Internacional

A pax americana tem um preço alto. Depois de exibirem seus músculos no Oriente Médio, os Estados Unidos estão usando as antigas ligações brasileiras com Sadam Hussein para acelerar o ajustamento do bisonho Collor à "nova ordem".

O Golfo Pérsico ou simplesmente o Golfo onde se localiza a maior jazida de petróleo do mundo - tornou-se o centro de gravidade do Oriente Médio, uma designação regional impregnada de ponta a ponta por agressivo conteúdo militar. Área de atrito multissecular e hinterland do Golfo, o Oriente Médio está submetido a uma guerra permanente, com freqüentes confrontos armados abertos, de curta ou longa duração, intermináveis guerras civis (Líbano), além da ininterrupta e feroz repressão à resistência das minorias nacionais (palestinos, curdos). O que lá ocorre no presente momento, depois da sanguinolenta exibição de força dos Estados Unidos, não é propriamente um após-guerra, mas apenas um intervalo para o próximo conflito, permeado por uma guerra civil.

Grosso modo, pode-se distinguir três fases na história do Oriente Médio, o que, pelo menos, permite identificar os sucessivos fatores dominantes no destino da região. Primeiro, na confluência e sob a influência de três continentes - Europa, Ásia e África - a região funcionou como via comercial, rota estratégica para o ataque e/ou retirada militar, encontro (interinfluência) de culturas - um centro de atração/ repulsão do mundo então conhecido pelo Ocidente. É um cenário passivo. A geografia condiciona a história.

Em seguida, o fator geográfico é subvertido pelos avanços tecnológicos (a Escola de Sagres, por exemplo). O mercado mundial nascente desqualifica o Mediterrâneo em beneficio do Atlântico. Mais ainda: a História corrige a Geografia (abertura do Canal de Suez). A Europa, isto é, o capitalismo, invade o Oriente Médio, que entra no mercado mundial como área colonizada. Com a descoberta do petróleo, começam os choques interimperialistas pelo domínio da região. Às margens do Golfo, surgem numerosos "estados" e "países", ao sabor da correlação de forças entre as potências. Xeques e emires entram no negócio fabuloso do petróleo, aliam-se/submetem-se a uma determinada potência, guerreiam uns contra os outros. É a mais nítida experiência internacional de classes dominantes indígenas que se tornam instrumento da dominação e espoliação estrangeira. Inserem-se na grande burguesia mundial (como o emir kuaitiano Sabah, sócio e acionista de poderosas multinacionais e, no Brasil, sócio maior de Roberto Marinho, no Arab Bank, credor do nosso país). Por força de tal progresso, em 1961, o Kuait foi proclamado "país soberano" pelos ingleses.

Esse é um tempo de guerras mundiais. O capitalismo, por razões de mercado, optou pelo petróleo (ceifando as alternativas existentes, bloqueando ou atrasando calculada e intencionalmente a descoberta e o uso de novas fontes de energia) e por ele derramou o sangue da juventude. "Os aliados venceram navegando num mar de petróleo", sintetizou Georges Clemenceau, no fim da 1º Guerra Mundial, desmerecendo um tanto a glória de generais, brigadeiros e almirantes. Na 2º Guerra Mundial, as potências lutaram encarniçadamente ao longo do litoral norte-africano, isto é, nos caminhos rumo ao Golfo.

A terceira fase, embora conservando em boa parte o peso relativo da geografia e sob a influência devastadora do egoísmo burguês, está marcada por um novo e dinâmico fator que ameaça subverter o quadro. O Oriente Médio começa a deixar de ser um instrumento passivo nas garras do colonialismo. Grandes massas humanas, em processo de auto-afirmação nacional e auto-organização social, algumas vezes sob formas religiosas, outras já com apoio operário organizado, em variantes e combinações diversas, superam o imobilismo no enfrentamento com os desumanizados monopólios capitalistas.

Já na 1º Guerra Mundial, as confabulações não podiam mais ser limitadas às concessões e royalties do petróleo. Foi preciso prometer (para descumprir em seguida) independência nacional aos árabes. Impunha-se um fator político autóctone. Era preciso levar em conta a existência dos povos árabes. Na ótica imperial-burguesa, isto encareceu a colaboração de xeques, emires e da emergente burguesia entreguista.

