Sociedade

Um relato de quatro experiências que podem contribuir para a discussão do projeto de lei antimanicomial do deputado Paulo Delgado. Uma visita a La Borde (França), Setúbal (Portugal), Trieste (Itália) e São Paulo.

O projeto de lei do deputado federal Paulo Delgado aguarda tramitação e vem estimulando uma discussão ampla a respeito das atuais práticas psiquiátricas em nosso país. Quero relatar quatro experiências diferenciadas, conduzidas, hoje, na França, Portugal, Itália e Brasil.

A Clínica de La Borde, instituição privada, localizada a 200 quilômetros ao sul de Paris e distante 5 quilômetros da cidade mais próxima, foi instalada em 1953 num castelo circundado por um bosque. Os cem pacientes (pensionnaires), que a clínica atende, residem no próprio castelo. Como salienta Jean Oury, diretor clínico da instituição e iniciador dos trabalhos aí implantados, o esquizofrênico não está em parte alguma. "Todo o nosso trabalho consiste em fazer com que ele possa estar um pouco, em algum lugar". Essa é a perspectiva da Psicoterapia Institucional, movimento psiquiátrico que começa no pós-guerra com o médico-psiquiatra catalão F. Tosquelles e que prossegue, rias propostas de trabalho da Clínica de Saint Alban, ao sul da França e da Clínica de La Borde, onde atua o filósofo Félix Guattari.

Em resumo, a Psicoterapia Institucional baseia-se em múltiplos trabalhos e constata que um esquizofrênico, num meio fechado, tende a assumir atitudes, por vezes, estereotipadas, como uma espécie de reação ao meio. Trata-se de uma "doença de hospital". A Psicoterapia Institucional apresenta, justamente, um conjunto de procedimentos para enfrentar os efeitos da hospitalização.

La Borde é um hospital aberto, formado pelo castelo e dois prédios que servem de enfermaria, além de inúmeros edifícios pequenos, destinados às atividades dos pacientes. Todas estas instalações estão situadas numa paisagem com bosques e um lago. O funcionamento da clínica é de responsabilidade coletiva dos pacientes e dos que lá trabalham: médicos, psicanalistas, monitores, estagiários e funcionários. As tarefas que mantêm o hospital em operação, como limpeza, cozinha, telefone, recepção, transportes e outras, são divididas entre todas as pessoas.

O Clube Terapêutico, coordenado por pacientes e monitores, tem a função de organizar as atividades da Clínica, que são os seus vários ateliês (música, pintura, cinema, escrita e até um ateliê onde se reúnem para conversar sobre o Brasil), passeios, bar, tabacaria. Aí se discute de tudo, inclusive problemas de pacientes com dificuldades para custear seu tratamento dentário. O dinheiro faz parte de todas as atividades e todos podem comprar o que desejam.

Os elementos terapêuticos nesse caso são o acolhimento, o ambiente, a relação entre as pessoas e o tratamento psiquiátrico (psicanalítico), o âmbito coletivo, enfim. O direito de cada um é assegurado. O tratamento persegue um processo terapêutico pessoal.

Em Portugal, pude conhecer um outro projeto, também inspirado na Psicoterapia Institucional e que está implantado, desde 1970, na região de Setúbal, próxima de Lisboa cerca de cinqüenta quilômetros. Trata-se de serviço público que presta assistência psiquiátrica para uma população de 230 mil habitantes, dispersos pela região em pequenas cidades. O diretor do Centro de Saúde Mental, Bráulio de Almeida Sousa, afirma: "Em nosso tratamento quem deambula é a equipe de saúde mental e não o paciente". Diariamente, uma equipe, incluindo médico, enfermeiro, psicólogo e assistente social, desloca-se para uma cidade de região, com o objetivo de dar assistência psiquiátrica aos pacientes que, nos outros dias, contam com o apoio dos médicos generalistas treinados para essa finalidade.

O projeto conta com uma unidade de internamento em Setúbal, para cem pacientes e mais trinta em hospital-dia. Essa unidade ocupa um antigo edifício, onde a ditadura salazarista prendia os "desocupados" da região (na época, era ilegal não ter emprego ...). Hoje, o local está transformado numa bela unidade de tratamento, acolhendo antigos pacientes que não dispõem de outra moradia e, que aí usufruem atividades de artesanato, marcenaria, criação de animais, produção agrícola, além de aproveitarem as possibilidades que a região oferece, como feiras e festas, nas quais podem vender seus produtos. Fundou-se a Associação "Dr. Fernando Ilharco", que apóia o funcionamento do projeto, pois este não subsiste só com verbas públicas. Uma das preocupações atuais é construir pensões para os pacientes que moram no hospital e não têm residência.

