O PT precisa conhecer o Brasil. Para isso o partido terá que reunir toda sua experiência de onze anos. Não só a experiência da disputa política, mas a experiência social e cultural de milhares de militantes. Municiar-se com esse conhecimento, disseminá-lo na sociedade para que seja traduzido em projetos e ações.
As eleições estaduais de 90 mostraram a necessidade de entrar em particularidades regionais. No necessário estudo de cada caso, podemos expor aquele que conhecemos, o do Acre. Um lugar que a maioria das pessoas tem dificuldade para localizar no mapa - com uma população menor que a de um bairro de uma cidade grande - pode ter alguma importância na definição da estratégia e dos referenciais teóricos do PT?
O Acre é um caso internacional. O que acontece em Xapuri pode ser notícia em Nova Iorque, afetando relações diplomáticas e financeiras. Alguns pedidos de financiamento internacional que tramitam no Congresso Nacional foram submetidos à apreciação de uma reunião de seringueiros.
No Acre, o PT cresceu e passou ao 2º turno da eleição estadual, entre outros fatores, porque não tentou fazer da eleição um rancoroso 3º turno da campanha presidencial. Definiu um eixo regionalista e mostrou um projeto de governo cujos traços essenciais foram tornados visíveis à população.
Finalmente, interessa ao PT a temática básica que o caso do Acre revela e revela: a relação entre desenvolvimento econômico e meio ambiente. O conhecimento dessa questão tem importância, não apenas na definição de um programa de governo, mas também na montagem do arcabouço teórico e conceitual que vai orientar o partido agora e no futuro.
Os estrangeiros
Durante muito tempo sustentou-se, no Brasil, a visão de um "deserto amazônico" que precisava ser ocupado. Esse mito justificou a nova ocupação, nos anos 70, e o transporte para a região de milhares de famílias sem terra do sul do país. Uma concepção de desenvolvimento baseada na expansão da pecuária extensiva, da exploração madeireira e da chamada "fronteira agrícola" se impôs com a força de uma poderosa ideologia. O substrato político era dado pela doutrina militar da Segurança Nacional, sintetizada no slogan "integrar para não entregar". A floresta era apenas um empecilho ao progresso e a própria legislação até hoje considera o desmatamento uma "benfeitoria".
Quando, na década de 80, as pressões ambientalistas e os sucessivos fracassos econômicos forçaram os principais governos e organismos internacionais a considerar o meio ambiente uma questão estratégica, o Brasil foi pego na contramão. Sarney berrou bastante contra o perigo da "internacionalização da Amazônia", até ceder às pressões que aumentaram após o assassinato de Chico Mendes e, ao final de seu mandato, suspender os subsídios e incentivos fiscais à pecuária e decretar várias áreas de proteção ambiental.
A abordagem de Collor, bem a seu estilo, foi ruidosa e espetacular. Dinamitando pistas de pouso no garimpo e colocando o respeitado ecologista Lutzenberger na Secretaria de Meio Ambiente, o governo pretendeu antecipar-se às pressões. Ainda de acordo com seu estilo, no entanto, não colocou sob proteção legal um só hectare de floresta e esvaziou financeira e administrativamente o Incra, o Ibama e a Funai.
Tornado mais sutil o domínio militar na política para a Amazônia e, irreversivelmente, internacionalizado o debate, tudo encontra-se em aberto. A Amazônia é hoje a principal força e a principal fraqueza do Brasil na conferência do Rio em 92, um bilhete de entrada ou um cartão de expulsão do Brasil na "nova ordem internacional" que se esboça.
Parte das mudanças na política nacional e internacional para a Amazônia foi influenciada por acontecimentos no Acre. A luta dos povos da floresta e a importância dos aliados que conquistaram deram mais do que prêmios internacionais a Chico Mendes: ele e o movimento por ele liderado foram postos na condição de agentes de mudanças políticas e de interlocutores nas negociações internacionais. Assim é que o atraso do governo brasileiro na execução de um pequeno programa de defesa ambiental no Acre, o PMACI, faz com que o BID suspenda financiamentos para projetos bem maiores no centro-sul do país. No centro da discussão, está a construção de uma estrada para o Pacífico, cujo impacto ambiental e econômico gera preocupações e expectativas em Tóquio e Nova Iorque.
