Política

A resposta de Celso Marcondes às afirmações de Jacó Bittar, então prefeito de Campinas

Dia 08 de março de 1991, 19 horas: a população de Campinas é surpreendida com a imagem do prefeito Jacó Bittar, na televisão, fazendo o anúncio oficial de seu desligamento do PT.

Jacó justifica seu pedido de desfiliação do partido: "porque a direção do PT tem tomado atitudes que buscam emperrar nossa administração em prejuízo da população". Afirma que decidiu defender uma política "de composição", de "não-revanchismo", que exigiria um bom relacionamento com Collor e Quércia.

E que, livre das amarras do partido, "agora vamos fazer a melhor administração que Campinas já teve".

O comunicado saiu 48 horas depois de uma conversa do prefeito com Lula, no dia seguinte à reunião com uma delegação da Executiva Estadual, um dia antes da "crise de Campinas" ser discutida como ponto principal da reunião do Diretório Regional. O momento em que foi ao ar, o comunicado e o seu conteúdo não deixam margem a dúvidas: o prefeito optou por um caminho que se choca com as resoluções do 7º Encontro Nacional do partido e com todas as recentes deliberações da direção maior do PT sobre a conjuntura brasileira.

A recessão que toma conta do país e a crise financeira da prefeitura levaram um dos fundadores do PT a adotar o modelo mais tradicional de administração municipal: aquele em que as prefeituras se tornam reféns das instâncias superiores e no qual se estabelecem laços de cumplicidade com as grandes empreiteiras, os proprietários das empresas de transporte coletivo e outros representantes das elites. Um modelo que exige a realização de grandes obras de impacto, mas despreza a adoção de um plano de governo, porque vive das oportunidades que surgem. Um modelo que estabelece com a Câmara uma relação de troca de cargos e favores. Um modelo que é saudado e incentivado por Collor e Quércia, que injetam verbas na cidade, que promovem atividades com Bittar. Porque a eles interessa apresentar uma fachada democrática, de "diálogo com a esquerda", de não discriminação de "nenhuma prefeitura do PT". Porque a Quércia interessa manter sua força política na cidade que foi o seu berço e onde mantém um fantástico patrimônio (uma estação de TV, três de rádio, um jornal, hotéis, loteamentos, terrenos etc.). Por isso vieram as verbas estaduais para a construção em tempo recorde de um pré-metrô, o "Veículo Leve sobre Trilhos" VLT –, "inaugurado" com pompas dois dias antes do 2º turno das eleições de 90, "reinaugurado" em março com nova festa e até o meio de abril fora de operação comercial por uma razão muito simples: só uma via de trilhos estava pronta, ou seja, só uma única composição podia ser utilizada...

Uma atitude típica do ex-governador - que fez algo parecido com a linha Paulista do metrô da capital no 1º turno eleitoral. Isso não acrescentaria nada de novo ao farto noticiário de denúncias de seu método de ação, a não ser pelo fato de que a Prefeitura de Campinas, no afã de capitalizar para si uma obra alheia, tenha dado cobertura para uma estranha concorrência e tenha sido co-organizadora das duas inaugurações fajutas e alardeado a obra inacabada nas TVs.

Esta mesma cumplicidade já ficara evidente nos jornais de todo o país com as declarações do prefeito sobre a posição do PT no 2º turno das eleições governamentais. Posições até semelhantes às de outros companheiros de expressão nacional que defendiam nosso voto para Fleury. Mas, no caso de Bittar, suas opiniões se concretizaram em atos formais, de incentivo e participação nas atividades eleitoreiras semanais de Quércia e seu candidato em Campinas.

Estas demonstrações de "não-revanchismo", de "composição", já tinham se manifestado em duas oportunidades que o Brasil inteiro viu. A primeira foi a visita de Bittar a Collor logo após a edição do seu primeiro plano econômico, quando passou a perna na Frente Nacional de Prefeitos e tornou-se o primeiro administrador municipal a ser recebido pelo novo presidente. A segunda, sua disposição de procurar o presidente da CUT para negociar o pacto social, depois de quinze minutos de conversa com Collor na sala vip do aeroporto de Viracopos.
Essa vontade de manter um bom relacionamento com o governador e o presidente havia sido identificada pelo PT em abril de 90. Uma resolução aprovada por unanimidade em nosso 7º Encontro Municipal defendia claramente a necessidade do prefeito se reunir, dialogar, negociar com os governos superiores com o objetivo de trazer verbas para obras essenciais na cidade. Ela apenas cobrava que estas negociações fossem transparentes e não implicassem prejuízos ao nosso plano de governo.