Em Trieste, cidade do norte da Itália, o psiquiatra Franco Basaglia e pessoas de sua equipe iniciaram, em 1971, a reorganização do atendimento de saúde mental. A iniciativa propunha a abolição do hospital psiquiátrico, com sua substituição pelo atendimento dos usuários (utenti) em centros de saúde mental, nos quais se empreenderia a reabilitação destes para a vida social, por meio de cooperativas de trabalho.

Trieste tem uma população de cerca de 300 mil habitantes e o atendimento de saúde mental é territorializado, isto é, há sete centros de saúde mental, responsáveis pela atenção aos pacientes de uma área delimitada. Estes centros estão ativos 24 horas por dia, com leitos para pacientes de ambos os sexos, geralmente quatro de cada, e atendem a todas as demandas de saúde mental da área. Nestes centros, trabalham psiquiatras, enfermeiros, assistentes sociais, sendo que alguns contam com psicólogos. Funcionam como centros de internação temporária, ambulatórios, locais de apoio e referência para todos os que necessitam de tais serviços. Aí se realizam visitas domiciliares e acompanhamentos dos pacientes por voluntários.

Existe um serviço de emergência psiquiátrica que funciona, 24 horas por dia, num hospital geral, com quatro leitos. Atende pacientes em crise e efetua internações curtas, enviando o paciente para o seu centro dê referência. Ressalte-se, igualmente, a atuação das cooperativas, que atualmente são cinco (couro, bar, gráfica, construção, serviços), reunidas numa administração geral, integrada pelos diretores das cooperativas - enfermeiros que passaram pelos centros. As cooperativas recebem pacientes e outras pessoas da cidade (adolescentes com dificuldade de inserção social, tóxico-dependentes, interessados), encaminhados pelos centros com uma bolsa de trabalho paga pelo governo. A idéia dessas cooperativas é que a qualidade e a produção permitam competir no mercado de consumo, abrindo espaço para a reabilitação dos pacientes.

Há, ainda, outras propostas que se orientam no sentido de assegurar a manutenção do paciente na vida social, tais como os grupos-apartamentos coordenados pelos centros e onde moram um ou mais pacientes, com apoio dos voluntários; o trabalho com famílias, crianças e adolescentes psicóticos e o projeto cultural, a cargo da cooperativa, com a proposta de atuar nesta faixa de alta incidência de problemas psíquicos que é a adolescência, marcada pela incidência de drogas, desemprego e falta de perspectivas. No âmbito deste projeto, realizam-se eventos teatrais, oficinas de expressão plástica e outras atividades com a participação de pacientes e comunidades.

Gostaria agora de mencionar uma experiência que se realiza na cidade de São Paulo. Iniciamos, em 1986, a implantação de um projeto de atendimento do paciente com transtornos mentais graves - Centro de Atenção Psicossocial "Prof. Luís Cerqueira", pertencente à Secretaria de Estado da Saúde. Numa casa do bairro da Bela Vista, sessenta pacientes passam o dia em tratamento, retornando para suas casas. É um local de acolhimento e tratamento - ambiente em que cada paciente pode ter seu processo terapêutico individualizado. Uma equipe de quarenta pessoas, com psiquiatras, psicólogos, terapêutas ocupacionais, escriturários, serventes, estagiários, acompanhadores terapêuticos, vigias, porteiros e auxiliares de enfermagem se encarrega das atividades terapêuticas.

Estas atividades organizam o funcionamento da casa, em torno de grupos de terapia ocupacional, de psicoterapia, de psicodrama, de família. Também se realizam atendimentos individuais de psicoterapia e de medicação; oficinas de marcenaria, música, pintura, escrita (jornal), argila e toda outra possibilidade que venha a se criar.

Neste momento, desenvolve-se o projeto-trabalho, consistindo, por ora, na operação de uma marcenaria, de uma copiadora e de uma barraca de sanduíches, em que funcionários e pacientes atuam segundo um sistema de cooperativa.

Para viabilizar financeiramente este e outros projetos, fundamos a Associação Franco Basaglia, da qual participam usuários de serviços de saúde mental, familiares, trabalhadores da área e pessoas que se identificam com a proposta. A Associação vem desenvolvendo núcleos e propondo outros projetos (moradia).

Completa a proposta do Caps, o núcleo de ensino e pesquisa que recebe estagiários, abre a casa para visitas com debates envolvendo estudantes e profissionais, recebe e promove projetos de pesquisa em nossa área de interesse.

Jairo Golberg é psiquiatra, diretor do Centro de Atenção Psicossocial "Prof. Luís Cerqueira".