Cultura

Confundimos a concretude da política da ausência com a abstração da ausência de políticas. Inspiramo-nos em propostas da década de 70 e, como não há vazio na história, constata-se que o, tempo passou na janela e muita gente não viu

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Ao escrever este artigo pretendemos tão somente registrar nosso aprendizado como responsáveis pela administração da área cultural no município de Santo André. Entendemos que ser governo, por ser novidade em nosso partido, precisa de registro e sistematização. A área cultural nunca ganhou dentro do PT a atenção que merece. O debate sempre ficou restrito a poucos e a exigência de se responder com ações concretas no cotidiano administrativo exige que o debate aconteça de forma ampla. Nesse sentido, é de nosso interesse contribuir com esta revista a partir do espaço aberto com o artigo de Alípio Freire e Mário Bolognesi (Teoria & Debate nº 12) e com a entrevista/debate entre Marilena Chaui e Fernando Moraes (Teoria & Debate nº 13). Optamos por desenvolver as questões de fundo que o nosso dia-a-dia nos impõe em detrimento do relato de nossas ações, por considerarmos essa linha mais pertinente no momento.

A ausência de discussão sistematizada a respeito das relações cultura X política e Estado X cultura tem nos obrigado à constante reprodução de argumentos e práticas utilizados desde o começo do século ou, na melhor das hipóteses, do que foi produzido por aqui nos anos 50 e 60. Como se o longo período de ditadura militar fosse um vácuo que, se não for preenchido, nos impossibilita de seguir adiante. Como se o período da "Nova República" fosse um hiato de tentativas de recuperação de um passado glorioso para a "cultura" produzida pela gente de "esquerda", quando éramos até considerados hegemônicos. Confundimos a concretude da política da ausência com a abstração da ausência de políticas.

Inspiramo-nos na nostalgia do trabalho semiclandestino da década de 70, quando buscávamos, através do trabalho cultural, aglutinar pessoas, que depois de um processo de conscientização, eram incorporadas nas lutas políticas propriamente ditas. Ou, então, em postulados academicistas, que se por um lado avançam em alguns conceitos extremamente úteis para uma formulação política, por outro mantêm em pólos antagônicos e distantes os que pensam e os que agem.

Assim, as respostas que hoje estão historicamente sob nossa responsabilidade tendem a ser proteladas para o "devir" tão cantado pelos nossos pais, o que condena nossos filhos a nos ouvirem cantar envergonhadamente a mesma canção. Como não há vácuo na história, constata-se que o tempo passou na janela e muita gente não viu.

O avanço tecnológico produzido pelo aperfeiçoamento dos sistemas de comunicação de massa, contraposto ao nosso romantismo clandestino, revela uma farsa patética similar às dos filmes de Chaplin, em cujos finais o simpático e solitário herói afasta-se da platéia, tendo pela frente o horizonte e como limites de seu caminho os trilhos de uma estrada de ferro.

Hoje o PT administra grandes e importantes cidades no cenário nacional, o que deveria nos obrigar nestas "tardes que caem sobre os viadutos", a uma postura pelo menos diferente da dos "loucos com chapéus cocos" ou a dos "bêbados trajando luto". Continuar administrando cidades dessa importância com o discurso do "deixa-me chorar", justificando a indigência cultural do país por essa ausência anterior, é revelar que não se possui política cultural. A indigência existe hoje como status hegemônico, exatamente em virtude de uma política bem implantada pelos governos militares, segundo a qual o pensamento, para a grande maioria dos brasileiros, passa necessariamente pelo respeito aos paradigmas criados pelos meios de comunicação de massa. Diria o provocador que não temos do que reclamar, pois o nacional-popular dos artistas e ideólogos "cepecistas" foi brilhantemente implantado pela Rede Globo, que utilizou inclusive boa parte desses artistas e ideólogos.

