Política

Estabelecer uma cota mínima de mulheres nas instâncias dirigentes do partido. A proposta é polêmica? Sem dúvida. Mas a experiência em outros países demonstra que essa é uma maneira de diminuir a discriminação sexista.

Para Beth Lobo, uma mulher excepcional, que lutou para que a presença das mulheres na política deixasse de ser exceção.

Os partidos políticos têm convivido com um número apenas simbólico de mulheres nos seus espaços de direção e representação. Um número tão reduzido que somente simboliza, mesmo no PT, a permanência e a reprodução no âmbito partidário dos mesmos mecanismos de discriminação e opressão de gênero da sociedade patriarcal, que mantém o espaço público como masculino.

O feminismo e o movimento de mulheres denunciaram a discriminação, a subordinação pessoal, a alienação pela prisão ao espaço doméstico, integrando à esfera da política uma nova dimensão: a centralidade da luta contra a opressão de gênero.

O processo de desvendamento de como se estrutura e se manifesta a opressão das mulheres colocou em foco elementos que, até então, não eram aceitos com o estatuto de "político" - a divisão social, política e econômica entre a vida pública e a vida privada, que pôs em xeque o papel da família -; ressaltou a importância da sexualidade; denunciou as múltiplas formas com que o capitalismo utiliza a divisão sexual do trabalho; repudiou o controle masculino, social e individual, sobre o corpo e a sexualidade das mulheres; e introduziu - de forma nada abstrata, pois fundada na exigência de mudanças no cotidiano e na sociedade - o desafio da construção de relações pessoais igualitárias. É a partir desta dimensão social que se organiza o movimento de mulheres, unificando e coletivizando a identificação da opressão, ao retirá-la do marco aparente de situações individuais.

Apesar dos conflitos, desacertos e incompreensões crônicas da esquerda e dos partidos desta tradição, não foi por acaso que o feminismo e o movimento de mulheres se desenvolveram, na grande maioria de suas correntes, profundamente identificados com a luta pelo socialismo. Como bem disse Perry Anderson, em A crise da crise do marxismo: "Como padrão de desigualdade, a dominação sexual é muito mais antiga historicamente, e muito mais profundamente arraigada na cultura, do que a exploração capitalista. (...) Qualquer movimento que encame valores capazes de realizar uma sociedade sem hierarquia de gêneros seria constitutivamente incapaz de aceitar uma sociedade fundada na divisão em classes".

A crítica e o choque com a esquerda, com os partidos em especial, mas também com o movimento sindical, se relacionam tanto à compreensão teórica do caráter da opressão de gênero quanto às estratégias de luta das mulheres. Por um lado, há dificuldade e resistência em compreender a especificidade da opressão das mulheres, o caráter da dominação patriarcal, a contradição advinda do papel dos homens e dos privilégios masculinos. De outro, as mulheres tiveram que se defrontar com uma visão instrumental e muitas vezes manipulatória do seu movimento, nos momentos em que sua mobilização interessa a outros setores. Isso quando não se considera a organização específica das mulheres um desvio burguês ou pequeno-burguês, ou uma divisão da classe trabalhadora.

No Brasil, o crescimento do movimento de mulheres é contemporâneo à luta contra a ditadura e ao processo de reorganização partidária. Esse é um período em que a situação social das mulheres passa por mudanças importantes: entram de forma acentuada em espaços públicos, rompendo por diferentes caminhos com elementos da clausura doméstica e familiar. Alguns dados são importantes: a participação das mulheres na população economicamente ativa cresceu de 20% em 1970 para 36,9% em 1985; as projeções feitas para 1990 elevam esse número para 41% (vale lembrar que as donas de casa não são consideradas ativas). Nos últimos anos, o nível de escolaridade feminino aumentou; a disseminação de métodos de anticoncepção atingiu cifras comparáveis às de países capitalistas avançados, embora com grande prejuízo para a saúde das mulheres. No plano especificamente político, a participação feminina no eleitorado saltou de 35,4% em 1974 para 50,4% em 1990 e a nova Constituição abriu caminho para aspectos básicos da cidadania, ainda na prática negada às mulheres. As mulheres passaram a participar majoritariamente de diversos movimentos populares urbanos e também cresceu a sua filiação aos partidos políticos. Segundo dados da Fundação Carlos Chagas, no estado de São Paulo, o número de mulheres inscritas nos seis maiores partidos (PMDB, PDS, PTB, PDT, PT e PFL) chegava, em 1986, a cifras entre 39% e 42% do total de filiados - na capital, o percentual subia para 45% a 47%.