No Brasil, esse debate é recente. No Acre, já cansou. Para uma parcela dos trabalhadores acreanos, a preocupação com a internacionalização da Amazônia chega a ser risível. Afinal, foram companhias inglesas de navegação que trouxeram os nordestinos para povoarem os seringais, no final do século passado. A produção de borracha, feita num regime pré-capitalista semelhante à escravidão e apropriada no porto de Belém pelo mais avançado capital monopolista, sustentou o desenvolvimento da indústria automobilística na Europa e nos Estados Unidos.
O forte sentimento regionalista que existe no Acre é, portanto, o contraponto de uma internacionalização desde a origem, quando o espanhol Luis Galvez fundou o Estado Independente do Acre (ainda território boliviano) contra os interesses do Bolivian Syndicate americano. Hoje, a tentativa de reorganização da economia extrativista visa, mais uma vez, o mercado internacional. Os seringueiros de Xapuri montaram uma cooperativa com financiamento da Fundação Ford e vendem castanha para os Estados Unidos. Buscam o capital estrangeiro que, afinal, é o único que conhecem.
Mais estrangeiro, no entanto, é o chamado capital nacional, ilustre desconhecido na parte ocidental da Amazônia. O nacional-capitalismo chegou ao Acre com os militares, no início dos anos 70, com facilidades fiscais e empréstimo no banco. Foi apelidado de "paulista". Vinha falando em progresso, usava chapéu e botas de cano longo. Expulsou seringueiros e ateou fogo nos barracos. Matou sindicalistas, derrubou e queimou 15 % da floresta no vale dos rios Acre e Purus, onde se instalou. Não se trata, é claro, de preferir o patrão estrangeiro, mas apenas de mostrar que não se pode conferir título de nacionalidade a um setor de capital apenas porque é atrasado.
Os forasteiros
Até o final dos anos 60 o extrativismo vegetal vivia sua longa decadência. O Acre sonhava com o tempo em que a borracha valia ouro. Rio Branco, a capital do estado, era uma pequena cidade de 35 mil habitantes. Em 1970, o governo do Acre promoveu reuniões para empresários, no sul do país, onde anunciava o maior negócio do século, propiciado pelo baixíssimo preço da terra e pelas condições excepcionais oferecidas pela natureza. Grandes e médios pecuaristas do centro-sul atenderam ao chamado. Foi fácil comprar terras. Com a crise da borracha e a quebra do monopólio comercial nos seringais próximos às estradas recém-abertas, os seringalistas venderam as terras para saldar suas dívidas no Banco da Amazônia. De 1970 a 1974, foram vendidos 5 milhões de hectares, um terço do Acre, para empresas e pessoas do centro-sul do país, algumas com objetivo de instalar fazendas de gado, outras de mera especulação imobiliária.
A primeira fase foi de "limpeza do terreno", ou seja, de expulsão dos seringueiros e derrubada da mata para instalar o pasto. Foram desmatados no Acre, até hoje, aproximadamente 750 mil hectares, 70% para abrigar um rebanho bovino estimado em 400 mil cabeças. Os "paulistas" (que na verdade também vinham do Mato Grosso e Paraná) ocuparam as margens das estradas federais e as áreas próximas às cidades nos vales dos rios Acre e Purus.
A segunda fase da afirmação do modelo pecuarista é o momento da exploração madeireira. Durante dez anos, as áreas desmatadas eram simplesmente queimadas e o comércio de madeiras crescia muito lentamente. A partir de 1980, começa a aumentar o número de serrarias instaladas, que praticamente dobrou a cada ano entre 85 e 88. Note-se que no mesmo período diminui essa atividade em Rondônia, revelando uma "migração" que já havia passado por Mato Grosso.
No ano internacional do mogno, 1987, 80% das serrarias instaladas na região florestal de Rio Branco trabalhavam exclusivamente para atender contratos de exportação para os Estados Unidos e Canadá, que receberam 60 mil m3 de mogno do Acre. O preço do m3 na serraria era de US$ 200. Na América do Norte, US$ 1.100. Por causa da política federal de incentivo à exportação nem um dólar furado foi recolhido de imposto pelo estado do Acre. Em todo o ano, saíram uma média de 17 caminhões por dia, carregados da madeira mais valiosa da floresta tropical.
