Em 1880, Engels comparou, em As lutas de classes na França, as perseguições sofridas pelo cristianismo primitivo com as que sofria o movimento operário no século XIX. Esta foi, na história do pensamento socialista, provavelmente, a primeira vez que os apóstolos cristãos constituíram-se em paradigma para considerações sobre a militância política de orientação anticapitalista. A iniciativa encontrou eco. No crepúsculo do século passado, Karl Kautski, em As origens do cristianismo, recuperou o cotejo engelsiano, entre o movimento operário e a Igreja Católica, para indagar, no entanto, se o movimento não reproduziria o processo de burocratização que atingiu a Igreja, na época de Constantino, quando esta se transformou em força espiritual hegemônica na sociedade.
Porém, o próprio Kautski, seguindo a ortodoxia marxista respondia negativamente, após ponderar que a Igreja Católica chegou ao poder num contexto de atrofia das forças produtivas. Ao contrário, segundo ele, o socialismo só conquistaria o poder, impulsionado por um desenvolvimento vertiginoso das forças produtivas, o que projetava, por um lado, o desaparecimento progressivo da divisão social do trabalho, e, por outro, uma verdadeira revolução na cultura ideológica da sociedade. Nessas circunstâncias, afirmava Kautski, dada a universalização da riqueza material e da cultura civilizatória, a burocratização não teria meios de prosperar. O futuro seria melhor para com os militantes do proletariado do que fora o passado para com os apóstolos do cristianismo.
Por sua vez, Rosa Luxemburgo, em O socialismo e as igrejas, folheto escrito logo depois da primeira Revolução Russa (1905), continuou com a comparação, embora demarcando as diferenças de caráter estratégico, na ação de ambos. "Assim, os cristãos dos primeiros séculos eram comunistas fervorosos. Porém era um comunismo baseado no consumo e não no trabalho e se demonstrou incapaz de transformar a sociedade, de pôr fim à desigualdade entre os homens e de derrubar as barreiras que separavam os pobres dos ricos". A ênfase na divergência de estratégia tinha um sentido importante nessa época. Em 1891-92, Noske, um representante influente do anarco-sindicalismo na Alemanha, profetizava, em tom pessimista, uma similitude de destino do movimento operário com a Igreja Católica. Para Noske, as organizações do movimento operário, ao se desenvolverem no decurso da história, se burocratizariam, inelutavelmente, tal qual sucedera com a Igreja Católica.
Por conseguinte, ao postular uma identidade moral entre os cristãos primitivos e os "comunistas" (na linguagem de então) mas, ao mesmo tempo, vincar uma divergência de estratégia na construção da nova sociedade, Rosa Luxemburgo sublinhava a primazia da teoria da práxis, o marxismo, sobre a fé na prática, o cristianismo. Rosa, desse modo, também recriminava, ainda que indiretamente, os seguidores do sindicalismo revolucionário (Sorel e cia.), que, num tom otimista mas ingênuo, sem contarem com uma teoria da práxis, com a fé na prática, se empenhavam em reformar moralmente o mundo, como Sísifo da modernidade. Com efeito, as tendências sindicalistas do princípio desse século, de maneira geral, e em especial a do chamado sindicalismo revolucionário caracterizavam-se por um grande irracionalismo.
Influenciado pela concepção filosófica bergsoniana do "élan vital", da qual Sorel se tinha como um porta-voz, em sua inflexão social, o sindicalismo revolucionário postulava que a natureza do homem devia se expressar em projetos de ação, e não em ideais racionais a serem alcançados. Fazia o elogio da combatividade em si mesma, inspirado numa moralidade militante. O problema do sentido encontrava, empiricamente, uma pseudo-solução na militância do sentido, qualquer que fosse. Não espanta, por isso, que Mussolini tenha confessado que o fascismo devia muito às Reflexões sobre a violência, de Sorel.
É preciso ainda lembrar que o lema do sindicalismo revolucionário se resumia no encorajamento do movimento operário independente, assim entendido, a partir da exclusão dos intelectuais, "cuja direção tenderia por resultado restaurar as hierarquias e dividir a massa dos trabalhadores. A função dos intelectuais é a de auxiliares". Noutros termos, "todo o futuro do socialismo repousa no desenvolvimento autônomo dos sindicatos operários". No movimento sindical brasileiro, no campo e na cidade, já vimos esse filme numa cópia adaptada à nossa realidade histórico-social, através de uma espécie de neo-sindicalismo-revolucionário. Mas, por hora, o que nos importa é destacar que a fé, na prática ativista, e o menosprezo pelas atividades intelectuais, apesar da observação da famosa pensadora polaca, sobre a primazia da teoria da práxis, são elementos que vieram se somar a uma visão apostólica da militância política, de orientação anticapitalista também vivenciada (como demonstram as analogias recorrentes com a Igreja Católica) ao modo de instrumento de expiação e sacrifício pelos pecados do mundo. Nessa atmosfera carregada, é que a questão da militância vai se converter dentro da história do pensamento socialista, cada vez mais, na questão do partido.
Os Super-apóstolos
Lenin, em Que fazer?, ao se contrapor, de um lado, ao utopismo anárquico dos revolucionários populistas russos do final do século XIX e, de outro lado, ao oportunismo evolucionista dos revolucionários que mais tarde ficariam conhecidos como mencheviques, acusa tais correntes do movimento operário popular de conduzirem na atrasada Rússia czarista o proletariado à paralisia e à derrota. Recusa a idéia de que a passagem do capitalismo para o socialismo pudesse decorrer, de modo necessário, de alguma dialética das "leis férreas da história", mediante "fatal e unívoca conclusão das forças objetivas intrínsecas da sociedade capitalista". Para Lenin, o proletariado, através de suas próprias energias políticas, jamais poderia ultrapassar o nível de consciência trade-unionísta, economicista. O nível de consciência comunista, conforme o líder bolchevique, só poderia ser introduzido de fora, o que, de resto, antes de Lenin, já preconizara o depois "renegado" Kautski. Lições, digamos assim, que logo ganhariam uma validade universal, propagada pelo bolchevismo, embora reportassem inicialmente a um contexto determinado.
Em consequência, a função do partido, visando o despertar revolucionário das massas, na qualidade de portador da teoria científica da práxis, seria a de constas mediações táticas entre o nível de consciência trade-unionista e o nível de consciência "comunista". Nas condições históricas repressivas da Rússia czarista, tratava-se de uma tarefa que apenas poderia desempenhar um partido, sob forte centralismo democrático, formado por revolucionários profissionais, com disciplina interna extraordinária, que garantisse tanto uma unidade de ação no movimento operário popular, quanto o segredo, aos olhos da repressão policial. Lenin, depois de 1905-06, flexibiliza em alguns pontos essa concepção blanquista de partido, passando a defender a entrada de trabalhadores assalariados nas instâncias de direção do partido. Em 1907, em um novo prefácio para Que fazer?, ele, inclusive, admite até abertamente que esse livro continha certas expressões "mais ou menos infelizes ou imprecisas".
Porém, Trotski, em 1903, e Rosa Luxemburgo, em 1904, já haviam criticado o centralismo leninista, pela ameaça que representava de autonomização do aparelho do partido, inclinado, por tendência, à auto-conservação da organização como uma finalidade em si mesma. O curioso é que essa crítica profética à tendência de burocratização embutida no blanquismo das formulações de Lenin, em 1902, ainda hoje, sofre desqualificação de parte de alguns dogmáticos que lhe põem a etiqueta de "menchevique" (sic). Tergiversação compreensível em epígonos, mais leninistas do que o próprio.
Mas a discussão sobre a teoria leninista de organização não se resume à tecnicidade de um modelo de práxis política, que viabilize a transição do capitalismo ("ditadura da burguesia") para o socialismo ("ditadura do proletariado"). A importância de Lenin para a tradição marxista, em particular, e para a ciência política, em geral, está em que ele soube, verdadeiramente, destacar a autonomia relativa da práxis política, ou seja, da subjetividade, em relação às estruturas sócio-econômicas da realidade concreta, isto é, a objetividade propriamente dita. Teoricamente, o papel do partido, sob essa perspectiva, tornava-se central para um desenlace revolucionário das massas, nos períodos histórico-conjunturais de crise da dominação burguesa. O reconhecimento da autonomia relativa da práxis política, na teoria, abria a possibilidade da revolução, na prática. Reconhecimento que, na versão do teórico italiano Lucio Magri, pressupunha os seguintes atributos para o partido: ser de classe, de vanguarda e de luta. Stalin, a respeito dessas responsabilidades, colocadas pelo partido sobre os ombros da militância, em um discurso pronunciado por ocasião dos funerais de Lenin, dirá que "nem todos podem resistir aos infortúnios e tempestades a que estão expostos os membros deste partido". Só os super-apóstolos do proletariado, já acostumados à idéia de expiação e de sacrifício pelos pecados do mundo acrescentaríamos nós, sem modificar o conteúdo do panegírico stalinista.
A citação invocada por associação de idéias é propositalmente provocativa. Apesar dos apelos de Lukács e Gramsci, na década dos 20, para a democratização dos PCs, o modelo ultracentralizado, proposto por Lenin em Que fazer?, agravado pelas resoluções do 10º Congresso do PCUS em 1921, prevaleceu na vida real das sociedades pós-capitalistas. Assim, as deformações burocráticas potenciais configuraram-se em ato, na história subseqüente, com o stalinismo. Os revolucionários "vinte e quatro horas por dia", imaginados por Lenin, cederam lugar aos burocratas de turno integral, protocolados por Stalin, guardando em comum, no entanto, uma idêntica a-sociabilidade. No lugar da capacidade de iniciativa do "tribuno do povo", ficaram a predisposição para o cumprimento de normas burocráticas, a obediência aos chefes, a defesa incondicional do aparelho organizacional - além de uma forte desconfiança para com a teoria como tal e de um ranço antiintelectualista e ativista, adquirido pelo hábito de pensar e agir por intermédio de slogans.
Em resumo, a evolução da totalidade dos PCs confirmou, no âmbito do bolchevismo, a análise que Robert Michels, em 1912, empreendera acerca da social-democracia em Political Parties. A saber, que a direção desses partidos realizava a manipulação burocrática de seus crédulos recursos humanos, os militantes. Congressos e encontros, esvaziados de seu poder decisório sobre os rumos futuros do partido, avaliando, quando muito, os rumos do período anterior, transformaram esses eventos em rituais de legitimação das linhas políticas traçadas pelos notáveis. A par disso, encontros desse tipo serviam para reforçar, psicologicamente na militância, o sentimento de identidade ideológica e de pertença à história: na realidade, reduzida ao debate parlamentar pela social-democracia. Entretanto, com os rituais de reforço do sentimento de identidade ideológica e de pertença à história - o "reino do céu" secularizado -, produzia-se, ciclicamente, na militância, a sensação de culpa por não ter atingido todas as metas no cumprimento das tarefas e, por isso, de não ser digna de entrar, talvez, na "casa do Senhor", o socialismo.