As mulheres passaram a ser uma base sócio-política importante para os partidos; no mínimo, deixaram de ser ignoradas. Afinal de contas, nós também votamos. No entanto, a maior parte dos discursos não consegue ir além da generalização dos problemas das donas-de-casa. Da demagogia de candidatos como Afif, na campanha presidencial de 1989, à ridicularização das mulheres que "espanavam o Palácio", deslumbradas com Suplicy, na campanha Plínio em 1990. Às vezes chega-se a falar em igualdade.

Participação e poder

Mesmo ampliando sua participação, as mulheres não conseguem entrar nos espaços de poder e decisão. Estão na base dos partidos mas não chegam aos cargos de direção e representação. E no PT não é diferente. No Diretório Nacional, eleito ano passado, há 77 homens e apenas 5 mulheres; ou seja, 93,9% de homens e 6,1% de mulheres. Uma proporção constante ao longo da história do PT.

É preciso explicar o porquê dessa presença tão absurdamente reduzida e construir uma política consciente para reverter esta realidade.

Na história dos partidos políticos vinculados aos movimentos dos trabalhadores é lugar-comum a aceitação da necessidade de desmascarar e lutar contra a desigualdade real, mantida pela sociedade de classes. Mas a compreensão do que significa - e o combate às formas como se manifesta - a desigualdade de gênero, isto é, a desigualdade e as hierarquias entre homens e mulheres, tem sido bastante difícil.

Na sociedade atual, a separação entre o público e o privado, que atribui às mulheres o papel primordial na família e na reprodução, aprofunda uma divisão sexual do trabalho que determina as formas com que as mulheres se inserem no espaço público, privando-as das condições de exercerem igualdade de condições com os homens, a participação social e política. Esta divisão modela os papéis sociais e os comportamentos diferenciados por gênero; molda uma cultura patriarcal em que a construção da vida, da identidade das mulheres se conforma pela alteridade, pela complementação do homem; estrutura o poder patriarcal sobre as mulheres, tanto no espaço público quanto na vida privada e estabelece como as relações entre homens e mulheres se cristalizam de forma hierárquica nas instituições.

Para as mulheres o direito à cidadania é dado, em primeiro lugar, pela maternidade, vinculada evidentemente ao papel de esposa e dona de casa. Estes são a imagem pública e o papel social aceitáveis, construídos e reiterados permanentemente1. Todos os outros papéis e imagens são transgressões. Não chegamos aos postos públicos como mulheres, mas como exceções. Para as mulheres, a participação política exige elementos de ruptura dificilmente mensuráveis com o papel que lhes é atribuído. O levantamento feito no 3º Congresso Nacional da CUT, em 1988, é bastante significativo e, certamente, comparável à realidade das petistas: "a pesquisa realizada com os participantes do 3º Concut revelou que as mulheres presentes apresentavam maior escolaridade, desempenhavam atividades profissionais de maior qualificação e, ao contrário dos homens, eram na maioria solteiras ou separadas. Ou seja, para qualificarem-se como dirigentes, as mulheres têm que apresentar maior grau de escolaridade, maior qualificação profissional, mais tempo de militância que os homens e sacrificarem a vida conjugal"2.

A esquerda questionou muito pouco, ou nada, a divisão sexual do trabalho, a estrutura familiar tradicional ou a subordinação pessoal das mulheres. Na verdade, os partidos, e os militantes em geral, reproduzem esta divisão. Assim, as mulheres entram na militância política marcadas pela estruturação dos papéis na família e sua projeção na sociedade. E, em consequência de uma educação para a submissão, mantêm a carga da responsabilidade pelo trabalho doméstico, que não é coletivizado em termos sociais - através de creches e outros equipamentos - e, em geral, menos ainda no cotidiano da vida familiar. Mas, além destas dificuldades, a estruturação mesmo da vida partidária, com a reprodução acrítica da ideologia patriarcal, apresenta obstáculos à participação política plena das mulheres. Em particular, em relação às instâncias de direção e poder. A dinâmica é a da exclusão.

Podemos lembrar as várias formas com que se manifesta a divisão sexual do trabalho na vida partidária. Também aí cabe às mulheres o "trabalho doméstico": os homens fazem a grande política e as mulheres são auxiliares. Se não são dirigentes, eles são assessores e elas, secretárias. Ao mesmo tempo, as formas de funcionamento que privilegiam o desenvolvimento individual e não o trabalho coletivo desfavorecem as mulheres, inclusive pela forma diferenciada de sua socialização. Os critérios de seleção e valorização política são profundamente identificados com o que são consideradas características masculinas: agressividade, competitividade individual etc. Ao mesmo tempo, se estabelece uma duplicidade de critérios onde o que são considerados valores para o militante do sexo masculino são defeitos para a de sexo feminino. A fala e a ação política das mulheres é desvalorizada, e mais ainda se identificada com o trabalho feminista, em si mesmo visto como uma atividade de segunda categoria.

Toda a simbologia e a linguagem que representam o poder são referenciadas no poder masculino. Especificamente na linguagem, esse referencial se transforma em um machismo extremamente agressivo, na grande maioria das vezes calcado em uma pretensa superioridade da sexualidade masculina, que se reafirma pela subjugação violenta das mulheres.

São os nossos companheiros que transferem para o cotidiano das relações no partido a forma como operam com a divisão entre o público e o privado. É difícil para os homens aceitar a liderança política de uma mulher; é difícil conviver com as mulheres como sujeitos políticos se, eliminado o verniz ideológico, o que se espera delas é que sejam namoradas, esposas ou estejam disponíveis para isso. Não é incomum que o status de militante e dirigente partidário ou sindical seja utilizado como instrumento de poder para buscar privilégios sexuais e afetivos com as mulheres - em geral as que estão em um patamar abaixo na chamada hierarquia política.

Na vida partidária, ainda, as mulheres se defrontam com a ausência de políticas específicas para contrapor aos mecanismos sociais da opressão de gênero, que vão desde a ausência de creches, o horário das reuniões, as dificuldades de acesso à formação política, entre vários outros. Estes são alguns dos elementos que fazem com que os espaços de atuação política, em particular os espaços partidários e do movimento operário, se caracterizem, em geral, por um ambiente hostil às mulheres, que exerce sobre elas uma violência cotidiana. Resultado: elas se sentem permanentes outsiders e se adaptam aos padrões que são exigidos pelo modelo masculino do militante político.

Ação afirmativa

As relações de poder perpetuam uma situação de discriminação cotidiana e exclusão das mulheres. É contra esta dinâmica que o movimento de mulheres e as mulheres organizadas em partidos políticos e sindicatos têm defendido a necessidade de se desenvolver políticas de ação afirmativa, ou seja, a adoção de medidas concretas no plano da construção partidária e/ou sindical capazes de reverter a lógica "natural" da sociedade. É esta lógica que exclui as mulheres ou as subordina totalmente à dinâmica patriarcal da vida política como a temos construída. Uma lógica que se reproduz dentro dos partidos, mesmo os mais revolucionários ou inovadores.

A defesa de uma política de ação afirmativa parte do princípio de que a participação igualitária entre homens e mulheres na vida social e política é um direito democrático essencial. Mas, ao mesmo tempo, reconhece que mesmo o discurso liberal é capaz de repetir de maneira genérica esta afirmação. Afinal de contas, uma das características da concepção liberal de democracia é o reconhecimento da igualdade formal, como parte dos mecanismos para encobrir as discriminações e exclusões sociais. Assim, a política de ação afirmativa combate a imensa desigualdade social entre homens e mulheres com medidas concretas para reverter a lógica de exclusão das mulheres do espaço público.

Os homens no seu status social diferenciado, de opressores, têm uma situação global que lhes assegura privilégios, constituindo relações de poder hierárquicas que se reproduzem na esquerda, nos partidos, nos sindicatos. A política de ação afirmativa rechaça uma concepção idealista das relações sociais, reconhecendo que a assimilação político-teórica do feminismo é essencial, mas de forma alguma suficiente, para que se rompa esta situação de desigualdade. A subordinação e opressão das mulheres não se resume a um problema ideológico ou cultural; se embasa em questões materiais e opera na vida cotidiana, nas relações que se estabelecem entre os dois sexos, de forma individual, na família, perpassando todas as estruturas da sociedade.

Uma política de ação afirmativa nega que se possa construir qualquer projeto de transformação social igualitário, qualquer projeto socialista, sem a auto-organização das mulheres e sem sua presença efetiva nos espaços de poder e decisão. Esta é uma condição imprescindível para garantir que a luta contra a discriminação de gênero esteja presente com a radicalidade necessária em qualquer projeto de revolução social. Sejam quais forem os discursos e as intenções, um partido que tem sua direção quase que exclusivamente composta por homens mantém na prática a opressão das mulheres.

Política de cotas

Um dos mecanismos centrais defendidos pelas mulheres como ação afirmativa dentro dos partidos e sindicatos é o estabelecimento de cotas para a participação nas direções. Desde 1973 o Partido Socialista francês aplica um critério de cotas que define uma porcentagem mínima de mulheres nas listas eleitorais e nas instâncias dirigentes do partido. Em 1982, um deputado do PS francês apresentou uma emenda propondo que as listas de candidatos apresentados pelos partidos não pudessem contar com mais de 75 % de pessoas de um mesmo sexo, o que na prática significava a obrigatoriedade dos partidos apresentarem pelo menos 25% de candidatas mulheres. O Partido Social-Democrata da Alemanha aprovou, em 1988, uma política gradativa para chegar a uma cota mínima de participação de 40% para homens ou mulheres nas listas para as eleições parlamentares, para os cargos de direção e eleição de delegados. No México, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) funciona com uma cota mínima para a participação de mulheres na direção.

A proposta é polêmica? Sem dúvida. Mas a experiência tem demonstrado que a resistência à participação política das mulheres nas instâncias de direção não pode ser quebrada sem uma política consciente, que se desdobre em propostas concretas, para garantir que as mulheres não sejam barradas em sua participação política plena. Os principais argumentos contra a política de cotas ou metas numéricas são: uma suposta incapacidade política das mulheres, a visão de fundo liberal de que esta política fere a igualdade de direitos e o caráter artificial e arbitrário para a definição de uma porcentagem.

Vale a pena pensar um pouco sobre esses pontos. É importante lembrar a duplicidade de critérios para a avaliação política de homens e mulheres - apesar disso, nenhum partido que aprovou uma política de cotas ou metas teve grande dificuldade em encontrar um número suficiente de mulheres capazes para ocupar os postos definidos.

Qualquer política que busque conscientemente reverter um quadro de desigualdade social apresenta, necessariamente, um caráter de artificialidade em relação à sociedade. Se consideramos "natural" a opressão, a exploração, a existência de privilégios para um setor em detrimento de outro, o "natural", então, é que a direção do PT continue a ser quase que exclusivamente masculina e machista. Esta tem sido a "naturalidade" da construção do PT nestes 11 anos. Nesse aspecto, reproduzimos de forma primorosa a dinâmica natural da sociedade. A definição de um número específico, de uma porcentagem, tem um caráter exclusivamente tático de construção: o objetivo estratégico é alcançar condições igualitárias e democráticas de participação. Uma alternativa que tem sido utilizada em alguns partidos é a relação com a presença das mulheres na base. Mas o fundamental não é procurar uma explicação lógico-formal para se definir 25 %, um terço 40% ou qualquer outra cifra. Esta é uma decisão política que deve levar em conta a realidade partidária. Afora isto, só se pode considerar razoável 50%.

A argumentação de que uma cota fere a igualdade de direitos só se sustenta se levarmos em conta que, de fato, na sociedade atual, todos os homens - e mulheres - nascem e se desenvolvem em condições de igualdade. E, além disso, que é a capacidade individual o que determina o acesso aos espaços de decisão e poder na sociedade.

Influenciadas por esta visão, uma parte das mulheres resiste à adoção de políticas de ação afirmativa, pois consideram que tais medidas desvalorizam seu esforço e desempenho individual. Pelo contrário, o reconhecimento do caráter social das dificuldades que as mulheres enfrentam na militância política é um elemento central para intervirmos de forma coletiva sobre os mecanismos de opressão na sociedade. Além disso, não nos basta que, como exceção, algumas companheiras possam ascender a postos de direção política, por mais que isso também seja importante. O essencial é alterar a situação das mulheres como gênero. É preciso dizer que uma política que exija uma presença mínima de mulheres nas direções não deve ser confundida com uma visão de construção partidária de tipo "federação" de setores sociais. Uma política de ação afirmativa em relação às mulheres não se contrapõe ao combate às barreiras que diferentes grupos sociais discriminados na sociedade - de caráter nacional, racial, etário, de homossexuais - enfrentam para se expressar social e politicamente. No entanto, se não compreendermos que a opressão de gênero é qualitativamente diferente da discriminação sofrida por estes setores, não sairemos do patamar mais primário da discussão.

Seja pela sua extensão na história, nas diferentes culturas e civilizações, pelo papel econômico que cumpre em função da divisão sexual do trabalho, seja pela complementariedade indissociável da opressão na vida pública e na vida privada e o conseqüente enraizamento nas estruturas sociais e nas consciências individuais, a opressão de gênero tem uma dimensão e um caráter que não são comparáveis aos de outros setores. O PT não pode continuar ignorando esta questão.

O Congresso do partido é um bom momento para começarmos a mudar esta realidade.

Tatau Godinho é membro da executiva Estadual do PT-SP.