais aos votos que obtiveram: há um viés a favor dos grandes partidos menores contra os pequenos. Isto se deve ao fato dos partidos menores (aqueles que não atingiram o  quociente eleitoral) serem excluídos da distribuição das sobras.

Portanto, o descrédito popular que atinge atualmente o Poder Legislativo no Brasil deve-se a inúmeros fatores. Mas é fora de dúvida que o conjunto das distorções indicadas antes questiona profundamente o próprio princípio da representação proporcional. Em tese, a composição adequada do Congresso Nacional seria aquela que lograsse refletir de maneira exatamente proporcional os volumes de população de cada estado, pelo menos na Câmara dos Deputados, em vista de que a representação federativa deveria ser contemplada através da composição do Senado, no qual todos os estados têm o mesmo peso (três representantes), independentemente de seu tamanho ou da sua função econômico-social. No entanto,  desde a introdução da legislação eleitoral pós-30 e, em particular, após o ordenamento expresso na Constituição de 1946, tem prevalecido a lógica do que se chamou o equilíbrio federativo ao lado do princípio de representação popular, Ou seja, ainda que a doutrina do sistema representativo atribua à Câmara dos Deputados a função de representar a cidadania como um todo, com todas as suas diferenciações sociais, ideológicas ou mesmo regionais, na prática há uma enorme discrepância entre esta doutrina e a forma específica como a sociedade acaba sendo representada no poder legislativo brasileiro.

Em defesa do chamado equilíbrio federativo, os defensores do sistema proporcional argumentam lembrando que bancadas demasiadamente exíguas (nos casos dos territórios e estados menores) não teriam condições de defender, na Câmara, os interesses legítimos de suas regiões: “então elas o farão aumentando o conservadorismo de que esses estados são frequentemente acusados, visto que um núcleo muito reduzido de cadeiras provavelmente resultará em virtual monopólio da representação por parte das respectivas oligarquias”, como lembrou Lamounier. O problema, portanto, parece ser escolher entre o que se considera melhor ou pior para os objetivos do sistema: a manter-se a lógica do chamado equilíbrio federativo, reforçam-se as condições que geram um desequilíbrio global da representação, acentuando o peso das oligarquias locais no plano do poder legislativo; a adotarem-se medidas corretoras no sentido indicado antes, corre-se, sem dúvida, o risco de, aplicando-se um critério aritmético rigoroso de proporcionalidade em relação à população de cada estado, o Congresso Nacional adquirir dimensões mastodônticas (cerca de  800 deputados, se a relação fosse de um representante para cada 100 mil eleitores), além dos estados muito pequenos serem representados apenas por um ou dois deputados.O pior, entretanto, é o que fez o Congresso Constituinte de 1988: preservou a tradição anterior, o que na prática compromete gravemente o próprio princípio da representação.

Por outro lado, diante do conjunto de dificuldades do funcionamento do sistema de representação proporcional, os críticos têm sido consensuais em apontar, basicamente, para três objetivos principais a serem atingidos com as mudanças que deveriam ser introduzidas no sistema: Em primeiro lugar, trata-se de criar as condições que assegurem uma representação mais autêntica entre os partidos políticos. Em segundo lugar, trata-se de tornar mais nítida a vinculação entre os eleitores e seu representante; em terceiro, objetiva-se reduzir o número de conflitos internos que o atual sistema acaba por gerar nos partidos políticos, tendo em vista a conveniência de fortalecê-los e de torná-los mais coesos, um objetivo estratégico no processo de consolidação da democracia. A hipótese mais freqüente que tem se colocado como alternativa para fazer frente a essa exigência refere-se à adoção do sistema distrital de voto. Boa parte dos seus defensores enfatiza que a possibilidade de se estabelecer uma relação, digamos, mais densa entre representados e representantes depende de se poder superar a relação abstrata que o sistema atual implica, cujos supostos parece que dificilmente se verificam em nossa experiência: a existência de eleitores livres, politizados, capazes de identificar claramente, no espectro de partidos políticos existentes, os seus interesses. Ao mesmo tempo, argumenta-se, o voto distrital , ao aproximar mais o eleitor do titular de sua representação, permitiria que ele articulasse de modo mais consistente os interesses locais organizados, tornando-o, dessa forma, mais passível de pressão por parte do eleitorado. Em decorrência, a organização eleitoral distrital também tenderia a reduzir os custos de participação dos cidadãos que, embora atomizados, teriam melhores chances de adquirir maior volume de informações sobre os candidatos e partidos e até de participar de associações e partidos, reduzindo o seu atomismo e, dessa forma, politizando-se mais. O resultado seria uma representação mais autêntica.