Bittar, porém, não só eliminou de seus objetivos ter qualquer plano de governo, como começou a dizer que a administração municipal tinha que ter uma atitude de "neutralidade", segundo a qual caberia exclusivamente ao partido, em suas outras frentes de ação, levar adiante a luta ideológica, denunciar as elites, enfrentar os poderosos.

Para ele, o importante passou a ser "administrar a cidade" pragmaticamente. Num piscar de olhos três grandes obras que a administração anterior deixou inacabadas foram retomadas. O VLT foi "construído". Cessaram todos os conflitos com as empresas permissionárias do transporte coletivo. Foram anunciadas com toda cerimônia "a construção do maior autódromo de fórmula Indy do mundo", "a construção de um bairro-cidade com moradias para 70 mil pessoas", "a nova rodoviária". Com o objetivo de criar "fatos políticos", sonhos e projetos foram apresentados à imprensa como se já tivessem se tornado realidade. Tudo isso poderia ser relativizado se tivesse acontecido um avanço mínimo no relacionamento do governo com os trabalhadores e suas entidades. Mas, ao contrário, passados mais de dois anos, as relações do gabinete do prefeito com os sindicatos, em particular os dos servidores municipais, dos trabalhadores no transporte coletivo, do abastecimento de águas e esgotos, são de confronto aberto.

No meio de duas das três greves do funcionalismo que paralisaram toda a prefeitura, o prefeito viajou para o exterior e deixou as negociações a cargo de seus subalternos. Na de março passado, foi ainda mais longe e, após o primeiro dia de greve, colocou matéria paga na imprensa em que afirmou: "(...) a Prefeitura reconhece também o direito ao trabalho, que os piquetes com violência estão desrespeitando. A partir de hoje haverá garantias de acesso aos prédios públicos municipais. A Prefeitura determinou ontem proteção policial aos prédios públicos do Departamento de Transportes Internos (Deti), da Coordenadoria das Administrações Regionais (Coar) e do Departamento de Limpeza Urbana (DLU), onde ocorreram violências. Hoje, caso os piquetes continuem, haverá proteção policial também no Paço." (Diário do Povo e Correio Popular, de 20/03/91. O comunicado foi levado ao ar pelas TVs Globo e SBT locais no horário nobre do dia 19/03/91).

Não é aberto qualquer espaço aos sindicatos. Na recente greve nacional dos petroleiros, que paralisou por 24 dias a Refinaria de Paulínia, o prefeito se recusou a ir às assembléias de seus ex-colegas, preferindo adotar a posição de "mediador", reconhecida pela direção da Petrobrás. Atitude oposta à da prefeita Telma de Souza, em Santos, recentemente. Posição coerente com suas críticas públicas à convocação da Greve Geral para o dia 15 de março, "porque é errado concentrar a luta contra uma pessoa" (Folha de S. Paulo, 07/03191), referindo-se ao primeiro aniversário do governo Collor. Posição coerente com aquela expressa em entrevista publicada no Jornal do Brasil e no Diário Popular no dia 6 de março e reproduzida em 9 de março, como matéria paga, em alguns dos principais jornais do país. Nela pode-se ler as declarações do tipo: "Nós temos que vencer nesse país o processo de relação revanchista que existe por parte dos políticos". Ou "a responsabilidade pela crise não pode ser creditada a um homem ou a uma política econômica". "É todo um sistema que está envolvido nisso. O Collor, por mais que tenha vocação para ditador, é fruto de um processo de eleição direta, em dois turnos. É o presidente da República e como tal não podemos deixar que governe sozinho".

Nesta mesma entrevista, Bittar apresenta as posições de Arthur Virgílio como "absolutamente corretas". Principal expoente da ala direita do PSDB, o alcaide de Manaus tem sido um dos principais defensores do "entendimento nacional" proposto pelo governo federal em meio a uma forte crise econômica e social, diante da perda crescente de sua popularidade e das dificuldades em manter um bloco de apoio parlamentar majoritário.

