Economia

Como romper o ciclo vicioso da má distribuição de riqueza?

Independentemente das posições político-ideológicas e das controvérsias, com exceção de uma minoria de liberais ortodoxos (que, no Brasil, é um número muito menor do que comumente costuma-se imaginar), o fato é que existe um contingente expressivo e, cada vez maior, de analistas reconhecendo que a retomada do processo de desenvolvimento depende de uma expansão significativa dos investimentos públicos em educação, formação de recursos humanos e infra-estruturas econômica e social. Pode-se ir além e afirmar que o argumento de que a estabilização econômica de curto e médio prazos é pré-condição para a retomada do desenvolvimento, está "fora de foco" e que existe uma relação de causa e efeito entre estabilização macroeconômica e retomada do processo de desenvolvimento. Isto é, o argumento de que o ajuste de curto e médio prazos é fundamental para a retomada do desenvolvimento é tão verdadeiro quanto a visão de que somente no âmbito de um processo firme de desenvolvimento auto-sustentado é possível se obter resultados permanentes com uma política de estabilização (controle da inflação e ajuste das contas externas).

A visão estratégica e prospectiva a respeito do binômio "desenvolvimento-estabilização", tendo como motor o aumento dos investimentos públicos em educação e infraestrutura, não se restringe unicamente a economias atrasadas, como a brasileira. Em artigo recente do analista econômico Robert B. Reich ("The Real Economy", The Atlantic Monthly, fevereiro, 1991) afirma que a fragilidade dos Estado Unidos, com relação a certos países da Europa e ao Japão, é o resultado da deterioração de seu potencial econômico. Segundo Reich, a capacidade de o país enfrentar os desafios de curto e médio prazos (recessão, déficit comercial e fiscal), assim como os de longo prazo (perda de competitividade), depende dos investimentos públicos no presente. Na opinião do analista norte-americano, as transformações que vêm ocorrendo na economia mundial (internacionalização, globalização, mudanças tecnológicas e organizacionais etc.) têm tornado ainda mais evidente a importância estratégica de investimentos públicos na infra-estrutura, educação e formação de mão-de-obra.

Existe, assim, um "círculo virtuoso" que vai se tornando cada vez mais evidente neste final de século. A formação de mão-de-obra qualificada, a ampliação do nível geral de educação da população, melhores sistemas de transporte, comunicação, produção de energia e melhoria dos outros componentes da infra-estrutura econômica e social determinam não somente a acumulação de capital, associada ao progresso técnico e à melhoria do nível de vida, como também são fatores que permitem uma inserção internacional mais apropriada. Analistas de países desenvolvidos estão cada vez mais conscientes e convencidos de que investimentos públicos inadequados, em infra-estrutura e educação, geram um "círculo vicioso", caracterizado pela perda de competitividade, desestabilização econômica e vulnerabilidade externa.

Nos países desenvolvidos, a preocupação é que este "círculo vicioso" pode "teoricamente continuar a pressionar para baixo os salários até que os cidadãos do país tenham um padrão de vida semelhante àquele típico dê um país do Terceiro Mundo".

No caso da economia norte-americana, por exemplo, o desinvestimento em infraestrutura e educação tem sido apontado como o principal responsável pela crise que afeta os EUA. Para ilustrar, os gastos do governo federal como uma percentagem do Produto Interno Bruto caíram, no caso de investimentos em capital fixo, de 1,03% em 1975 para 0,75% em 1990, enquanto os gastos com educação caíram de 0,43 % para 0,37 % do PIB, e os gastos com pesquisa e desenvolvimento (de caráter civil) caíram de 0,39 % para 0,31 %, no mesmo período. Nos Estados Unidos, as principais propostas para uma retomada do processo de desenvolvimento com estabilização econômica, tendo como base os investimentos públicos em educação e infra-estrutura, referem-se à maior progressividade do imposto de renda, racionalização dos benefícios da previdência social e cortes nos gastos militares.

Brasil: distribuição de poder, riqueza e renda

Estabilização macroeconômica e retomada do desenvolvimento exigem investimentos crescentes em educação e infra-estrutura. No caso do Brasil, a formação de capital fixo do governo federal, como uma proporção do Produto Interno Bruto, declinou de uma média de 1,5% nos anos 70 para 0,75% no finai dos anos 80, enquanto que o indicador correspondente para as empresas públicas federais caiu de 50 % no final da década de 70 para 1,5 % em 1990. Os gastos com educação no Brasil têm oscilado em torno de 3,0% do PIB e não mostram nenhuma tendência de aumento ao longo da década de 80.

A questão é: Como romper com o "círculo vicioso" de subdesenvolvimento - desestabilização - deterioração da capacidade econômica nacional"? Em outras palavras, de que forma pode-se ativar no Brasil um "círculo virtuoso" de "investimentos em infra-estrutura econômica e social desenvolvimento - estabilização"?

O Brasil dos anos 90 apresenta, em termos do debate político nacional, uma curiosidade: todos os participantes são, com raras exceções, a favor da democracia e da distribuição de renda. Este argumento é válido para conservadores, liberais, social-democratas, socialistas etc. A questão do "consenso democrático" é bastante complexa em si e não é tema deste ensaio. A questão da distribuição de renda, por seu turno, aparece frequentemente no debate como derivada do processo de estabilização e/ou desenvolvimento econômico e, consequentemente, como promessa para um futuro distante!

Contrariamente ao que ocorre nos contingentes liberais ou social-democráticos, os analistas de orientação socialista tendem a inverter a equação tradicional. Assim, a distribuição de renda está divorciada do padrão liberal de estabilização ou de acumulação de capital, conforme demonstrou a própria experiência brasileira contemporânea. Neste sentido, uma visão estratégica e prospectiva, no campo socialista, indica que a seqüência apropriada de "idéias-força" e ações políticas envolvem a distribuição de poder, riqueza e renda.

A questão da distribuição do poder no Brasil passa não somente pelo processo de eleições democráticas e pela negociação política dentro e fora do Congresso, como também pela necessidade imperativa da formação de uma institucionalidade democrática. Isto é, criação de mecanismos que transformem a democracia brasileira num sistema político, no qual o cidadão exercite seus direitos e os veja respeitados. Esta questão da criação de instituições democráticas - que além de absorver a manifestação dos direitos, do protesto etc., sejam capazes de promover o efetivo respeito aos direitos dos cidadãos - é absolutamente prioritária no debate nacional e para o processo de organização da sociedade civil. A "conquista da hegemonia" exige, numa relação de causa e efeito, a formação de uma institucionalidade efetivamente democrática no país.

A relação entre a questão da distribuição de poder, por um lado, e distribuição de riqueza e de renda, por outro, passa no momento atual pelo processo de articulação política do Partido dos Trabalhadores com os diferentes atores políticos que atuam no cenário nacional. Em outras palavras, uma preocupação central para o PT é a de encaminhar propostas alternativas, que permitam a retomada do processo de desenvolvimento cum estabilização, que estejam vinculadas a uma distribuição de riqueza e renda no Brasil.

Nas hostes liberais, a distribuição de riqueza é anátema e a distribuição de renda é um derivativo do processo de acumulação de capital (e, eventualmente, de uma Estado distribuidor de serviços). A orientação socialista, por sua vez, indica que a retomada do processo de desenvolvimento significa a compreensão da distribuição de riqueza e de renda não somente como fim em si mesma, mas também como instrumento a ser utilizado "hoje e aqui mesmo", para se criar um "círculo virtuoso" de investimentos públicos - desenvolvimento - estabilização.

Distribuição da riqueza e o imposto da solidariedade

Como é de conhecimento geral, o Brasil é campeão em termos de concentração da renda. Menos conhecido, entretanto, é o fato de que a riqueza é ainda mais concentrada no país. Os dados disponíveis mostram a distância que existe entre o Brasil e os países desenvolvidos, em termos de distribuição de riqueza e renda. Assim, o 1% mais rico responde por 17% da renda e 53% do estoque de riqueza do país, enquanto que nos EUA estes coeficientes são de 8% e 26%, respectivamente.

Assim, constatamos até aqui que o Brasil possui uma distribuição de riqueza extremamente concentrada e que há urgência de se criar no país um "círculo virtuoso" de desenvolvimento cum estabilização, tendo como base os investimentos públicos em infra-estrutura econômico-social e em educação. Temos, então, como questão central: É possível realizar uma distribuição de riqueza a curto prazo que tenha como efeito imediato a criação do "círculo virtuoso" necessário para a retomada do desenvolvimento? Em outras palavras, dentro dos limites políticos possíveis, determinados por um processo de negociação amplo e com a participação ativa do PT, até que ponto uma política de distribuição de riqueza poderia ter um impacto importante no financiamento de investimentos públicos fundamentais em infraestrutura e educação?

Em praticamente todos os países da Europa Ocidental, que após a 2º Guerra Mundial fizeram mudanças estruturais nas suas economias, foi estabelecido um imposto sobre o estoque de riqueza dos grupos mais privilegiados da sociedade.

Este tributo, chamado pelos franceses de imposto de solidariedade, é diferente de uma taxação anual sobre a riqueza. Na realidade, ele pode ser complementado por um tributo anual, isto é, pelo que a Constituição brasileira no seu artigo 153 denomina imposto sobre grandes fortunas.
A proposta de aplicação de um imposto "único e de uma vez por todas" passa inicialmente pela discussão das seguintes questões: Quais os objetivos que se pretende alcançar com tal imposto? Quem serão os contribuintes? Qual será a base de incidência? Quanto eles pagarão? Qual o período de pagamento? Quais as condições para a sua efetiva aplicação" Quais os seus efeitos?

O objetivo do imposto de solidariedade é, vale repetir, permitir a ruptura do "círculo vicioso" (subdesenvolvimento - desestabilização - deterioração da capacidade econômica nacional) e a inauguração de um novo "círculo virtuoso" (investimentos públicos - desenvolvimento - estabilização).

A própria denominação de imposto de solidariedade sugere uma não-neutralidade. A questão é: Quem serão os contribuintes?

A inexistência de informações sistemáticas e dados detalhados sobre o valor do estoque e distribuição da riqueza no Brasil dificulta em parte a resposta a esta pergunta. Não obstante, a utilização de informações e dados esparsos, assim como alguns exercícios aritméticos preliminares, nos permitem ter uma idéia com relação à ordem de magnitude, tanto do conjunto de contribuintes potenciais como da base de incidência deste imposto.

A realidade brasileira indica que o conjunto potencial de contribuintes para o imposto de solidariedade não seria relativamente grande. Isto porque a concentração de renda no Brasil é particularmente elevada, de forma que os 10% mais ricos apropriaram-se de mais da metade da renda nacional, enquanto o top 1 % responde por cerca de 1/5 da renda. Visto que a distribuição da riqueza é ainda mais concentrada do que a da renda, é provável que o contingente de potenciais contribuintes do imposto de solidariedade represente entre 0,5% e 1% da população economicamente ativa. Isto significa algo entre 300 mil e 600 mil indivíduos, ou cerca de 150 mil a 300 mil famílias, supondo dois adultos por família. Vejamos outros dados: a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio) indica que 0,5% da população economicamente ativa ganha mensalmente mais de 40 salários-mínimos. Ademais, dados do imposto de renda da pessoa física mostram que um pouco mais de 400 mil declarantes (6% do total de contribuintes) respondem por aproximadamente 1/4 do rendimento bruto total declarado.

Qual será a base de incidência e quanto estes grupos mais ricos da sociedade contribuirão através do imposto de solidariedade? Estimativas preliminares informam um estoque bruto de riqueza pessoal de US$ 1,219 bilhão, em 31 de dezembro de 1989. Este estoque de riqueza está composto da seguinte forma: ativos físicos, 68,9%; ativos financeiros, 10,5%; patrimônio líquido das empresas, 16,5%; e bens de consumo duráveis, 4,1 %. Estimativas para o estoque de riqueza do top 1% indica, como ordem de magnitude, o valor total de US$ 647 bilhões. Esta estimativa implica um estoque médio de riqueza da ordem de US$ 2,2 milhões para as 300 mil famílias. A composição do estoque de riqueza dessas famílias também indica os ativos físicos e o patrimônio das empresas como os itens mais importantes. A participação do top 1% na riqueza pessoal total seria, assim, de 53,1%, correspondendo a uma participação na renda nacional de 17,3%, em 1989. Os testes realizados mostram uma certa consistência com os dados disponíveis no plano internacional no que concerte à relação entre a distribuição da renda e da riqueza.

O pagamento deste imposto poderá ser feito através dos próprios títulos públicos, moeda, ações, terras ou outros ativos. Cabe também mencionar, que propostas apresentadas na Grã-Bretanha nos anos 20, rediscutidas nos debates dos anos 70, indicavam um sistema progressivo com alíquotas variando de 20% a 60%. Supondo, como primeira alternativa, que sobre o estoque de riqueza do 1 % mais rico do país incida uma taxação, única e de uma vez por todas, de 10% (imposto médio efetivo), a partir das estimativas acima isto representaria aproximadamente 65 bilhões de dólares. Como segunda hipótese, supomos uma taxação efetiva de 15%, o que representaria um pagamento de US$ 97 bilhões. O impacto sobre os agregados macroeconômicos resultante de aplicação do imposto de solidariedade seria bastante significativo. Assim, supondo que o prazo para o pagamento do imposto seja de dois anos e um PIB de US$ 382 bilhões, o imposto de solidariedade representaria, nas duas hipóteses, entre 8,5% e 12,7% do PIB. Um simples confronto destes efeitos com os gastos do governo federal mencionados no início do ensaio mostra que seria possível, no curto prazo, duplicar e até mesmo triplicar os investimentos públicos em infra-estrutura econômico-social e educação!

Vale ressaltar, que o imposto de solidariedade diferencia-se bastante do imposto sobre grandes fortunas incluído na Constituição brasileira, a ser definido por lei complementar. Este último é um imposto anual sobre o patrimônio ou estoque de riqueza e, significa, na realidade, um incremento do imposto sobre a renda dos grupos mais privilegiados da sociedade. O imposto de solidariedade, por seu turno, seria aplicado "de uma vez por todas" durante um período curto de tempo (máximo de dois anos, em face das dificuldades atuais da economia brasileira). Assim, enquanto o imposto sobre as grandes fortunas previsto na Constituição e a revisão dos outros tributos patrimoniais significariam uma receita adicional anual de 0,4% do PIB, o imposto de solidariedade poderia representar uma contribuição anual de até 13,0% do PIB durante o período de pagamento de dois anos.

O imposto de solidariedade permitiria, então, o financiamento do processo de transição do "círculo vicioso" para o "círculo virtuoso" de desenvolvimento a partir de investimentos públicos em infra-estrutura e educação. Na realidade, o efeito fiscal do imposto de solidariedade é de tal ordem que problemas estruturais importantes como o da alimentação, miséria rural e outros, poderiam receber recursos vinculados a este imposto.

Cabe ainda mencionar dois aspectos particularmente importantes do ponto de vista político. Em primeiro lugar, o imposto de solidariedade só é viável com uma mobilização geral da sociedade, mostrando os seus benefícios e racionalidade. Isto implica mostrar claramente, no conjunto de um amplo processo de negociação política, quem vai contribuir e de quanto vai ser esta contribuição, em termos absolutos e relativos. A mobilização geral da sociedade também surge como condicionante significativo do grau de estabilidade do processo político durante sua implementação. Em segundo, é fundamental que os grupos privilegiados que vão pagar este imposto e, consequentemente, mostrar a sua "solidariedade" para com o resto da sociedade e dar a sua cota de sacrifício, tenham a expectativa de que o imposto será, de fato, aplicado "de uma vez por todas", e que não será repetido no futuro. Isto é, estes grupos têm que estar convencidos quanto aos objetivos, natureza e magnitude da sua contribuição para o processo de desenvolvimento cum estabilização econômica do país.

Igualmente, um imposto de solidariedade da ordem de 10% a 15% ainda significaria a permanência de um grau extremamente elevado de concentração da riqueza no país, visto que a participação do 1% mais rico cairia de 53 % para algo entre 45 % e 48 %. Afinal de contas, o imposto de solidariedade ainda significaria para as elites econômicas do Brasil um preço relativamente baixo e nem mesmo "perderiam os anéis..."

Para concluir, a implementação do imposto de solidariedade depende de um amplo processo de negociação política envolvendo uma multiplicidade de atores políticos. Neste processo o PT tem um papel fundamental que passa, inclusive, por um importante trabalho de ação política no sentido de mostrar à sociedade brasileira que o imposto de solidariedade pode se constituir em uma proposta alternativa, economicamente racional e socialmente justa, para o rompimento do "círculo vicioso" em que nos encontramos e para a inauguração de um "círculo virtuoso", tendo como base de partida os investimentos públicos em infra-estrutura e educação, de desenvolvimento e estabilização.

Reinaldo Gonçalves é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.