Política

Cartas de Helena Hirata e Ivete Garcia em memória de Beth Lobo

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Beth,

Desde 88, muito do seu tempo foi furtado à sua militância plural feminista, sindical, política e à sua elaboração teórica individual para levar em frente esse trabalho coletivo, e nem sempre gratificante, de estruturação dessa área temática no Brasil, via seminários sobre "processo de trabalho".

Você foi a João Pessoa num domingo e se despediu (ou não se despediu) por uma semana. Na 6ª feira, 15 de março, um acidente de carro interrompeu brutalmente sua felicidade de estar com amigos, colegas de trabalho, companheiras. Ia continuar naquele dia o contato com sindicalistas rurais de Alagoa Grande, por intermédio de Maria da Penha, líder sindicalista - já ameaçada de morte, tendo sucedido Margarida Alves, assassinada - e que se foi com você, no meio da sua, nossa, luta.

Sei, por um recorte de um jornal da Paraíba, que sua última palestra na Universidade Federal foi "A classe trabalhadora no Brasil: experiência, estrutura e gênero", título que contém as principais categorias com que trabalhava, algumas já presentes em sua tese de doutorado defendida, em 1979 na Universidade de Paris, sobre a ditadura militar no Brasil, outras refletindo preocupações teóricas posteriores, como o conceito de experiência ou de gênero, com o qual você propôs uma nova leitura da categoria trabalho.

Essa longa trajetória teórica, esse percurso crítico, se ancorou em suas múltiplas experiências, entre elas: A formação e atuação profissional, interdisciplinar, em Letras, Sociologia da Literatura, Sociologia do Trabalho e História. Na militância política, teve participação no movimento de Maio de 68 francês, na resistência à ditadura militar no Brasil e na experiência chilena. O exílio, na França, foi transformado em trabalho, emprego universitário e atividade política. Em seguida, teve participação na construção do Partido dos Trabalhadores no Brasil, lutando para a incorporação, desde o início, da dimensão feminista em suas plataformas e programas. Esteve presente em um sem-número de reuniões, escreveu textos curtos e incisivos sobre as mulheres no partido e na sociedade, participou de manifestações e de discussões com homens e mulheres... Atuou no movimento autônomo de mulheres na França e no Brasil, posicionando-se, a cada momento, nos textos e na prática, por um feminismo de classe. Teve ainda a longa experiência da maternidade: seu filho Leon, nascido no Chile.

A não-hierarquização foi um princípio privilegiado por Beth. Não-hierarquização dessas diferentes experiências, dos objetivos estratégicos, negação das "etapas", do "principal" e do "secundário", do "antes" e do "depois".

Daí talvez ter Beth retratado de maneira tão extraordinária Emma Goldman, de quem foi excelente biógrafa, por duas vezes: em A vida como revolução, de 1983; e Revolução e desencanto: do público ao privado, de 1989.

Durante o ato em homenagem a Beth no Centre National de Recherches Sociales (CNRS), em Paris, seu amigo Michael Löwy ressaltou sua afinidade com Emma: "Elisabeth era fascinada por Emma. Escrevendo sobre a vida e o pensamento da anarquista/feminista judia, ela queria mostrar a atualidade de uma mensagem herética, que nada tinha perdido da sua insolência há quase um século de distância. Mas existia também entre elas uma espécie de afinidade íntima: ambas sonharam com um mundo sem opressão de classe ou de gênero; ambas se engajaram ativamente para realizar sua utopia; ambas recusavam os modelos autoritários do pretenso socialismo real; ambas tinham conhecido o exílio e as perseguições policiais, os anos difíceis de isolamento e de combate contra a corrente. Enfim, tinham um espírito iconoclasta, não temendo enfrentar tabus e proibições".

Beth escreveu: "Em Emma Goldman, no princípio, estava um desejo de justiça, de amor e liberdade. Foi esse desejo que ela viveu e serviu, sempre recusando-se a submetê-lo a regras de eficácia ou de lógica (... ) Por isso lutou pela felicidade, pela igualdade social, pelo direito à liberdade, pela beleza das flores e cores, pelo prazer e pelo amor, sem estabelecer hierarquias.

Imagino que isso signifique ser radical. Recusar etapas, objetivos ambíguos, meias palavras. Recusar a servidão sob quaisquer de suas formas.

Porque era uma radical, não existe em Emma oposição entre vida e obra. Ambas se confundem, coincidem: o engajamento nas lutas sociais e os sonhos de felicidade(...)"