A expressão mais alta desta luta pela independência, pela liberdade e autodeterminação é o povo palestino, ao lado de curdos e outras nações sem-terra. Soma-se, portanto, um novo imperativo às velhas razões intervencionistas dos Estados Unidos: aplicar uma lição exemplar de repressão aos povos em processo de rebelião no Oriente Médio e em todo o Terceiro Mundo. "Força é a linguagem que todo mundo entende no Oriente Médio. Democracia é um desperdício", pontifica Paulo Francis do alto de sua tribuna no Estadão, como porta-voz confiável. "A guerra é justa", sentenciou Celso Lafer, no Jornal do Brasil, extasiado e reverente ante a eficácia das "armas inteligentes". Isso é que é cultura e humanismo liberal burguês.

Neste contexto, é útil reconstituir a genealogia da guerra no Golfo através de uma cronologia dos lances estratégicos que nela se sucederam. A relação desses acontecimentos tem uma cadência própria, caracterizada por intervalos de mais ou menos meio século.
Em 1798, Napoleão Bonaparte desembarcou uma força expedicionária no Egito. Não foi para dar cobertura à pesquisa do arqueólogo Jean François Champollion para decifrar os hieróglifos, mas para golpear a Inglaterra. Contemplando as pirâmides, Napoleão conclamou os judeus para o Retorno ao Oriente Médio. Foi a primeira oferta de patrocínio a um Estado judeu feita por uma grande potência européia. Um lance estratégico precursor que Alemanha e Inglaterra imitaram na 1º Guerra Mundial. "Os generais alemães aprenderam até a falar o iídiche", ironizou Rosa Luxemburgo. Queriam a simpatia dos judeus russos fugidos dos pogroms e refugiados nos Estados Unidos, para que impedissem a entrada dos americanos na guerra ao lado da Inglaterra e da Rússia. Os ingleses visavam o apoio da coletividade judaica para escorar a entrada dos Estados Unidos na carnificina em troca do Lar Nacional.

Em 1853, em busca do controle do Oriente Médio, o czar de todas as Rússias firmou um acordo com o sultão da Turquia para a proteção das minorias ortodoxas no Império Otomano. O chanceler alemão Otto von Bismarck vetou o estranho ecumenismo e promoveu a anulação do tratado. Três anos depois, o kaiser alemão aprovou a construção da ferrovia Berlim-Bagdá. O objetivo é óbvio: o acesso ao Golfo.

Em 1943, depois da retirada aliada de Dunquerque (após o fracasso da primeira tentativa de abertura de uma segunda frente na guerra contra Hitler), o primeiro-ministro inglês Winston Churchill empregou duas das quatro divisões que sobraram, para uma última linha de defesa e enviou as outras duas para Suez. A rota do Golfo, no entendimento do velho lobo, tinha o mesmo valor estratégico que o próprio território britânico.

Finalmente, em 1990 e 1991, os Estados Unidos dão continuidade à série com a arrasadora intervenção no Golfo. É uma linha de descendência direta. Não há folha de parreira suficiente para esconder as vergonhas desta guerra. Ela reproduz e amplia as taras próprias de sua árvore genealógica.

O Capital vence

O fim da Guerra Fria, simbolizado na demolição do Muro de Berlim, visto em perspectiva, foi uma derrota simultânea dos Estados Unidos e da União Soviética. Ambos os contendores da corrida armamentista entraram em declínio e tiveram que ajustar-se a um processo de realinhamento de poder na arena mundial. A URSS perdeu a Guerra Fria para os EUA e ambos perderam a competição econômica com os derrotados da 2º Guerra - Alemanha e Japão. A URSS foi rebaixada a mera potência regional, embora ainda superarmada. Os americanos conservam o poderio militar de ontem mas não têm mais base econômica suficiente para sustentar o status de superpotência.