Não é de admirar que o modelo pecuário-madeireiro seja confundido com "o progresso". Seu impacto mudou a paisagem rural e urbana, junto coma especulação imobiliária. Um forte comércio de equipamentos, máquinas e implementos agropecuários se desenvolveu. A UDR realizou leilões públicos, elegeu deputados, subornou a classe média e comprou metade da imprensa. Em 1988, no período de maior confronto, sentiu-se suficientemente forte para matar Chico Mendes. Alguns de seus aliados reconhecem hoje que pode ter sido um erro de cálculo.
Passados vinte anos, o modelo pecuário-madeireiro fracassou. Isso é claro para quem observa os prejuízos ambientais como a queda da biodiversidade, o empobrecimento do solo, o assoreamento dos rios e igarapés. Hoje, nas áreas mais alteradas, a estação seca traz a convivência com algo antes desconhecido no trópico úmido: o incêndio florestal.
A reação da natureza à pastagem foi surpreendente. Os fazendeiros não conseguem soluções eficazes para o empobrecimento do solo e o ataque das pragas. Mais de trezentos tipos de capim foram utilizados e apenas quatro demonstraram razoável grau de adaptação à região, mesmo assim durante pouco tempo. No pasto degradado ergue-se uma insidiosa vegetação, inóspita e inútil, que, em 1987, já havia avançado sobre 10% da pastagem inicialmente plantada, em uma espécie de vingança da floresta agredida.
O prejuízo social é enorme e difícil igualmente de sanar. Quinze mil famílias de seringueiros buscaram refúgio na Bolívia. Rio Branco, uma cidade com 200 mil habitantes, tem um déficit de 15 mil moradias. A população amontoa-se em favelas sem saneamento, milhares de crianças perambulam pelas ruas. O resultado é a guerra urbana que, em 1989, fez uma morte violenta a cada dois dias.
O modelo pecuário-madeireiro não está preocupado, obviamente, com o meio ambiente e a miséria social. Seu fracasso mais importante é o econômico. Após vinte anos de "desenvolvimento", o estado ainda tem uma arrecadação própria de apenas 20% de seus gastos, prosseguindo em sua dependência quase absoluta dos repasses da União. No setor primário da economia, a arrecadação do ICM mostra quem é quem: a borracha responde por 74% do total arrecadado, a castanha por 13%. Madeira e pecuária, juntas, ficam com apenas 12% (dados de 1987).
O fracasso é tanto maior quando se considera todo o aparato institucional que esteve voltado para apoiar esse modelo. Crédito, incentivos fiscais e subsídios foram tão abundantes quanto os serviços de infra-estrutura oferecidos.
Os nativos
Esse modelo fracassou pela sua inadequação à região Amazônica. Mas o fator determinante foi a oposição de grande parte da população regional. A decadência das velhas oligarquias fez ruir estruturas seculares de dominação. O novo modelo prescindia de gente e queria a terra "limpa". Sem patrão, o povo foi à luta.
O movimento popular viveu também duas fases: resistência e avanço. Na primeira, na década de 70, formaram-se os sindicatos sob a direção da Contag, com a reivindicação básica: posse da terra. Sob a bandeira da Reforma Agrária, os trabalhadores rurais enfrentaram a violência dos pistoleiros e encontraram aliados em setores até então hostis, como a Igreja. Parte da classe média urbana também respondeu com um vigoroso movimento de oposição que fez surgir uma imprensa independente e crítica. O movimento buscou o MDB (Chico Mendes era vereador em Xapuri), mas só encontra vínculos partidários adequados no final da década, quando surgiu o PT.
Em 1976 acontece o primeiro "empate", organizado pelo Sindicato de Brasiléia. Grupos de trabalhadores organizados passam a se defrontar, cada vez mais, com peões de derrubadas e com pistoleiros. O movimento se espalha no vale do rio Acre. Quando Wilson Pinheiro, a principal liderança nessa fase, é assassinado em Brasiléia, no início dos anos 80, Chico Mendes iniciava seu primeiro mandato na presidência do Sindicato Xapuri.
