Política

Freire fala do Congresso do Partidão, analisa a crise da esquerda e afirma que o socialismo não é uma solução para os países capitalistas periféricos.

Em junho o PCB realizou seu 9º Congresso; talvez tenha sido o Congresso, realizado em condições mais difíceis. Não é fácil dizer isto para um partido que passou a maior parte da sua vida na clandestinidade. Mas nunca como agora a própria existência do partido foi questionada.

O principal líder da corrente "renovadora" o deputado federal Roberto Freire, foi eleito o novo presidente. Teoria & Debate ouviu-o sobre o significado das mudanças no PCB e o conteúdo da concepção de socialismo que defende hoje.

Temos que registrar contudo uma limitação importante: a entrevista foi feita antes da recente tentativa de golpe na URSS, e não foi possível ouvir Roberto Freire depois. Procuramos compensar esta falta com a publicação da nota do PCB.

Eu acho que é interessante começar com um breve resumo do significado do recente Congresso do Partido Comunista Brasileiro.
Não é por acaso que nesse ano de 1991 nós estamos assistindo à realização de congressos ou encontros de partidos de esquerda, em quase todo o mundo. Pois é um período que colocou em xeque a própria identidade da esquerda. A crise do socialismo real, mesmo para a esquerda que tinha um referencial diverso, colocou em discussão a própria compreensão do que seria uma economia socialista, do que seria essa experiência de superação do capitalismo. A crise foi geral. Isso é muito mais forte em países como o nosso, porque foram muito tênues outras vertentes do pensamento de esquerda no Brasil. A grande matriz foi a da III Internacional, a ponto de se poder dizer que, fundamentalmente, a cultura da esquerda no Brasil é a cultura comunista. Só muito recentemente que se teve condições de criar, com certa presença social e no mundo da intelectualidade, uma outra vertente que tem surgido em torno do PT. Uma experiência histórica que poderia ter já, há algum tempo, resultado nisso foi abortada pelo golpe de 64. Foi o surgimento da antiga AP (Ação Popular), que começava a ter peso na sociedade brasileira, no meio da intelectualidade, da juventude, mas que não teve condições de se desenvolver. E que tinha também, como o PT tem hoje, uma vinculação com o socialismo de extrato idealista, vinculado à Igreja, o que é algo muito importante em países com tradição religiosa muito forte. Eu fiz toda essa derivação para dizer da importância desses congressos, porque a esquerda precisa buscar novos rumos, precisa discutir, inclusive, o que é o socialismo no momento em que a experiência histórica socialista foi derrotada. Discutir os problemas da economia de um socialismo possível, em função do esgotamento do modelo de estatização. É preciso discutir toda a questão do mercado e, mais do que isso, da propriedade privada como parte integrante de uma economia que se pretende diversa da capitalista. É nesse quadro de perplexidade que foi realizado aqui no Brasil o Congresso do Partido Comunista Brasileiro. Sua importância é evidente porque mais do que qualquer outra formação política, em o PCB um herdeiro natural dessa concepção, era o instrumento que tentava aqui viabilizar a implantação dessa experiência. Por todas as suas colocações, de certa forma um tanto subordinadas a determinadas matrizes, foi o Partido Comunista quem mais sentiu o impacto da derrota da Europa do Leste. E o importante que se pode ver nisso tudo é que o partido assumiu com muita coragem essa tarefa e promoveu uma profunda autocrítica. Eu diria até que o PCB estava preparado para essa autocrítica, já que talvez tenha sido um dos poucos partidos dentro do movimento comunista internacional que, quando da denúncia dos crimes de Stalin, tentou sair um pouco do reducionismo que dominava a crítica, vinculada apenas à questão do culto à personalidade. Buscou discutir o problema da democracia, que se contrapunha à concepção de partido único, e da ditadura do proletariado, colocada como algo inerente ao processo de construção do socialismo. Só que isso ficou em parte limitado a uma elaboração ligeira e muito mais no documento e nas intenções de algumas lideranças do que numa prática política mais consistente.