Talvez a categoria trabalho, unificadora do conjunto de suas preocupações, se prestasse melhor que outras a essa não-hierarquização entre teoria e ação, entre as múltiplas dimensões da sociabilidade. Introduzindo o conceito de gênero no trabalho, acabou por subvertê-lo, transformá-lo, descentrá-lo. Demonstrou desde A prática invisível das operárias, de 1982, até "O trabalho como linguagem: o gênero do trabalho", apresentado na última Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, em fins de 1990 (que será publicado proximamente), como, à questão "o trabalho: categoria-chave da Sociologia?", não se pode reagir por um sim/não. O modo de vida, o "privado", o pessoal, preenchem o espaço considerado "público", profissional, fabril. O "dia-a-dia das representações" dá sentido à prática de trabalho profissional e doméstico de homens e mulheres. O lugar do trabalho na construção da identidade, no acesso das mulheres à cidadania era constantemente, por Beth, simultaneamente relativizado e reafirmado - nuances que seus colegas sociólogos(as) nem sempre conseguiram introduzir...

Seria injusto nessa referência ao(s) trabalho(s) de Beth, não evocar as metalúrgicas do ABC, tão presentes nas homenagens póstumas, quanto o foram durante a sua vida: Nas ações de formação sindical onde deu tudo de si, exemplos de "democracia no saber", segundo expressão de uma de suas amigas, Heloísa Jahn no conjunto de análises sobre a categoria, seu trabalho, suas lutas sindicais e políticas. Ela não está mais aqui para acompanhar a assembléia dos metalúrgicos de São Bernardo.

Beth, para todas nós, para quem você foi amiga, confidente, colega de trabalho, companheira, a interrupção da comunicação, do fluxo de papéis, cartas, presentes, palavras, deixou um vazio onde "o esquecimento ainda é memória". Para todos os que a conheceram e a amaram em visitas ao Brasil ou em lugares que você amou - Paris, Quebec, Nova Iorque, Roma -, rompe-se o laço privilegiado com o Brasil que você representava. Hoje, há a exigência de reatá-lo por outros meios: uma coletânea de textos está sendo atualmente organizada em Paris. No Brasil, a Secretaria da Cultura do Município de São Paulo prepara em conjunto com a Editora Brasiliense a publicação de suas obras.

"Amar depois de perder", constata Drummond em Perguntas. Digo: "Amar (mais ainda) depois de perder".

No dia-a-dia, em proveito da eficácia, da produtividade, recorremos - recorri - a algumas de suas qualidades, a partes suas, e acabamos não tendo mais a visão da totalidade, da extraordinária personalidade plural de Elisabeth Lobo, restituída, reconquistada por cada carta, cada lembrança, cada texto lido e relido, discursos, testemunhos que martelam na nossa na minha - mente essa idéia: "Amar (mais ainda) depois de perder."

Beth era bela, física e moralmente, como repetia seu amigo Toni Negri, que recomenda: "transformar a dor, o pânico, em desejo, um desejo que ela exprimia tão intensamente"; "que possamos todos evitar a morte como limite e considerá-la como um obstáculo a superar".

Helena Hirata é pesquisadora do CNRS da França e professora visitante da USP.

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Paixão e Compromisso

Ivete Garcia

Quando conheci a Beth, estava me descobrindo para a luta das mulheres. Eu era operária, diretora do Sindicato dos Químicos do ABC e me esforçava para construir este trabalho dentro da CUT.

Ela foi muito especial para mim e, particularmente, para todo o conjunto mulheres do ABC, pois era apaixonada e comprometida com a classe Sempre procurava transformar cada experiência que vivíamos em reflexões importantes, além de partilhar seu conhecimento e contribuir para nossa formação e crescimento.

Em 89, recebi muito incentivo de Beth para voltar aos estudos e ela achou ótimo quando optei por cursar Ciências Sociais. Demonstrou que era fundamental me dedicar à formação universitária, mesmo que isto implicasse redução da militância sindical.

Quando deixei a diretoria do Sindicato para assumir a Assessoria dos Direitos da Mulher da Prefeitura de André, continuei contando com apoio da amiga Beth que, apesar da sobrecarga de trabalho, nunca deixou de dar sua contribuição. Recentemente estávamos iniciando um projeto de pesquisa sobre o desemprego feminino no Plano Collor. Esta era uma de suas preocupações naquele momento. Ah, Beth! Como foi bom conhecê-la: Tanta vivência, tantas palavras, tantos sorrisos, tanto carinho. Quanto aprendi com você, nas longas em que colocávamos nossa vida, nosso trabalho, nossos sonhos e nossa luta.

No meu dia-a-dia, através da luta levada com outras mulheres e homens quero continuar a transformar seus sonhos, que também são meus, em realidade.

Ivete Garcia é assessora dos Direitos da Mulher da Prefeitura de Santo André.

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