Nacional

As crises entre o partido e suas prefeituras continuam a acontecer, independente de alguns resultados positivos que as administrações já alcançaram. A solução dessa questão não é simples.

O início das administrações petistas, em 1989, foi difícil: pagou-se o preço da inexperiência, em face do desafio de governar de maneira transformadora. Mas, a partir do ano passado, resultados positivos, ainda tímidos, começaram a aparecer.

A despeito dessa mudança para melhor, as crises de relacionamento entre o PT e suas prefeituras continuam a acontecer. O próprio ambiente não é muito animador: militantes petistas têm tido dificuldades em se reconhecer nas administrações. Além disso, prefeitos petistas - muitos dos quais militantes históricos sentem-se pressionados e até rejeitados pelo partido.

Trata-se de uma relação mal resolvida. Mesmo se aceitando, de modo genérico, que ao partido cabe elaborar orientações políticas globais para as administrações, ficando a cargo destas as ações do dia-a-dia, não são claras as demarcações. Ao contrário, a zona de indefinição é bastante ampla: políticas públicas setoriais, nomeação de secretários, demissões de servidores, projetos de lei etc...

Questões de solução nada simples: como poderia o partido ter prontas suas orientações a respeito das políticas públicas, se apenas agora elas vêm sendo concretamente experimentadas, e muitas vezes por caminhos diversos, a exemplo do transporte coletivo? Um caminho possível é tentar refletir a respeito das contradições que estão na base dessa crise.

Já se disse que os movimentos sociais iniciados no período da ditadura militar se voltam contra o Estado brasileiro, negando-o. Como o PT nasceu das lutas sociais, é natural que perdure no partido um forte sentimento de desconfiança em relação ao Estado e ao institucional. Esse sentimento é alimentado pela existência, em setores minoritários, de um modo de pensar a sociedade que rejeita, na prática, a ocupação de espaços institucionais no interior do capitalismo - a não ser para implodi-los.

Os movimentos sociais, em seu processo de luta, foram elaborando socialmente, pouco a pouco, valores calcados na idéia de direitos: ao salário, ao emprego, à moradia, à educação, à saúde, ao transporte etc. A amplitude desses direitos - numa sociedade profundamente desigual, como a brasileira - choca-se, porém, com a estreita capacidade que possuem as administrações municipais de absorvê-los, sobretudo de imediato. A inexistência, no PT, de uma concepção de administração, faz com que tal contradição se apresente como crise em cada momento de luta social que envolva uma prefeitura petista. Têm toda razão aqueles que vêem nesses impasses a necessidade de definições estratégicas, em particular as relativas ao socialismo. Este exige a transformação, não só do Estado, mas também da sociedade.

Uma das maneiras de contribuir para que as coisas melhorem é tentar estabelecer linhas de orientação política geral para as administrações municipais. A elaboração de referenciais mais sólidos é condição necessária para o estabelecimento de um diálogo mais positivo: algo que, assumido pelos petistas, confira à ação nas administrações e nos movimentos sociais coerência com a luta pelo socialismo.

Uma proposta de ação para as administrações democráticas e populares deve apontar para um novo modelo que, negando simultaneamente a opção capitalista - seja ela neoliberal ou social-democrata - e o estatismo do "socialismo real", afirme o caminho da construção de uma sociedade radicalmente democrática - onde a democracia assuma valor estratégico, meio e fim a alcançar.

Para tanto, não basta romper com o poder econômico. As administrações democráticas e populares apresentam condições muito favoráveis para tal ruptura, pois sua base social permite e, mais do que isso, exige que se abra mão de financiamentos de campanha comprometedores ou de "caixinhas". O que se viabiliza com isso, porém, é apenas maior liberdade para a redefinição de investimentos e medidas reguladoras do poder público municipal. Isso é muito, se comparado à prática política tradicional, mas é pouco quando se persegue um projeto realmente novo.

A participação popular, por seu turno, é elemento essencial para a transformação. O cumprimento desse papel, no entanto, supõe certas condições: a consideração do estágio de organização e consciência dos movimentos sociais reais e a inserção da participação no processo de mudança das relações entre a prefeitura e a sociedade local. A ação apenas no nível da administração apresenta limites. Não por acaso a inspiração maior das transformações requeridas é sugerida por uma idéia-força elaborada coletivamente pelos movimentos sociais o valor dos direitos e da cidadania.

Trata-se, assim, de propor, no plano das administrações municipais, uma radical alteração do modo de cumprimento do conjunto das funções de reprodução da força de trabalho e de legitimação locais, centrada na preocupação de contribuir para a transformação da cultura política, com o objetivo de disputar a hegemonia com os setores dominantes.

Nessa disputa - que pressupõe uma ruptura com o poder econômico - o fundamental é assumir o embate com os valores que sustentam a hegemonia conservadora local, negando-os ao afirmar os termos de uma nova cultura política. Assim, em lugar de uma noção de identidade municipal vinculada ao elitismo excludente, ao ponto de vista estatal, à anticultura de homogeneização social, à valorização das grandes obras, ao populismo, ao clientelismo e, mais recentemente, à ideologia privatista, trata-se de atuar para a constituição de uma nova noção de identidade municipal, articulada aos valores democráticos da inversão de prioridades, da transformação da relação entre o poder político e a comunidade e da reforma do Estado.