Isso foi quando?
Em 1958, quando da Declaração de Março, um célebre documento que foi elaborado dentro do PCB e que teve, inclusive, entre seus principais idealizadores o Giocondo Dias e o Mário Alves. Só que isso tornou-se muito tênue e 64 veio, talvez, barrar o aprofundamento dessas questões por força da clandestinidade, da repressão forte que o partido sofreu e da luta pela sobrevivência. O processo de elaboração teórica ficou prejudicado naquele momento. É bom lembrar da contribuição dos chamados eurocomunistas, aqui no Brasil no final da década de 70, quando começaram a discutir a questão da democracia como um valor fundamental. É importante ressaltar o livro de Carlos Nelson Coutinho que tenta retomar idéias que em 59 tinham aflorado: democracia de massas, a questão da possibilidade histórica do socialismo e não do determinismo histórico, a questão da democracia como um valor universal e, portanto, da revolução como um processo e não como ruptura unicamente de momentos. O Partido Comunista, que tinha em seus quadros alguns desses intelectuais, não teve a capacidade de aprofundar essa discussão no final da década de 70 e tivemos problemas muito graves, chegando a expulsar quem pretendia discutir. Então, o pensamento da esquerda teve dificuldades. Avançou, talvez, nas universidades, na formação de um marxismo mais aberto, menos ortodoxo, e que hoje aflora com muita força. Eu diria que muito do que o partido concluiu, nesse 9º Congresso, tem a ver com essas contribuições mais ou menos esparsas, difusas, da intelectualidade brasileira que tem no marxismo um referencial teórico. O PCB vem conseguindo resgatar desde 89 essas contribuições, quando começou a entender a perestroika como algo que deveria ser assumido por nós. Na campanha para a presidência da República, já falávamos claramente da renovação do socialismo, quando ainda não tínhamos assistido nenhuma derrocada. Já falávamos do problema da democracia, de um Estado com a participação também de mecanismos de mercado na formulação econômica. Ali, nós talvez já tivéssemos nos antecipado a algo que nesse Congresso ficaria muito claramente definido como caminho da revolução brasileira algo processual, que tenha economia mista e que tenha a democracia como um valor essencial, parte integrante disso. Eu vejo esse Congresso não como algo definitivo, mas como um passo inicial, que terá que ser aprofundado, discutido, não só por nós, mas por toda a esquerda brasileira. Independente da nossa força - e eu diria que somos muito frágeis em termos de expressão política na sociedade -, o partido ainda é o grande referencial da esquerda brasileira. Ele tem história e por isso mesmo ajuda os outros partidos de esquerda a darem também um avanço maior, porque partem, não de um ponto inercial mas, de algo que já deu a saída, tendo atrás de si uma longa tradição. Eu sinto que, na discussão interna do PT, que é muito rica, essa posição que o PCB assumiu tem ajudado aqueles que buscam também essa nova concepção. Eles estão partindo de formulações próprias, mas já tendo também, externamente ao PT, um outro referencial que dentro da esquerda saiu pelo menos da perplexidade e aponta um certo caminho que terá que ser engrossado e ampliado. Dentro disso tudo, o papel do PT pode ser de importância fundamental, porque é hoje o partido mais forte da esquerda no Brasil.

Parece que a partir do momento em que começou o processo de reformas, com a ascensão do Gorbachev, isso foi saudado com muito entusiasmo pelo PCB; inclusive, o processo da perestroika e da glasnost foi uma das inspirações de toda essa autocrítica. Como é que você vê essa situação hoje? Continua a haver uma avaliação positiva do que está ocorrendo na União Soviética, da direção na qual o país está se movendo?
É evidente que grande parte dessa reformulação, que o PCB desenvolve, tem a ver com o processo da perestroika. Claro que existiram no PCB, desde sua origem, algumas tendências autonomistas. O Astrogildo Pereira e o Heitor Ferreira Lima, intelectuais importantes na formação do PCB, tiveram num primeiro momento posições muito críticas em relação a algumas formulações da Internacional Comunista. E foi tão significativo, que houve da parte da IC uma pressão e esses intelectuais que foram, inclusive, demitidos de cargos importantes na direção do partido. Ou seja, o Partido Comunista aqui no Brasil tentou, em alguns momentos, formular com uma certa autonomia frente à matriz que vinha da III Internacional. Nem sempre tivemos êxito. Mais recentemente, havia algumas forças políticas dentro do partido, que buscavam discutir mais concretamente a nossa concepção. Mas não há como negar que foi a perestroika que deu impulso para toda essa discussão. Talvez o que se aprendeu melhor com a perestroika foi a deliberar. Assim, por ocasião de uma reunião muito tumultuada do Partido Comunista da União Soviética, nós tomamos uma decisão que foi muito sintomática: que nós estávamos aplaudindo a posição assumida por Gorbatchev mas que, independentemente do resultado do pleno do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, adotaríamos a posição da perestroíka e da glasnost, mesmo que naquele momento houvesse um retrocesso Isso foi no momento em que ainda não tinha ocorrido nenhuma débâcle nos países do mundo socialista, ou seja, aquilo representava uma postura de independência frente a qualquer modelo, a qualquer diretriz. Nós assumimos uma postura de avançar na discussão da democracia, da economia do socialismo possível, do esgotamento daquele modelo da III Internacional, seja no campo econômico da planificação ultracentralizada, da estatização como instrumento único de economia; seja nas questões da ditadura do proletariado, do partido único, da supremacia do Estado sobre a sociedade civil. E independente do que venha a ocorrer na União Soviética, nós vamos continuar esse processo. O que a União Soviética ou os países que tiveram a experiência socialista podem nos indicar é como o socialismo poderá ressurgir, não só nesses países, mas também como concepção política. Essa crise do socialismo real, apesar da derrota pode, paradoxalmente, possibilitar novas vitórias. Não se pode entender a crise apenas como algo negativo. Ela significa a superação de algo que estava velho e um novo que ainda não se afirmou. Eu creio que dentro dessa experiência histórica, ocorreram algumas conquistas. E elas virão se afirmar talvez num estágio superior e numa sociedade mais democrática. E, mais do que isso, vem o resgate da tese de que o socialismo não pode ser entendido como solução para os problemas que o capitalismo não resolveu; mas sim, como algo superior no capitalismo. O socialismo como etapa superior, segundo Marx, iria surgir exatamente nas economias capitalistas mais desenvolvidas. Por uma contingência histórica, nós formulamos a tese de que o socialismo iria surgir no elo mais fraco da cadeia capitalista. E depois de setenta anos, nós estamos vendo que não é verdade. O que o, mundo socialista demonstrou é que não teve, em países atrasados, a capacidade de apontar a economia do futuro. Ele resolveu alguns problemas daquelas sociedades, apontou para objetivos generosos de igualdade, de justiça, de fraternidade, para outros valores sociais, mas não conseguiu, no processo de concorrência com o sistema capitalista, efetuar a sua superação. Até porque o capitalismo mais desenvolvido demonstrou que estava mais apto a continuar mudando as relações e os modos de produção, as relações sociais, de uma forma muito mais dinâmica e até revolucionária. A crise foi a demonstração de que esse modelo estava superado, que não respondia à nova realidade. Dessa crise pode surgir um socialismo com outra dinâmica e com melhores respostas para a realidade do mundo em que vivemos. Eu vejo a questão da União Soviética, por exemplo, como algo que ainda não está definido. E nós não podemos ver essa questão apenas como restauração do capitalismo, que significará retrocessos, porque alguns avanços poderão surgir dali. Há uma base material importante, há um nível cultural alto, ou seja, não é uma sociedade na qual possamos ver apenas a sua desagregação.