A luta pela terra revela limites. Os projetos de assentamento do Incra distribuem lotes de 80 hectares para imigrantes. Ao seringueiro, acostumado à vida na floresta, a "terra, cortada" não serve. Ele quer permanecer na "colocação" que lhe proporciona pesca e caça e onde pode praticar a agricultura numa escala que permite a recuperação da floresta.
É essa noção de floresta como valor fundamental, ao invés da terra, que possibilita a passagem para uma segunda fase do movimento, com um avanço expresso na elaboração de uma proposta alternativa. O movimento dos seringueiros tem que beber na fonte da cultura indígena para isso acontecer.
Desde 1976, os povos indígenas vivem também uma nova fase na sua existência. Os Kaxinauás costumam dividir a história de seu contato com os cariús (brancos) em três tempos. Primeiro é o tempo das correrias, em que foram perseguidos e massacrados nas aldeias. Depois o tempo do cativeiro, no qual vivem como escravos dos patrões seringalistas e, desaldeados, aprendem a viver como seringueiros. Finalmente, o tempo dos direitos, em que expulsam os cariús, reagrupam-se e passam a tocar por conta própria seus seringais. Nesse tempo, descobrem que têm direito à demarcação de suas terras e passam a lutar por isso. Realizam assembléias de lideranças, organizam a União das Nações Indígenas, viajam a Brasília, invadem diversas vezes a delegacia da Funai em Rio Branco. Descobrem, através do auxílio da Comissão Pró-índio do Acre, um instrumento fundamental para sua luta: a cooperativa, ou "cantina", com a qual eliminam os intermediários entre sua produção e o comércio nas cidades. Rapidamente, os projetos econômicos, que passam a fazer parte do vocabulário das aldeias, transformam-se em projetos de educação.
É no exemplo dessa nova Reserva Indígena, com serviços sociais autogestionários, que os seringueiros vão buscar o modelo para sua proposta de Reserva Extrativista, na qual propõem a superação do binômio castanha-borracha por uma economia florestal diversificada e moderna. Em 1985, com formação do Conselho Nacional de Seringueiros, a proposta está amadurecida e começa a ganhar a simpatia de cientistas e ambientalistas no Brasil e no exterior. Em Xapuri, o Centro de Trabalhadores da Amazônia executa o Projeto Seringueiro, criando escolas, postos de saúde e as primeiras tentativas de organizar uma cooperativa.
Antes do final da década, seringueiros e índios formalizam a Aliança dos Povos da Floresta, pondo fim à inimizade do tempo da imigração nordestina e unindo forças contra os latifundiários. A partir de então, o contato com as organizações ambientalistas dos EUA e Europa dão ao movimento a importância internacional que lhe permite contestar o modelo de desenvolvimento econômico imposto à Amazônia e elaborar propostas alternativas. O movimento, num momento crucial de enfrentamento, perde com o assassinato de Chico Mendes, sua principal liderança. Para acelerar a formação de novas lideranças, capazes de manter e ampliar os laços de solidariedade nacional e internacional que já se haviam constituído, foi necessário um grande esforço adicional.
Hoje a "República do Acre" envia seus embaixadores, lideranças dos povos da floresta, a reuniões com as mais diferentes organizações de vários países. Nos últimos quatro anos, mais de quarenta delegações estrangeiras, governamentais ou não, estiveram no Acre para se reunirem com as entidades do movimento. O mesmo Canadá que comprou mogno dos madeireiros, em 1987, financia, hoje, um programa de 10 milhões de dólares para Reservas Extrativistas.
O patrimônio maior do movimento, no entanto, é a conquista de um terço da área do Acre: 2 milhões de hectares de Reservas Extrativistas, 2 milhões em áreas indígenas, um milhão em projetos de assentamento agrícola. Embora a política do governo adie a demarcação, a regularização fundiária e a assistência técnica e entregue estas áreas à sua própria sorte, há a esperança de que o movimento, que as conquistou, tenha capacidade de mantê-las e nelas realizar os seus projetos.