A partir da leitura de declarações oficiais do prefeito e da avaliação de seus atos fica a certeza de que ele tem um projeto próprio, tradicional, conservador, que se choca com a essência do que sempre defendeu o PT. Um projeto que acaba sufocando e encobrindo os inegáveis avanços que podem ser facilmente verificados em secretarias como as da Saúde e da Educação, tocadas por petistas que trabalham em equipe e aplicam uma política voltada para a periferia, abrindo, assim, canais de participação popular e provando que o PT tem capacidade de governar.

Mas a afirmação do projeto do prefeito exigiu a exoneração de todos os secretários municipais filiados ao partido que mantinham fidelidade ao PT. Exigiu a composição de um novo secretariado, cujas postos-chaves passaram às mãos de pessoas não filiadas ao PT e com relacionamento pessoal e exclusivo com o prefeito (Finanças, Obras, Administração, Transportes e Sanasa). Para ser aplicado, esse projeto não pode ter amarras. Não pode ter um plano de governo - é preciso viver das oportunidades. Não pode ter qualquer organismo de decisão coletiva - só um homem manda. Não pode ficar preso às diretrizes de um partido chato, que elege mas depois, cobra, pega no pé.

As responsabilidades do partido

A perda da prefeitura de Campinas é uma derrota para o PT. O abandono de um de seus principais militantes é um profundo golpe no partido. Não há qualquer satisfação ao se constatar esta trajetória errática do prefeito.

O PT não se curvou a uma política estranha às suas tradições, mas não conseguiu impedir que ela se impusesse. Não conseguiu constranger o prefeito - já que era impossível convencê-lo. Errou em momentos agudos da crise que se arrastou por um ano e meio. Perdeu a disputa para manter uma conquista do partido e não do prefeito.

Fica preservado o PT - o gesto de Jacó só convence o seu mais restrito grupo de apoio, pois no Encontro Municipal Extraordinário realizado em 27 de janeiro a esmagadora maioria dos presentes apoiou as posições do Diretório de Campinas -, mas perdeu-se uma frente muito importante na luta pelo socialismo, pela democracia, pelo avanço da participação popular. Deterioraram-se as relações do partido com a sociedade.

Um enorme processo de recuperação precisa ser empreendido unitariamente pelo conjunto dos petistas.

Em todo este período de crise a tática de Bittar foi desqualificar a direção do PT local. Em agosto de 89 já afirmava que só as direções estadual e nacional tinham competência para dialogar com ele. Fomos caluniados publicamente de "imorais", "empreguistas". Acusados de fazer oposição desde o primeiro dia de posse. Mas, no exato momento em que a direção nacional (mais do que tardiamente) e a estadual resolveram jogar pesado para discutir com o prefeito, Bittar preferiu se antecipar. Desfiliou-se dezoito horas antes da reunião onde poderia expor suas teses para toda a direção regional (reconhecida e competente), oito meses antes do Congresso do "é proibido proibir", um mês antes do Encontro Municipal realizado em 28 de abril que mudou a direção local "imoral e incompetente".

O Diretório Municipal cometeu muitos erros neste processo e por isso colocou seus cargos à disposição do partido, apesar de a direção nacional propor a prorrogação de todos os mandatos para após o Congresso.

Bittar partiu para uma aventura. Contemplado por muitas verbas poderá até deixar túneis, viadutos, bondes, como marcas de sua administração, e ganhar prestígio e votos no futuro em função disso. A eleição de Fleury prova que em determinadas conjunturas a maioria do povo pode eleger políticos tradicionais, escorados em campanhas publicitárias milionárias, na realização de obras de impacto, utilizando verbas públicas a granel. Em várias entrevistas, Bittar já levantou a hipótese de se lançar candidato a governador daqui a quatro anos. Mira-se no exemplo de Fleury e pode tirar proveito pessoal de sua nova estratégia. Deixa evidente que para ele o sonho do socialismo acabou.

Porém, em Campinas a maioria é persistente. O PT nunca viveu só da atuação institucional, sempre se recuperou de golpes. Continua sendo a principal força do movimento sindical e popular da cidade. O partido não abre mão da crítica, da denúncia, da mobilização contra um governo federal anti-popular que se defronta cada vez mais com o descontentamento da sociedade.

Esses ingredientes não nos impedem de sonhar: se em Diadema recuperamos a prefeitura logo após a saída do prefeito, quem disse que em 92 isso não pode acontecer em Campinas?

Celso Marcondes Filho foi secretário-geral do Diretório Municipal de Campinas na época, atualmente é membro do Diretório Regional do PT-SP.