Mas o sistema de voto distrital puro apresenta várias desvantagens que devem ser consideradas: em primeiro lugar, sendo um sistema exclusivamente majoritário, baseia-se na desconsideração dos votos atribuídos aos partidos derrotados em cada distrito, cuja representação passa a ser do candidato vencedor. Não é difícil imaginar o paradoxo que decorre dessa regra: mesmo obtendo uma maioria escassa de 51% dos votos na maior parte dos distritos, um partido qualquer pode se converter no partido majoritário no Legislativo, ainda que, dessa forma, o seu adversário ou os seus adversários representem 49% dos votos do eleitorado. As conseqüências são previsíveis: por um lado, marginaliza-se do sistema político os partidos pequenos, embora eles possam ter forte penetração em um certo contingente do eleitorado.  De outro modo, formam-se maiorias artificiais que, eventualmente, governam ou contribuem para a formação do governo mas, de fato, não representam com acuidade o conjunto e a diversidade do eleitorado. O voto distrital puro, embora aproxime mais o eleitor de seu representante, apresenta o claro inconveniente de não realizar o primeiro dos objetivos mencionados antes.

A alternativa que tem sido sugerida refere-se à adoção do sistema de voto distrital misto adotado pela Alemanha Federal entre 1949 e 1953. Por aquele sistema o eleitor tem o direito a um voto de significado duplo: o primeiro tem o caráter majoritário e se destina a escolher 50% dos representantes em distritos uninominais; o segundo, no entanto, destina-se a eleição da outra metade dos deputados, mediante a escolha do eleitor feita a partir de listas preparadas pelos partidos através do sistema proporcional. A intenção do sistema é clara: trata-se de neutralizar as distorções do sistema distrital e do sistema proporcional puro, sem, no entanto, eliminar as vantagens de um sistema que aproxime mais os eleitores do seu representante.Ao mesmo tempo, ao abrir a possibilidade de que o eleitor faça uma escolha por listas previamente hierarquizadas pelos partidos, força-se estes últimos a explicitarem seus objetivos ideológicos, tornando mais claro para os eleitores os seus objetivos eleitorais mais imediatos. Por outra parte, a escolha personalizada correspondente à metade majoritária do sistema torna de fato possível o direcionamento  do voto contra um candidato (ou contra um partido que ele representa), hipótese inexistente na mecânica vigente atualmente. No entanto, recentemente, argumenta-se que o sistema alemão atual, decorrente de reforma introduzida em 1953, é melhor que o anterior. Pelo sistema atual, o eleitor tem direito a dois votos: ele vota no candidato do seu partido num distrito e vota na legenda da sua escolha ( que pode ou não ser o partido anterior) para a representação por lista. A vantagem adicional desse sistema é que assim se ofereceria ao eleitor uma oportunidade de crítica aos partidos, permitindo, com sua dupla escolha, o que ele consegue, ao mesmo tempo, a política oficial de um determinado partido e as alternativas que, dentro e fora dele, se apresentem a essa política. O objetivo desse último mecanismo é claro: trata-se de ampliar as oportunidades das minorias se expressarem no sistema de representação e, dessa forma, de neutralizar os riscos da ditadura da máquina partidária na elaboração de listas. Cabe indicar, porém, um inconveniente que, malgrado as intenções positivas do voto duplo, pode ocorrer: ao se admitir a desvinculação dos dois votos e mantida a ideia da lista previamente hierarquizada pelo partido, abre-se a porta para que os candidatos distritais busquem alianças que eventualmente, podem se revelar contrárias à lista de seu próprio partido e, dessa forma, reintroduzir os conflitos internos.

Em resumo, os argumentos referem-se essencialmente aos defeitos de origem do sistema proporcional no Brasil. Esses defeitos geram graves distorções que põem em questão o próprio princípio da representação. A iniqüidade da representação estadual no Senado, a frágil capacidade de controle dos representados sobre a sua representação e a indisciplina partidária que, muitas vezes, decorre do funcionamento do sistema, estão na origem do déficit de representação da experiência republicana brasileira. Por isso, é inevitável que a questão se recoloque, como aconteceu recentemente, com o enorme volume de votos brancos e nulos para as eleições proporcionais. É difícil imaginar que se possa consolidar a democracia no Brasil e mesmo criar mecanismos de participação popular sem que se introduzam modificações profundas na dinâmica que gera as distorções apontadas aqui. Daí a necessidade de partidos como o PT proporem modificações na Constituição no sentido indicado nas páginas anteriores. Trata-se de tentar aperfeiçoar a democracia representativa para que ela possa atender melhor as demandas populares.

José Álvaro Moisés é cientista político, membro da Secretaria de Relações Internacionais do PT e presidente do Cedec (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea).