Nacional

A esquerda normalmente articula a defesa de reivindicações com a propaganda de um róseo socialismo futuro. O PT não pode atuar sobre esta base. Antes de mais nada, precisamos apresentar opções concretas para o presente.

A sensação de que o governo federal envelheceu rapidamente está disseminada pela sociedade. Feitas as contas, apesar do poderoso esquema de marketing, Collor pouco tem para celebrar decorrido mais de um ano do seu mandato. As promessas mirabolantes feitas durante a campanha nem de longe foram realizadas. São nítidos os sintomas de descoordenação política. E, o mais grave, o núcleo da política do governo e o seu modo característico de governar sofreram derrotas contundentes.

O Plano Collor I fracassou por inteiro. Tudo indica que o tempo de vida de seu sucedâneo será ainda menor. O processo inflacionário - transformado em problema quase que exclusivo pelo presidente e sua equipe - não foi debelado e, além disso, o país foi jogado numa recessão de gigantescas proporções que está aprofundando a crise econômica. Se considerarmos que a década de 80 - segundo economistas de diversos matizes - foi perdida em termos de desenvolvimento e que o Produto Interno Bruto caiu 4,6% somente no primeiro ano da era Collor, não será difícil dimensionar os prejuízos irreparáveis que a atual política econômica já causou e continua causando ao conjunto do sistema produtivo nacional.

Na esteira da queda da produção e da desorganização da economia está, obviamente, o agravamento das condições sociais, com o arrocho salarial e o desemprego em níveis brutais. Isto num quadro onde o Estado, falido e prisioneiro de interesses privados e corporativos, é incapaz de dar conta das demandas mais elementares da população. Não é por acaso que são cada vez mais evidentes os sinais de deterioração e esgarçamento do tecido social. As expectativas dos "descamisados" cedem lugar às frustrações e ao desespero.

Por outro lado, o estilo "bonapartista" que se tornou a marca registrada do governo terminou por atritá-lo inclusive com sua base de sustentação parlamentar e com importantes parcelas do empresariado. É certo que os segmentos dominantes e os políticos tradicionais, frente à auto-suficiência e à arrogância do então candidato, em nenhum momento depositaram nele total confiança. Contudo, lembrados do susto que tiveram durante as eleições presidenciais com a quase vitória de Lula e diante da ausência de opções, viram-se todos na contingência de apostar suas fichas em Collor. Afinal, embora anunciasse uma relação diferente com a burguesia e insistisse na idéia da independência, as linhas gerais de sua política eram claramente favoráveis ao grande capital. E era isto essencialmente o que contava.

A atitude intempestiva e a recusa em estabelecer um diálogo mesmo com os setores mais próximos, somados à derrocada do Plano Collor I e à decretação unilateral do inconsistente Plano Collor II minaram a credibilidade do presidente e do poder executivo. De tal forma que prestigiados economistas da direita, industriais e banqueiros de peso e políticos conservadores de renome passaram a criticá-los abertamente. Collor passou a experimentar um isolamento social e político inimaginável para quem, há apenas um ano, tomou posse e decretou suas primeiras medidas sustentado por um cacife eleitoral de mais de 34 milhões de votos.

A intenção inicial do presidente era assegurar a governabilidade com o sucesso de sua política econômica (identificado com a queda da inflação) e com uma relação de tipo imperial, por cima e direta, com a grande massa desorganizada da população. Assim, a vocação autoritária e o estilo auto-suficiente eram, em larga medida, funcionais, revelavam uma aparência de coragem e determinação para enfrentar as dificuldades. O problema é que esse projeto não deu certo, o "bonapartismo" tupiniquim teve fôlego curto. Derrotado, o governo foi obrigado a alterar sua conduta iniciando uma nova fase, na qual precisa articular ao seu voluntarismo a disposição de negociar com outros agentes políticos.