Moinhos de vento

Temos o costume de justificar a nossa inação pela ineficiência das máquinas administrativas. Se dependesse só de nossos princípios, a distância entre o discurso e a prática estaria bem próxima de ser vencida. Mas existe a "máquina", um fantasma invencível. Guerreamos com ela, como Dom Quixote contra seus moinhos de vento. Fomos derrotados de início, pois mitificamos sua concretude e lutamos contra uma generalidade. A superestimação dessa generalidade acaba por determinar uma condescendência para com nós mesmos. Não foi possível porque a "máquina" não responde. Esta atitude com relação à "máquina-monstro" nos torna, no máximo, aspirantes a personagens do romancista e dramaturgo nisso Nikolai Gógol.

É evidente que a máquina administrativa que herdamos não foi montada para o PT governar. Muito pelo contrário, os engenheiros que a conceberam montaram suas engrenagens para que ela se auto-alimentasse com a inação, com a corrupção, com o desperdício dos recursos públicos e com todos os males que denunciamos em nossas campanhas e mais alguns que só descobrimos no exercício administrativo Mas não se trata de uma "deusa" inatingível e nem de uma "esfinge" indecifrável. É tão concreta quanto terrível, mas por não estar no plano metafísico é sensível à nossa ação, faz parte de nosso programa de governo transformá-la e, para tanto, infelizmente é preciso, como diz o poeta alemão: "sujar as mãos de merda".

Devemos pelo menos nos incomodar com o fato de estarmos usando os mesmos argumentos de governos de direita, para justificar a nossa ausência ou ineficiência: "a máquina não responde". A cultura da máquina é a cultura dos micropoderes. E se a máquina funcionasse, o que seria de nós? Talvez revelasse que esta "cultura" tenha lá sua sedução, mesmo num governo petista. Talvez não estejamos suficientemente amarrados em nossos mastros para suportar o canto dessa sereia. Viemos para dividir o poder, não para loteá-lo e nem para se abster da responsabilidade administrativa. Atingir e transformar esta terrível "deusa-esfinge" passa necessariamente por encará-la como um mecanismo burocrático culturalmente burguês. Transformar culturalmente este mecanismo pressupõe uma ação constante através de reformas administrativas e da criação de canais de participação, pressão e controle popular, bem como uma ação gerencial eficiente no sentido de agilização na prestação de serviços. Isto só acontecerá com ações concretas que necessariamente dispensam o "chororô" dos que se julgam ou se julgavam She-ras ou He-mans.

Os governos militares tentaram e, até certo ponto, conseguiram forjar uma identidade nacional baseada nos valores de um capitalismo selvagem, necessária para a ampliação do consumo dos produtos das empresas multinacionais. As mesmas marcas de iogurte ou cigarro são consumidas tanto numa grande metrópole quanto em Trigogó das Emas. As roupas usadas pelos atores das novelas são avidamente procuradas nos quatro cantos do país. Instalou-se o completo controle da informação no período mais feroz dos militares. Primeiro pela ação da censura e, mais terrível do que ela, pelo estímulo e concretização dos monopólios da indústria cultural, que hoje filtram qualquer informação que chega à grande massa da população. Esta política que busca reduzir o conceito de cidadania ao de consumidor é desenvolvida com uma violência jesuítica, destruindo as especificidades culturais, sociais, regionais, étnicas e históricas que compõem o universo brasileiro. Hoje, cidadão é aquele que consegue comprar sua cidadania. Só têm direito à saúde, educação, habitação e cultura os que conseguem pagar por este "direito". Como são poucos os que podem fazer isso e como esta relação é hoje hegemônica, instaurou-se em todas as camadas da população um verdadeiro lumpesinato cultural, em que os valores éticos de convívio social são substituídos por outros que apontam para a barbárie.