"Pode soar estranho" - escreveu o senador americano -David Boren - "mas não compreendemos plenamente que o declínio da União Soviética pode levar ao declínio dos Estados Unidos. Enquanto existia uma ameaça soviética Pacto de Varsóvia etc. - os países europeus necessitavam dos Estados Unidos..." Como se sabe, com o fim da Guerra Fria acabou o pretexto para as astronômicas despesas do Pentágono, forçado a admitir severos cortes nas verbas militares, já que o déficit orçamentário americano para o ano fiscal de 1991 é de 380 bilhões de dólares. A própria indústria bélica já ostenta as marcas da decadência. "Armas inteligentes", ironizou a revista Business Week, "mas com cérebro estrangeiro". As alternativas americanas? Investir na recuperação econômica, redirecionando as verbas destinadas a pesquisas militares, ou usar o remanescente poderio militar para trocar força armada por vantagens econômicas e funcionar, na nova constelação internacional, como polícia do grande capital contra novos inimigos a serem mantidos em obediência e submissão.

"É provável que sejam ainda mais importantes, no futuro, os motivos que nos fizeram usar a força na Coréia, no Vietnã e em Granada", escreveu no Armed Forces Journal o senador John McCain. "A glasnost não altera o fato de se produzirem a cada ano 25 conflitos civis e internacionais. É uma ameaça direta à economia americana, que depende vitalmente do fluxo uniforme do comércio mundial. E seus aliados são ainda mais dependentes do Terceiro Mundo. Na falta de qualquer outra solução adequada, os EUA devem assumir a responsabilidade da proteção das rotas comerciais e do suprimento de matérias-primas".

Essa opção policial-militar começou a ser implementada há muito tempo. Antes de mais nada, foi preciso dissolver a "síndrome do Vietnã": o medo generalizado da derrota ante povos que não têm nada a perder, senão as algemas. O processo adotado foi gradativo: guerra de "baixa intensidade" contra a Nicarágua sandinista e contra a guerrilha salvadorenha, o exercício de invasão de Granada e a intervenção no Panamá - operações sempre com certeza de êxito. Essa foram escalas preparatórias para o assalto ao Golfo, onde não houve uma guerra propriamente dita, mas um conflito fora do padrão clássico, sem uma batalha sequer, apenas escaramuças. Sadam Hussein foi o inimigo ideal para os objetivos americanos - um tirano de biografia altamente vulnerável, opressor implacável do povo iraquiano, enforcador contumaz de adversários políticos, assassino e exterminador da liderança sindical independente e dos partidos operários, carrasco do povo curdo e incapaz de aceitar a organização e resistência do povo, mesmo na hora do risco mortal. Saddam conduziu-se exatamente como Bush esperava e queria. Aceitou as provocações do Kuait, inspiradas pela CIA - a começar pelo sufoco dos preços baixos do petróleo -, acreditou na afirmação da embaixadora April Glaspie de que os EUA não interviriam e saltou para dentro do alçapão kuaitiano.

Diplomaticamente, Bush encontrou mais resistência no vacilante Mitterrand do que em Gorbachev. A URSS trocou o direito de primogenitura por um prato de lentilhas, votou pela guerra no Conselho de Segurança da ONU ao simples aceno de um punhado de dólares. O isolamento político e o bloqueio econômico tornaram Sadam um alvo indefeso, inerme.

Sem oferecer a menor resistência, o Iraque foi martelado incessantemente por mortíferos bombardeios, semanas a fio, sem parar, dia e noite. A mentira dos bombardeios "cirúrgicos" foi para esconder centenas de milhares de cadáveres. Toda a infra-estrutura moderna do país foi literalmente calcinada, enquanto a aviação iraquiana se refugiava no Irã. O fogo antiaéreo de Bagdá foi pouco mais do que espetáculo pirotécnico na TV, para realçar a eficácia americana. O país regrediu à era pré-industrial, denuncia um relatório da ONU. Outro documento, sobre a "geração perdida", calcula em cinco milhões o número de crianças inutilizadas por danos físicos, morais e psicológicos causados pelos bombardeios de saturação. A resistência em terra foi praticamente nula. Os soldados de Sadam se rendiam até para cinegrafistas e equipes de TV. Agora, pode-se perceber que Sadam evitou o combate para reservar forças contra previsíveis rebeliões. Os Estados Unidos venceram uma guerra contra um adversário imobilizado pelo isolamento total, o bloqueio econômico e sem a mínima capacidade de resposta à brutal superioridade tecnológica. Expulso dos ares, o exército iraquiano ficou cego, sem poder orientar mísseis, nem artilharia. A paralisia militar do Iraque é a maior prova de que bastavam as sanções econômicas para tirá-lo do Kuait.