A implementação de tal proposta exige que suas ações políticas sejam dotadas de visibilidade social - pois apenas desse modo elas adquirem eficácia no plano da cultura política. As ações devem-se traduzir em marcas que se contraponham àquelas dos valores políticos conservadores.

Um projeto de hegemonia consistente aspira à universalidade, isto é, a representar o interesse geral - no caso, o do conjunto do município. Ora, numa sociedade intrinsecamente contraditória, onde a harmonia dos interesses de todos os envolvidos é pura ilusão, e na qual não existe neutralidade, a elaboração de um projeto de município sob o ponto de vista da radicalização da democracia precisa ser sustentada socialmente por uma política de alianças que explicite com quem e para quem se pretende administrar. Os setores de sustentação potencial são compostos pela grande maioria da população dos municípios: assalariados, profissionais liberais, pequenos proprietários. Devem opor resistência a tal proposta, além do grande capital - que em regra não se relaciona com o poder local -, os interesses do poder econômico e os agentes sociais portadores dos valores políticos conservadores: elites locais, meios de comunicação, setores dependentes do clientelismo etc.

Nova identidade

Em última instância, o que confere sentido ao município é sua identidade, fundada na tradição local e em signos distintivos de sua territorialidade, cuja maior expressão é a comunidade. A elaboração desse imaginário social tem sido comandada pelas elites sociais e políticas que, ao deixarem as marcas de seu projeto social, fazem dele elemento da hegemonia dominante e do correspondente consenso social - exemplo disto é o coronelismo.

Do ângulo de quem pretende participar da implementação de um novo projeto de município, é fundamental, atuar sobre essa identidade local. Trata-se de captar seus componentes nucleares, ora aprofundando, ora redefinindo seu sentido, no rumo da produção de um imaginário que realce os valores dos direitos e da cidadania.

Para isso, é importante recuperar a história e os símbolos que identificam o município. Daí o interesse no incentivo à reelaboração da tradição local. Na mesma linha, está o resgate de símbolos que, ao marcar a identidade do município, são referências que tomam parte na vida de seus moradores, integrando valores nos quais se reconhecem e condicionam seu cotidiano. Isso é verdadeiro para objetos tão diversos quanto um rio, uma edificação, uma equipe esportiva, uma festa etc.

Ao mesmo tempo, um projeto de município que pretenda assumir a disputa da hegemonia precisa incorporar uma proposta de desenvolvimento. Desse modo, é necessário refletir e agir sobre a vocação econômica da cidade. Ainda que as atribuições do município nesse campo sejam muito limitadas, iniciativas são sempre possíveis. Dependendo da posição e função do município, o destaque poderá caber a certo tipo de atividade agrícola, industrial ou terciária.

A matriz espacial produzida nas cidades brasileiras ao longo das últimas décadas tendeu a definir normas urbanísticas concebidas à luz de parâmetros de vida urbana altamente elitistas. Ora, a cidade real é bastante diferente da cidade pensada pelas elites burguesas. Em decorrência, à parcela da cidade que está de acordo com as normas opõe-se uma outra que vive à margem e é tida como desvio a ser corrigido ou, no limite, extirpado. Por conseguinte, a cidade assim concebida exclui da legalidade os setores sociais mais desfavorecidos: moradores de loteamentos irregulares, cortiços, favelas e trabalhadores informais (ambulantes) ou donos de pequenos negócios irregulares.

Diante desse quadro, é evidente a necessidade de substituir a matriz espacial calcada na noção de cidade ideal, baseada em normas excludentes, por uma outra fundada na idéia de que a cidade do amanhã será construída a partir das condições concretas da de hoje, integrando o conjunto de seus moradores na comunidade municipal. Eis algumas propostas de uma nova legislação urbana: criação das áreas especiais de interesse social, com legislação própria, para viabilizar a regularização de ocupações ilegais; desregulamentação das normas de edificação e do tipo de uso do solo (desde que não prejudique a vizinhança); e o coeficiente de aproveitamento (relação entre área construída e área do terreno) único para toda a cidade, permitindo-se a construção de área adicional (o solo criado) mediante o pagamento, pelo proprietário do imóvel, de uma quantia correspondente à valorização imobiliária assim gerada.

A apropriação privada dos espaços públicos é um dos problemas a serem enfrentados. A rua, a avenida e a praça são construídas, equipadas e sinalizadas para atender, com prioridade, um personagem bastante conhecido: o automóvel privado. Deixam de ser locais de encontro e os pedestres não têm vez. Além disso, os equipamentos municipais costumam ser privatizados - a exemplo de centros culturais e de lazer, apropriados por corporações ou por grupos políticos ligados ao governo de plantão - e os serviços públicos, prestados precariamente, excluem o acesso da maioria dos usuários.