Não há, porém, que se enganar com essa súbita disposição de negociar manifestada pelo governo. Ela não é muito democrática. Desprovido de uma base parlamentar confiável e de alianças sociais consistentes, Collor está tendo que recorrer aos métodos políticos tradicionais da elite brasileira, os quais na verdade ele nunca recusou. A relação estabelecida com os novos governadores, onde a liberação de recursos da União é condicionada ao apoio às iniciativas governamentais, evidencia um desses métodos. Outro foi sugerido pela ida do presidente ao sítio de Pericumã para entabular conversações com seu ex-desafeto José Sarney. Ainda outro se explícita na ofensiva do governo sobre setores dos partidos de oposição moderada, visando cooptá-los com a sedução do poder. Em suma, o governo Collor não abandonou o autoritarismo: reciclou-o e adicionou a velha fórmula que combina fisiologismo e cooptação.

O importante é perceber que a sustentação da governabilidade sofreu no último período um deslocamento de envergadura, passou a depender de que o governo administre uma complexa relação envolvendo sobretudo o Congresso Nacional e os governadores. Collor continua com os lances pirotécnicos e as jogadas de marketing objetivando recuperar a credibilidade abalada e ampliar seu espaço de iniciativa. Mas o destino do processo político e do governo depende agora muito mais do equilíbrio da relação já mencionada.

Fazer previsões sobre o futuro desse país é sempre arriscado. Embora não esteja totalmente descartado, é improvável um cenário de bancarrota e falência completa do governo. Certamente, a situação falimentar do setor público, a escassez de recursos e a vocação autoritária do executivo federal serão fatores de complicação da nova governabilidade. Aos governadores e aos setores mais fortes do Congresso Nacional não interessa um quadro de desestabilização do governo Collor. Como também não interessa o seu sucesso.

A plena recuperação do governo é igualmente improvável. Além das dificuldades internas mencionadas, às quais devem ser acrescidas a crise econômica e o agravamento dos conflitos sociais, a situação internacional é altamente desfavorável ao ajuste que o governo vem pretendendo implementar. A integração subalterna ao Primeiro Mundo idealizada pela equipe de Collor tem sido obstaculizada pelo quadro de conflito e isolamento enfrentado pelo Brasil no plano externo. Nosso país está à margem das grandes inovações tecnológicas e econômicas que estão em curso nas nações capitalistas desenvolvidas. As inversões de capitais cada vez mais se circunscrevem a estas mesmas nações. Um país de Terceiro Mundo como o Brasil, premido por crises permanentes e por um forte endividamento externo, é pouco atraente e de altíssimo risco.

Se estas considerações estiverem corretas, devemos então trabalhar com a idéia de que o governo Collor deverá completar os anos de mandato que lhe restam em um contexto de grande instabilidade, marcado por tensões sociais, crises ministeriais, dificuldades econômicas e polarizações políticas.

A crise e as propostas de saída

O insucesso da estratégia inicial do governo obrigou-o a realizar mudanças políticas e de conduta para tentar reconquistar o terreno perdido e adquirir novo fôlego. Reabriu, também, com dramática intensidade, a discussão sobre a crise nacional e as opções de saída, em curto e médio prazos. As diferentes forças políticas estão tendo que apresentar suas propostas e sugestões. Para os setores da oposição, impõe-se a resolução de uma difícil equação: fazer frente ao governo por meio de projetos que contenham respostas imediatas para a crise e, ao mesmo tempo, construir-se como alternativa para os próximos embates políticos que virão. A eventual aprovação do parlamentarismo não diminuirá o significado político da disputa eleitoral de 94, pois será um momento em que teremos eleições praticamente gerais no país: para presidente da República, governadoreA esquerda normalmente articula a defesa de reivindicações com a propaganda de um róseo socialismo futuro. O PT não pode atuar sobre esta base. Antes de mais nada, precisamos apresentar opções concretas para o presente.

Consciente do que está em jogo no atual momento, Quércia movimenta-se com desembaraço e reconhecida competência no tabuleiro político. Sua linha, apesar de ambígua, é cristalina: oposição moderada ao governo federal para, a um só tempo, aparecer como fiador da governabilidade e líder oposicionista. O lançamento da idéia de um programa de desenvolvimento para o país, ancorado na imagem de "tocador de obras" difundida durante a gestão, do governo paulista, faz o contraponto com a política recessiva de Collor. O apoio ao mesmo aparece no posicionamento dos peemedebistas no Congresso Nacional acerca de algumas questões decisivas para a política governamental. Contando com uma bancada de parlamentares forte e afinada e com o apoio engajado de uma parcela expressiva de governadores, Quércia empenha seus esforços na reconstrução política e orgânica do PMDB. Desde já, coloca-se como candidato para 94 e busca assumir a condição de favorito. Tende a tornar-se o candidato preferencial das camadas dominantes.

A situação de Leonel Brizola é bem mais complicada. Sua movimentação política têm pontos de contato com a operada por Quércia, mas com diferenças importantes. Brizola depende decisivamente dos recursos do governo federal - a viabilização dos governos estaduais do PDT, sobretudo do seu no Rio de Janeiro, é vital para o seu futuro. Ao mesmo tempo, por seu perfil político e seu vínculo com setores populares, Brizola precisa apresentar uma firme imagem oposicionista. Resolver este dilema não tem sido fácil para o PDT que, não raras vezes, encaminha uma política esquizofrênica em escala nacional.

A posição mais difícil dentre os principais partidos de oposição sem dúvida é a do PSDB. Indeciso quanto à postura que deve adotar diante do governo federal, o PSDB passa a nítida impressão de estar desorientado. Sem candidato definido, para 94 e enfraquecido após as eleições do ano passado, concentra suas energias na defesa do parlamentarismo. A persistir a dinâmica atual, o PSDB corre risco de perder ainda mais força na cena política.

O desafio da esquerda

Frente ao patamar alcançado pela esquerda - cuja expressão maior e incontestável é o PT - nas eleições presidenciais de 89, é evidente que espaços preciosos foram perdidos no período mais recente. No ano passado, apesar do número expressivo de parlamentares eleitos pelo PT, não conseguimos nos apresentar como pólo de oposição viável na disputa dos governos estaduais mais importantes. O Governo Paralelo, por motivos diversos, até o momento não deslanchou. E, o que é mais sério, não temos sido eficazes na oposição ao governo Collor.
Parece claro que as exigências políticas da atualidade são complexas e que não estamos respondendo a elas de maneira adequada, embora não tenhamos cometido nenhum erro político capaz de comprometer nossa trajetória. A verdade é que nossas formulações vêm se demonstrando absolutamente insuficientes, e isto não é um fato sem importância para um partido que aspira conquistar a hegemonia e governar o país.

Apesar de já termos percebido a necessidade de desenvolver um caminho político alternativo, assumindo também uma atitude positiva, o certo é que nossa conduta política continua sendo muito determinada por concepções simplificadoras e equivocadas. A esquerda normalmente articula a defesa do rol de reivindicações dos movimentos sociais com a propaganda da sociedade socialista ideal do futuro. Lógico que tais tarefas são necessárias, ainda que se deva discutir o modo de abordá-las e o conteúdo do que é proposto. Entretanto, um partido que sustente fundamentalmente sua atuação política sobre esta base é incapaz de operar com propostas para o presente. Seu discurso não fará mais do que transitar de uma posição corporativa para uma posição doutrinária e se revelará impotente para opinar sobre a organização do Estado e da sociedade, questões cruciais para se pensar um projeto político digno desse nome.

A polêmica ocorrida em torno da posição adotada pela bancada federal do PT na discussão dos salários demonstra o impasse que vivemos. A bancada, em conjunto com a Executiva Nacional, em vez de recusar simplesmente a política do governo, apresentou uma alternativa que aglutinou um amplo leque de forças de esquerda e centro-esquerda. Diante disso, não foram poucos os que manifestaram seus receios e, ato contínuo, defenderam que o PT se fixasse em torno de propostas sabidamente inviáveis, com o intuito de marcar posição. Contudo, a linha aplicada foi o que nos permitiu polarizar os debates sobre o assunto, sinalizar para a sociedade a existência de uma opção e, finalmente, demarcar nossas diferenças com o governo.

O grande desafio que temos de enfrentar - ao recusar a política do entendimento que, além de ser uma farsa, implica a capitulação frente ao governo - é justamente o de não cair no maniqueísmo característico de boa parte da esquerda. A política de marcar posição e propagandear a doutrina pode ser excelente conforto para os mais afoitos, mas a sua consequência seria o isolamento e a liquidação do PT como alternativa política.

Construir uma alternativa

A construção de uma alternativa política nacional é certamente a principal questão colocada para um partido político da importância e do significado do PT na sociedade brasileira. Além de ser o melhor caminho para que qualifiquemos nossa política de oposição ao governo Collor, é o que irá nos permitir travar uma disputa politizada com outras forças partidárias. O enfrentamento com o quercismo, para citar apenas um exemplo, envolve novas exigências, vinculadas à contraposição de projetos.

A política de oposição ao governo federal implica dar conta de múltiplas tarefas. É necessário articular forças para, simultaneamente, derrotar os planos governamentais, estabelecer, por meio de soluções diferenciadas, a polarização política com seus projetos e obter, inclusive, concessões através da negociação de pontos localizados. A intensificação das lutas sociais e uma correta intervenção no Congresso Nacional são decisivas na implementação dessa política.

Os movimentos reivindicatórios, após um período marcado por certa defensiva, diante da crise do governo e do agravamento da recessão, do arrocho e do desemprego, começam a ganhar nova vitalidade, acirrando os conflitos sociais. Ao PT, e especialmente à CUT, cabe a função de unificar e politizar as mobilizações, vinculando-as com o processo de construção da alternativa. Particular importância adquire a pressão política sobre o Congresso Nacional. O Parlamento, em decorrência dos impasses do governo mas também do trabalho de alguns partidos, com destaque para o PT, vem se constituindo em um espaço privilegiado de discussão e, em parte, de definição das políticas econômicas e sociais. A própria instalação do fórum de debates no Congresso - fórum integrado pelos partidos e que conta com a participação de entidades da sociedade civil - é indicativo desta situação. É preciso investir esforços no fortalecimento desta tendência, pois se soubermos combinar um movimento social vigoroso e politizado com uma postura agressiva da bancada federal do PT, inclusive para realizar alianças mais amplas, será possível barrar, no Congresso, políticas antipopulares de Collor e aprovar propostas que sinalizem outra opção de saída da crise.

A construção de uma alternativa política remete centralmente para a elaboração de um projeto nacional, capaz de articular respostas imediatas que ataquem a crise conjuntural, com formulações de repercussão estratégica que busquem dar conta da crise estrutural existente em nosso país. O Programa de Ação de Governo da candidatura Lula foi, sem dúvida, um primeiro e importante esforço nesse sentido. Cabe, porém, ir mais longe.

Um projeto nacional não é algo que possa ser produzido com base no esforço intelectual de alguns técnicos e políticos, por mais capacitados que sejam, e nem no âmbito exclusivo de um partido político. Ele requer o concurso ativo da sociedade civil e dos movimentos sociais, um intercâmbio fecundo com os diversos sujeitos políticos e sociais, incluindo outras forças partidárias comprometidas com uma perspectiva de mudanças profundas na sociedade brasileira. Entretanto, um partido de esquerda disposto a enfrentar esse desafio terá que tratar de algumas questões vitais. Elas incluem a redefinição da função econômica do Estado e do setor estatal da economia, a reformulação do sistema eleitoral e dos critérios de representação parlamentar, a reforma do Legislativo e do Judiciário, a democratização dos meios de comunicação, a reforma administrativa, o fim da tutela militar, o combate à violência e à defesa dos direitos humanos, o estabelecimento de normas democráticas de controle do Estado pela sociedade etc. São essenciais também um conjunto de reformas econômicas e políticas que visem um desenvolvimento voltado para a promoção da cidadania. Entre elas podemos destacar a política de desenvolvimento industrial e de ciência e tecnologia, a política salarial e de distribuição de renda, a política de relação com o capital estrangeiro, com a economia mundial e de tratamento da dívida externa, a reforma agrária, a política agrícola e de abastecimento, a política tributária etc.

Finalmente, é importante dizer, ainda que de passagem, que uma alternativa para o Brasil não será construída sem que, em torno de um projeto nacional, se articule um leque abrangente de camadas sociais e de movimentos da sociedade civil e também um poderoso bloco político. Isso impõe, evidentemente, a rediscussão do problema das alianças no sentido de uma ampliação criteriosa.

José Genoino é deputado federal e líder da bancada do PT na Câmara.

José Eduardo Utzig é membro da Executiva Estadual do PT/SP.