Durante a década de 80, os americanos fizeram "projeções de forças para o sudoeste asiático, essencialmente para o Golfo", revelaram especialistas militares franceses. O jornal New York Times confirmou que, em princípios de 1990, o secretário de Defesa Cheney e o general Powell "aprovaram um documento secreto com um plano de urgência para uma guerra na região". O comandante Schwarzkopf recebeu sinal verde para uma estratégia baseada na "defesa" da Arábia Saudita. O urso foi rápido no gatilho: duas semanas antes de Sadam Hussein se mexer, reuniu os seus oficiais para um exercício que simulava exatamente a eventualidade de um ataque do Iraque ao Kuait (a fonte dessa informação é o próprio Pentágono, segundo o New York Daily News, edição de 29 de setembro de 1990).

Coroando o quadro, a propaganda. Guerra de imagem única, sem controvérsias. Uma só televisão mundial, a CNN americana, sublinhando de Bagdá a versão do Pentágono. A dos países dependentes, com seus valentes correspondentes nos Estados Unidos, omitiram completamente o editorial do jornal Sunday Telegraph (20-01-91), em que se lê: "Há um conflito de interesses entre o Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo. Nenhuma ordem internacional satisfatória pode apoiar-se em proclamações de uma instituição (ONU) dominada numericamente pelo Terceiro Mundo. Cedo ou tarde, isto lançará novos desafios. Mas se a guerra do Golfo terminar como começou, não haverá nenhuma dúvida sobre quem são, agora, os patrões - pelo menos por uma geração. Terão prevalecido de forma espetacular não só nossas armas, mas também nossos ideais".

A previsão do editorialista foi realizada. Os Estados Unidos venceram em todas as frentes. Assim como havia um plano secreto para o Golfo, existem outros, inclusive para a América Latina. Estamos na mira da "nova ordem".

Poderosos e mercenários

A vitória total das armas americanas no Oriente Médio desaguou no início automático da implantação da pax americana, já definida na prática como permanente ocupação armada. Os Estados Unidos são, agora, a maior potência militar da região, tanto pelos efetivos próprios servidos por uma infra-estrutura para operações de grande envergadura, montada em função do assalto ao Iraque, como pelo controle direto dos principais exércitos de toda a área.

O sul do Iraque está ocupado, sem autorização da ONU, para que os americanos supervisionem e controlem a marcha da guerra civil desencadeada no país. O Pentágono sancionou o acordo firmado em Damasco pelo Conselho de Cooperação do Golfo (os seis emirados, mais Egito e Síria) para a formação de uma "força árabe de paz" - um novo exército capitaneado por Síria e Egito, para aplacar suscetibilidades nacionais contra a presença americana (o que é confissão indireta e involuntária da impopularidade dos "aliados"). Ao mesmo tempo, servirá como sentinela e unidade avançada para um primeiro combate.

A ocupação militar é a única garantia confiável da "nova ordem". Está montando em Bahrein um Comando Central Permanente para administrar a ação militar americana na área. Será o eixo da reestruturação do Oriente Médio e fonte de poder e autoridade. Um autêntico protetorado com seu vice-rei. É um fato consumado, à revelia dos aliados e da coalizão, para disciplinar a redistribuição dos privilégios coloniais, o rateio das encomendas militares e dos contratos de reconstrução, assegurando por antecipação a parte do leão para os americanos.

Essa ostensiva demonstração de liderança internacional tem importante função também na frente doméstica. Ajuda a manter a intoxicação belicista, alimenta o chauvinismo e sustenta por mais algum tempo a euforia militarista que embriagou a patriotada americana. Por enquanto, ainda serve para distrair a atenção dos problemas econômicos que se agravam e degeneram em recessão, crise e desemprego.

A pax americana tem preço. A "nova ordem" tem seus problemas. Ganharam e agora têm que arcar com as conseqüências. O quadro criado pela vitória tem algo de inesperado. Nem tudo resulta de plano meticuloso e previsão matemática. Bush tem que improvisar, correr riscos.