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Ilhas de desordem

Assumimos uma parcela do poder através das administrações municipais e devemos levar em conta esta ordem que hoje dita as regras das práticas culturais do país e traçar políticas que implodam estas normas e que transformem nossas cidades, parafraseando o dramaturgo alemão Heiner Müller, em ilhas de desordem neste mar de ordem capitalista. Hoje, o governo federal parte para a ofensiva, tentando impor, com um pressuposto neoliberal tupiniquim, a lógica do mercado e taxando tudo o que foge a esta regra de paternalismo e intervencionismo estatal. Por incrível que pareça, este discurso acaba tendo eco até mesmo entre as hostes petistas. Movidos, evidentemente, por princípios antagônicos aos do governo federal, muitos companheiros acabam classificando a questão cultural como secundária frente às necessidades básicas da população, como saúde, educação, habitação, transporte e abastecimento. Gostaria aqui de contar uma historinha: Uma criança sofreu um acidente e quebrou os braços, as pernas, a costela e fez um corte no pé. O médico engessou os membros e a costela e não deu maior atenção ao corte, por não considerá-lo tão grave quanto as fraturas. Passado um tempo, ainda engessado, o garoto morreu de gangrena.

Um partido que tem a pretensão de governar o país não pode continuar desenvolvendo ações marginais e semiclandestinas, restritas a micro-universos limitados por pressupostos aparelhísticos ou acadêmicos. Não podemos pensar a ação cultural de forma mecânica, como uma política de ampliação de quadros ou experiência geradora de teses universitárias. Administramos cidades que envolvem milhões de pessoas em centros nevrálgicos do país, onde as contradições socioculturais são agudas. Não podemos restringir nossas ações a nós mesmos. É necessário partir para o embate fora de nossos círculos e nos contrapor claramente à política cultural autoritária, hoje hegemônica no Brasil. Há quem possa engrossar o coro corporativista de que não existe política cultural em nível nacional. A ingenuidade desta visão confunde ausência de incentivos com ausência de política e esquece que política cultural não é necessariamente implantada só por ministérios e secretarias de Cultura, mas sim pelo conjunto de ações de governo. Quando falamos em cultura não podemos nos restringir às atividades artísticas (perdão pela obviedade necessária). A construção de um viaduto pode ter em si um significado cultural importante para uma cidade como Santo André, por exemplo. Ele pode influenciar decisivamente na construção da identidade do município ao integrar duas regiões isoladas por um rio e uma estrada de ferro ou pode contribuir para destruir esta identidade ao privilegiar apenas o automóvel, dividindo um bairro ou mesmo uma cidade ao meio e dificultando o convívio entre os cidadãos. A questão cultural está embutida em cada ação. Os governos de direita sabem disso e o poder que o governo federal tem hoje, por ter os meios de comunicação a seu favor, é monstruoso. Eles trabalham, massiva e diuturnamente, num sistema construído para a reprodução em massa do modo de e agir dominantes.

Pode-se argumentar que os governos municipais não possuem poder de fogo contra os grandes monopólios de comunicação de massa e contra todo esse sistema. Evidentemente, em caso de guerra entre Brasil e África do Sul, nunca poderemos atingi-la do nosso território sem pelo menos um míssil transoceânico. Mas, se possuirmos um punhal, poderemos atingir o inimigo que está à nossa frente (e este é o nosso caso) de maneira quase cirúrgica, se levarmos em conta os fatores conhecimento do inimigo e oportunidade. Ninguém tem mais poder de atuar junto à população do que os governos municipais, que são os pólos mais próximos do poder público e do cidadão.

É esta a nossa principal arma nesta guerra. Em Santo André, quando assumimos a administração, a política da ausência e da terra arrasada na área cultural era soberana. No plano municipal, esta política apresentava para nós uma fragilidade enganosa em alguns pontos. Quando se herda o nada, qualquer coisa que se faça possui o charme da novidade. Mas "o copo vazio está cheio de ar" e, dependendo de onde se encontra o copo, o ar que o enche pode estar extremamente poluído. As relações com a comunidade através de suas corporações, associações e grupos eram determinadas pela lógica da privatização do Estado. O acesso aos espaços públicos era loteado por critérios clientelistas e de troca de favores extremamente obscuros. Nenhum equipamento escapava dessa prática: do Teatro Municipal aos Centros Comunitários, que haviam se transformado em clubes particulares. A pressão desse ar densamente poluído não é desprezível e sua purificação não se dá apenas por nossa ação moralizadora. É necessário substituí-lo por ações nada etéreas. A ação burocrática clientelista possui uma força inercial, poderosa, que tende a preencher automaticamente qualquer espaço vago. Cabe-nos implantar os nossos programas, simultaneamente com a moralização dos serviços públicos.