Mudar a atitude, estimulando a apropriação pública dos espaços públicos, é também contribuir para redefinir a matriz territorial vigente e a noção de comunidade.

Resta considerar que várias questões relativas à vida dos municípios transcendem seus limites espaciais e de atribuições e se materializam pela participação em iniciativas de criação ou reformulação de regiões metropolitanas, consórcios intermunicipais, frente nacional de prefeitos etc. O sentido dessas ações no campo da disputa de hegemonia não pode ser subestimado, seja em função dos temas abordados, seja por constituírem frentes supra-partidárias, alargando as fronteiras políticas das administrações municipais.

Inversão de prioridades

A noção de inversão de prioridades remete ao par captação/uso dos recursos públicos municipais. Aponta, de imediato, para a questão da distribuição de renda, pois coloca o problema de definir de que setores sociais captar recursos e para quais endereçá-los.

A materialização da proposta, do lado da receita, corresponde à elevação do montante de recursos disponíveis de maneira progressiva, isto é, a cobrança dos que podem pagar. O aumento dos recursos em mãos da prefeitura é crucial, uma vez que viabiliza maior autonomia frente às esferas superiores de governo - condição para a independência política - e expande a capacidade de realizações da esfera municipal. Nesse sentido, o IPTU é a mais importante das fontes da receita própria, pelo seu potencial de progressividade (é imposto direto, incide sobre a propriedade). Além disso, há espaço, em geral, para explorar outros tributos e tarifas municipais, inclusive com inovações como a taxa-transporte, o solo criado, operações interligadas etc.

A proposta de uma reforma tributária nesses moldes se liga diretamente à disputa ideológica sobre o caráter da questão pública, à medida que colide com a prática política tradicional - que abandonou a cobrança de tributos diretos, para evitar desgastes junto às elites locais - e com a proposta neoliberal, contrária a qualquer tipo de majoração de impostos, por defender a redução do tamanho do Estado. Há um conflito de fundo, portanto, que opõe a defesa do princípio da liberdade econômica (menos Estado, mais mercado) à defesa do princípio da justiça social (cobrar de quem tem para garantir direitos a quem não tem).

Do ângulo da despesa, inverter prioridades significa deixar de gastar em obras monumentais para investir em pequenas obras, infra-estrutura básica, habitação e ampliar e melhorar a qualidade dos serviços públicos municipais. O questionamento não se dirige, ao tamanho das obras em si, mas ao seu significado social e político: em regra, grandes obras envolvem apreciável soma de recursos com baixo ou duvidoso retorno social, mantendo uma relação direta com interesses de empreiteiras de obras e indireta - no caso dos freqüentes gastos em sistema viário - com um modelo econômico excludente.

É preciso ter claro que a força da política de obras faraônicas não provém apenas de seus laços com o poder econômico; reside, muito mais, em sua eficácia política: grandes obras costumam identificar, para a própria população, boas administrações. O desafio maior, por conseguinte, está na transformação dos valores que norteiam o julgamento feito pela população de uma administração pública. Inverter prioridades - a partir da economia de recursos em grandes obras e de uma reforma tributária - é contrapor uma imagem consolidada de administração, de caráter conservador, a uma outra, vinculada ao respeito dos direitos sociais e da cidadania.

As obras de pequeno porte são relevantes: seus resultados materializam-se de imediato no cotidiano e atendem, com freqüência, a reivindicações coletivas bastante antigas, esquecidas pelo poder público pelo seu caráter pontual. Além disso, prestam-se bem à participação ativa dos moradores envolvidos, seja através do mutirão, seja pela consulta na elaboração do projeto da obra. Conferem, assim, uma qualidade nova ao modo como a população pode vivenciar sua cidade e se apropriar dela.

Em, termos orçamentários, assume posição destacada na proposta de inversão de prioridades a expansão e a melhoria da qualidade dos serviços públicos, ao abarcar áreas como a educação, a saúde, o transporte coletivo, além da cultura, lazer, abastecimento alimentar, limpeza pública, direitos judiciários dos carentes, consumidores, mulheres etc. Por um lado, existe uma dimensão quantitativa, relacionada ao aumento da oferta de serviços existentes e à implantação de novos serviços. Por outro, há uma dimensão qualitativa: melhor qualidade do transporte, melhor atendimento médico, outra metodologia pedagógica, apropriação coletiva de espaços, participação na gestão de equipamentos e serviços etc.

Porém, a proposta de inversão de prioridades não coloca como questão a eliminação das carências, meta irrealizável em face da escassez de recursos. Trata-se, sim, de realizar melhorias, redistribuir renda e inscrever direitos, contribuindo para a superação de valores políticos excludentes, mas consagrados socialmente.

Em segundo lugar, é preciso abordar com cuidado a relação entre centro e periferia. O centro comercial ou administrativo dos municípios costuma ser um local de encontro da população, cujo acesso tende a ser bem mais democrático do que, por exemplo, o de um shopping center. Nesse sentido, investimentos visando a valorização de centros comerciais, na qualidade de espaços de vivência coletiva, mais do que compatíveis com a inversão de prioridades, podem constituir-se em sua parte integrante.