No Iraque só se combateu de verdade, terminada a guerra. Sadam está vencendo os xiitas no sul e os curdos no norte. Inicialmente estimulados e em seguida abandonados pelos Estados Unidos, os rebelados disputavam ricos territórios petrolíferos. O levante dos xiitas apontava para a formação de uma área de influência iraniana, o que seria intolerável para os americanos. Os curdos, em luta de liberação nacional, são o estopim de novo incêndio. A vigorosa insurreição no Iraque é façanha de pouco mais de 15 % da nação curda. Mais da metade, 51 % dos curdos, está na Turquia. Perto de 30% estão no Irã. O restante está na Síria e na União Soviética. Um território curdo autônomo no Iraque será inevitavelmente um centro político de comando nacional, que cortará todas essas fronteiras riscadas no mapa pelos burocratas das chancelarias européias.

A conjuntura iraquiana desafia a "flexibilidade" de Bush. Sua política no Iraque destroçado começa com a proibição do uso da aviação militar contra os insurretos, mas é logo relaxada devido aos êxitos da rebelião. Avançou para uma declaração de "neutralidade", para chegar à inconfessável admissão tácita da permanência de Sadam Hussein no poder, como o mal menor e temporário, até que a CIA consiga aliciar algum general para o clássico golpe. O Pentágono se alia à Guarda Republicana contra xiitas pró-Irã e contra curdos que lutam por um Estado independente de 20 milhões de habitantes, sem dívidas e com enormes reservas de petróleo ao seu dispor. Diretamente desafiada, a Turquia já ameaçou intervir militarmente contra um eventual Estado curdo independente.

As corruptas e tirânicas dinastias do Golfo, mais os regimes árabes de toda a orla do Mediterrâneo, do Marrocos à Síria, mostram-se inseguros e perplexos. Não há garantia para nenhum governante que tenha apoiado a invasão. As manifestações públicas durante a guerra ganharam as ruas em defesa do Iraque. Não há instrumento ou canal político para avaliar com um mínimo de segurança e contabilidade o que fermenta no subsolo social do mundo árabe. Sob repressão, as lutas populares tendem a revestir-se de legalidade através do canal generoso da solidariedade ao povo palestino. O apoio militante à criação do Estado Palestino é um ponto de aglutinação e foco de organização das massas populares árabes.

Os velhos politiqueiros do Oriente Médio respondem com a fábula do enfraquecimento, desmoralização e isolamento da OLP, pelo fato de a organização palestina ter se oposto francamente à intervenção militar americana. Isto realmente acontece nos círculos oficiais de Riad, do Cairo, de Damasco e Jerusalém. Mas é o oposto do sentimento dominante entre os milhões de árabes mais uma vez humilhados e ofendidos pela selvagem agressão colonialista. A OLP não se baseia apenas em uma liderança individual e nem mesmo em um aparelho de direção coletiva. A OLP é o próprio povo palestino. Esta é a razão principal que impede o deslocamento do problema palestino da crista do temário político do Oriente Médio.

Os americanos já farejaram um novo risco resultante da ocupação, que pode suscitar o transbordamento da intifada, de Israel para toda a região. Negociar é preciso. Até mesmo às custas de Israel, um dos grandes perdedores desta guerra, da qual saiu mais dependente e submisso do que nunca aos americanos. Os israelenses foram impedidos de combater sem licença prévia do Pentágono. O país ficou privado de autonomia para decidir sobre o mais sensível de seus problemas - a segurança nacional. A guerra do Golfo evidenciou o isolamento de Israel. Sua reivindicação de participar da força regional, ao lado de egípcios e sírios, como se tivesse lutado e vencido, sequer foi anotada. O militarismo, essa política suicida da social-democracia e da direita hebréia, reduziu o país à impotência. Os fatos estão comprovando mais uma vez que a República judaica só se justifica como Estado socialista e só é viável em aliança com os palestinos.

A expectativa de uma duração indefinida da unanimidade em torno dos Estados Unidos, alcançada pelo assalto impune a um solitário país subdesenvolvido, não se ajusta à realidade. A guerra encobriu contradições, cuja explosão, cedo ou tarde, com maior ou menor intensidade, pode surpreender os estrategistas da Casa Branca.