O homem como fim

E quais seriam as premissas de uma política em âmbito municipal capazes de fincar uma cunha no panorama cultural do país? No nosso entender, são aquelas que consideram a questão cultural prioritária e não restrita a secretarias ou departamentos de Cultura, mas que impregnem o conjunto das ações de um governo. O projeto do PT visa a mudança da relação entre os homens e destes com seu ambiente. Queremos modernizar a vida do homem na sociedade, tendo como pressuposto o próprio homem, o que em última instância só se concretizará com uma mudança cultural. A luta pelo direito à cidadania no Brasil está no contexto da luta de classes, uma vez que a lógica da formação de nossas cidades e da relação entre seus habitantes foi e é a lógica do capital. Hoje, colocar o homem como prioridade significa entrar num embate direto com o que é hegemônico no país.

Se conseguirmos implantar efetivamente mecanismos de participação e controle da administração pela população, se conseguirmos devolver os espaços públicos e as ruas para o uso do cidadão, estaremos plantando as premissas de uma mudança cultural profunda. Este processo de implantação de mecanismos de participação popular corre o risco de se descaracterizar, se não atentarmos para alguns pontos. Por exemplo, para o perigo de se transferir a responsabilidade administrativa para a população, não preparada e nem remunerada para tal; o de esquecer que, como governo, temos a responsabilidade de representar o conjunto dos cidadãos e que não podemos abrir mão dessa responsabilidade; o de criar um neoclientelismo com fachada socialista; o de transformar a participação popular em um mecanismo burocrático, que emperra a prestação de serviços à população.

Que papel, nesse processo todo, é reservado às secretarias ou departamentos de Cultura, uma vez que sua ação normalmente está circunscrita às sete artes? Este limite, apontado por alguns companheiros como fator inibitório de nossa ação, pode, no entanto, ser superado. O fazer artístico contém elementos de transcendência que se contrapõem ao cotidiano estabelecido pelo capital. Se através de nossa ação pudermos oferecer opções para que este cotidiano possa ser quebrado, estaremos abrindo espaços para que algo de novo aconteça. Devemos trabalhar organicamente com o conjunto das ações do governo, marcando a importância dos aspectos culturais, e devemos esgotar nossos recursos em três pontos básicos: formação, difusão e distribuição, do patrimônio cultural, abrindo espaços de vivência que possam ser co-gestionados pela população. Trabalhar a formação para nós significa criar espaços e serviços, onde a população possa se instrumentalizar e desenvolver sua expressão estética e intelectual nos mais diversos níveis e faixas etárias. Espaços onde a população possa construir seu conhecimento estético do mundo e se expressar livremente sobre ele. Estes espaços devem ir desde o alternativo, adaptado para práticas culturais, aos mais sofisticados, nos quais seja possível socializar o acesso às tecnologias mais avançadas. Tão necessário quanto trabalhar a formação é atentar para a difusão e distribuição do patrimônio cultural. Se não socializarmos o acesso ao patrimônio cultural da maneira mais ampla possível, estaremos eliminando referenciais fundamentais para o desenvolvimento cultural de nossa população. Para essa direção é que devemos traçar nossa ação nas bibliotecas, auditórios, teatros, centros comunitários, praças públicas e casas de cultura.

O poder público municipal é quem possui as melhores condições de levar a cabo uma política cultural afinada com o projeto petista. É no município que se aflora e se afirma a diversidade cultural deste país. É no município que poderemos acumular forças no embate contra a política cultural autoritária e plantar as bases para o exercício da cidadania.

Celso Frateschi é ator, diretor, professor e secretário de Educação Cultura e Esportes de Santo André.

Altair José Moreira é jornalista e diretor do Departamento de Cultura de Santo André.

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