Existe algo de desagregador na questão das nacionalidades, na incapacidade que teve a economia de transferir todo conhecimento tecnológico para o cotidiano, de qualquer forma, também há algo que pode trazer contribuições efetivas para esse socialismo com mecanismos de economia mista, com outro tipo de integração internacional e não mais na bipolaridade, de dois blocos antagônicos. O importante, entretanto, é que essa contribuição não vem necessariamente da União Soviética. Eu não gostaria de menosprezar a experiência que as esquerdas, nos países mais desenvolvidos do capitalismo, podem nos oferecer. Porque dali está surgindo o embrião de nova sociedade. A crise do modelo social-democrata está trazendo uma discussão muito importante para a esquerda européia. Nós estamos vivendo uma crise que, no PCB, chamamos de "crise de civilização". Estamos entrando aceleradamente nessa revolução científico-tecnológica, que está mudando o modo de produção, as relações sociais e ainda não estamos com muita clareza de para onde isso vai. Eu vejo uma grande oportunidade histórica que a esquerda e o socialismo têm, nesse processo, de surgirem até com muito mais força e mais perspectiva histórica. A crise tem também aspectos positivos porque trouxe para o centro da discussão algumas questões que o capitalismo real tinha esquecido. A proposta do socialismo tinha perdido algumas características da generosidade: a questão da liberdade, da democracia etc.

A partir dessas mudanças do PCB, como é que poderíamos definir hoje a diferença entre o partido e a social-democracia?
Nos apropriamos da crítica da social-democracia ao socialismo real. É bom salientar que: não é a da social-democracia de hoje, mas da histórica, de Kautski, e também de revolucionários vinculados aos bolcheviques, como Rosa Luxemburgo que também criticou o encaminhamento que estava sendo dado à Revolução Russa, na questão da democracia. Nós hoje também estamos nos apropriando da crítica que foi feita pela social-democracia à questão da estatizacão. E fica difícil dizermos hoje, qual é a distinção que se faz com a social-democracia. Eu diria que ela está muito mais na decisão política, na luta em torno da hegemonia, do que propriamente em concepções de economia ou de democracia. Está muito mais na vontade de não gerenciar o capitalismo e tentar superá-lo, tentar criar uma nova hegemonia e de gerar também um processo em que as transformações mudem efetivamente as relações de produção. É muito mais isso do que uma definição muito clara como era a questão de estatização completa de toda a economia. Há uma aproximação do ponto de vista da concepção, mas é necessário termos realmente a perspectiva da criação de uma nova sociedade e não apenas do melhoramento dessa sociedade atual. Tudo isso é muito tênue e eu gostaria de dizer que não adianta também ficar imaginando que a distinção aí vai ser muito clara. Sabemos muito mais o que não queremos e onde não devemos ficar, do que o que queremos ou para onde devemos ir. Esse é um processo de discussão que vai envolver a esquerda de todo mundo. A riqueza que a esquerda tem como matriz do pensamento é muito grande, para que pensemos que só nós marxistas, ou aqueles que vêm do marxismo-leninismo, é que podemos encontrar a solução. Agora, alguma coisa está mais ou menos clara. Uma delas é que nós não podemos entender a social-democracia como nossa inimiga. Isso, pelo menos, já aprendemos. E se tivéssemos aprendido, há muito mais tempo, alguns erros não teríamos cometido. Se tivéssemos tido, pelo menos, uma relação fraterna - mesmo que divergente - com a social-democracia, talvez não tivéssemos a realidade que estamos vivendo hoje.