Já foi assinalado que Alemanha e Japão tiveram que apoiar uma guerra decidida num foro em que não têm nem voz, nem voto - o Conselho de Segurança das Nações Unidas. São países 100% dependentes do petróleo do Golfo. Agora, quem dita a política do petróleo no mundo inteiro são os Estados Unidos - é exatamente a posição de força necessária para barganhar a permuta de poderio militar por vantagens econômicas... Nesta conjuntura, Alemanha e Japão já reivindicam uma reestruturação da ONU e do Conselho de Segurança, ao qual pleiteiam assentos permanentes como potências pertencentes à "nova ordem". Essa responsabilidade implica o crescimento de seus próprios exércitos nacionais. São exigências que aguardam o momento oportuno para saltar para as manchetes internacionais. A pressão tende a tornar-se irresistível na medida em que a economia americana e até o orçamento nacional do país dependem de centros econômicos rivais.

Os Estados Unidos não dispõem de base econômica própria para sustentar a política de polícia internacional do grande capital. Tiveram que correr o pires para cobrir as despesas da guerra do Golfo. Até o querosene para os bombardeiros que partiam da Europa para destruir o Iraque foi pago pelos afiados. A guerra não mitigou a crise econômica. Agravando-se, obriga Bush a enveredar pelo caminho em declive de um país militarista mercenário, subsidiado pelos parceiros na pilhagem internacional - um exército de "justiceiros" profissionais, bem remunerados. Aí estão em germe tensões, não só entre ricos e pobres, mas entre as potências, com previsíveis rupturas a cada alteração da relação de forças. Vitórias do capitalismo não resolvem problemas, agravam os antigos e criam novos.

A deterioração das relações entre o Planalto de Collor e a Casa Branca de Bush é um bom exemplo do relacionamento da "superpotência única" com um devedor do Terceiro Mundo, na nova conjuntura. É primarismo político acreditar, como faz o atlético presidente, que basta apoiar as teses americanas para receber dólares, empréstimos e investimentos. Ninguém foi mais obediente que Saddam Hussein. Entretanto, foi escalado para servir de inimigo. Depois da guerra, ganha uma inesperada interinidade, como mal menor.

A conexão Brasil-Iraque foi tolerada, aprovada e estimulada pelos Estados Unidos, quando Saddam era útil contra o Irã. Mas o tirano cresceu demais. Aliado incômodo, tinha que cair. Seria atribuir visão e perspicácia política de estadista ao provinciano Collor considerá-lo capaz de localizar o momento e a direção da guinada. A criatividade política de Collor e sua equipe se resume na anedótica resolução - ante a guerra do Golfo - de reduzir o bujão de gás de cozinha de 13 para 10 litros, para assim aumentar as reservas nacionais... de bujões.
As antigas ligações brasileiras com Sadam estão sendo usadas por Washington para acelerar o ajustamento do bisonho Collor à "nova ordem". Ao acusar o Banco do Brasil, sócio do Banco Brasileiro Iraquiano com a metade do capital acionário, de financiar a exportação de armamentos para o Iraque (os negócios da Engesa, da Avibrás etc.), os americanos ameaçam seqüestrar ativos do Banco do Brasil na metrópole, o que também podem fazer a dócil Inglaterra e a dúplice França de Mitterrand. Esses três países imperialistas acabam de vetar um empréstimo do BID ao Brasil.

A pressão deverá ser gradativa e crescente. Eles podem, por exemplo, pedir contas das remessas clandestinas de urânio enriquecido para o Iraque. E um relatório verídico sobre o papel do brigadeiro Hugo Piva e sua equipe na construção do sistema iraquiano de mísseis. A merecida impopularidade de Collor, apesar de sua retumbante adesão ao liberalismo, às privatizações, à abertura do país ao capital estrangeiro etc., torna-o um alvo fácil. Os banqueiros credores são implacáveis. Querem mais do que os juros da dívida pagos em dia. Querem quebrar a espinha de um país cuja classe operária tem a audácia e a capacidade de desenvolver um partido independente e construir uma alternativa socialista.

O fracasso de Collor não se transforma automaticamente em êxito de Lula e pode ser usado pelos "justiceiros" internacionais. É o aviso embutido na trágica experiência da guerra no Golfo.

Issac Akcelrud é jornalista e militante do PT.