Cultura

Atenção, você também é o mocinho da história

Diante do fenômeno de um obscuro escritor já ter vendido mais de um milhão de livros no Brasil, podemos tomar duas atitudes: fechar ou abrir os olhos.

Para fechar os olhos, basta considerar a grande fuga para o terreno da alienação ou da mistificação, na qual - entre a explosão de tantas seitas esotéricas, igrejas eletrônicas e movimentos carismáticos - o sucesso editorial de Paulo Coelho pode se inserir. Mais um pouco de ópio.

Porém, ao se abrir os olhos não se pode deixar de ver que tal sucesso editorial revela um fenômeno psicossocial profundo.

Já havia assinalado em 1988, quando Marion Zimmer Bradley vendia fábulas e nosso autor não era ainda conhecido, que as raízes desse fenômeno psicossocial deveriam ser buscadas na crise ideológica. Dizia, naquela ocasião, que é na crise de sentido para a vida - uma crise ideológica - que devemos buscar as "razões" para a atração que o simbólico, o mágico, o mítico vêm exercendo sobre as pessoas. Em momentos como estes, de crise ideológica profunda, não é estranho que se manifeste uma aspiração de modificar o mundo a partir dos olhos de quem o vê, isto é, de reideologizar a vida. De dar um sentido às coisas, descobrindo uma íntima relação entre elas, não a partir do estudo da realidade puramente objetiva, fenomênica, como pretende a ciência, mas a partir do seu significado para nós, da sua relação com o sujeito. Essa tendência de captar um nexus rerum, não como nexus phoenomenorum, mas como comerciumspiritum - para utilizar uma frase de von Baader - talvez explique o florescimento (ou o reflorescimento), em tempo de crise ideológica, de vários tipos de filosofias espiritualistas. De qualquer forma, essa dimensão fantástica da realidade, como nós a vemos ou queremos ver, ocupa, nos corações e mentes, um espaço que jamais poderá ser preenchido por uma ideologia newtoniana do científico, que exclui o sujeito.

Tudo bem. Mas por que Paulo Coelho? Por que não qualquer outro, dentre as dezenas de escritores espiritualistas que existem hoje no país?

Vender, em média, mais de mil livros por dia, durante mil dias, seria plausível se estivéssemos diante de um poderoso esquema de marketing, compreendendo da mala direta à utilização do outdoor e da mídia televisiva, passando pela promoção da crítica literária, nas revistas e jornais de grande circulação nacional. Nada disso, que eu saiba, foi usado no "caso" Paulo Coelho. Pelo contrário: sua editora inicial era desconhecida - e até rompeu o contrato temendo prejuízo -, não houve nenhuma propaganda antes da explosão das vendas e, por último, a crítica literária, mesmo depois desta explosão, manteve-se francamente hostil.

Ora, se num país semialfabetizado como é o Brasil, a cada minuto, cerca de três pessoas, em média, compram O Diário de um Mago, O Alquimista ou Brida, isto no mínimo mostra que o autor destes livros diz algo que estas pessoas estão querendo ouvir. O que ele está dizendo?

Fundamentalmente, Paulo Coelho está dizendo que existe um "caminho das pessoas comuns". Está tirando do círculo aristocrático dos iniciados o monopólio da aventura e do mistério, que consiste em construir o caminho e celebrar os sinais do futuro. Ou seja: o caminho da auto-superação do homem ou da sua realização como promessa divina. A mensagem se repete, desde O diário de um mago (1987): "o caminho da Tradição não é o caminho de poucos escolhidos, mas o caminho de todos os homens!" ; passando por O alquimista (1988): "a Grande obra não é tarefa de poucos, mas de todos os seres humanos sobre a face da Terra... todos nós podemos - sem qualquer sombra de dúvida - mergulhar na Alma do Mundo"; até o último Brida (1990): "a Tradição do Sol era o caminho de todos os homens, e estava ali para ser decifrada por qualquer pessoa... "

Em outras palavras, ele está dizendo: - atenção, você também é o mocinho da história! Não são somente alguns poucos escolhidos que podem ascender aos mistérios da iniciação, através dos quais se elevarão da condição humana "normal", tornando-se aptos a participar de uma nova humanidade. Você também pode participar!

Ao dar esta mensagem, Paulo Coelho estabelece uma ligação direta com a procura - generalizada neste tempo de crise ideológica profunda que estamos atravessando de um novo mythos que devolva significado e propósito às vidas humanas; um grande mythos, mediante o qual as pessoas possam reestruturar suas vidas como um processo, conferindo significado a cada fase deste processo. Uma tentativa de recuperação da dimensão ritual da vida - sem a qual ela perde sentido no desespero de ações terminais ou através da náusea da rotina cotidiana. Estabelecer este contato é o que ele chama, em Paulo Coelho por ele mesmo, organizado por Edigar Oliveira, de "tocar no mago que existe em cada um, na bruxa que existe em cada uma".

Não tenho dúvidas disso: no âmbito da chamada tradição espiritualista - uma tradição com leituras, em geral, autoritárias e elitistas - a obra mais recente de Paulo Coelho constitui uma contribuição democrática original.

Poder-se-ia objetar que muitas idéias de Paulo Coelho não são tão originais assim. Brida tem muito de Laurie Cabot, assim como O alquimista tem algo de Joseph Campbell.

Com efeito, em O poder do mito (1988), Campbell fala das "Bem-Aventuranças" ("onde o seu corpo e a sua alma desejam ir") que constituem, no fundo, a mesma coisa que a "Lenda Pessoal" de Paulo Coelho ("aquilo que você sempre desejou fazer"). Aquele que persegue sua bem-aventurança, diz Campbell, está como que sendo ajudado o tempo todo por mãos invisíveis: "Persiga a sua bem-aventurança e não tenha medo, que as portas se abrirão, lá onde você não sabia que havia portas". Cumprir sua Lenda Pessoal, completa Paulo Coelho, "é a única obrigação dos homens... E quando você quer alguma coisa, todo o universo conspira para que você realize seu desejo" (O Alquimista).

Em "O poder da bruxa" (1989), Cabot menciona os principais elementos de magia certa (dos antigos wicca e wicce) que serão repetidos pelos personagens Brida O'Fern sob orientação de sua mestra Wicca! Aliás, para além desta coincidência, a grande obra feminista que representa este livro de Laurie Cabot (com Tom Cowan) aponta na mesma direção democrática da mensagem central de Paulo Coelho. Escreve Cabot: "À medida que o mundo se torna mais democratizado, vejo pessoas de vocação espiritual ansiando por um tradição sagrada em que homens e mulheres possam participar plenamente, sem hierarquia nem súditos, um caminho espiritual que todos percorrem juntos como iguais".

Tais coincidências confirmam o surgimento de abordagens espiritualistas de uma nova geração, isto é, baseadas em mitos capazes de impulsionar e conduzir um projeto de futuro onde não haja mais lugar para a dominação ideológica, a opressão política e a exploração econômica. Apesar da maioria das concepções e práticas ditas esotéricas estarem contaminadas por elementos ideológicos de dominação, são perceptíveis, hoje, indícios animadores de que novos elementos de libertação começam a emergir, ao menos, em certo tipo de literatura espiritualista. É o caso, por exemplo, de Frederik Hetmann (aliás Hans Christian Kirsch) que dá, em Madru, a lenda da grande floresta (1984) uma visão bastante inovadora do Tarot, apresentando princípios da luta ecológica e socialista. Kirsch, Campbell, Cabot, Coelho - e vários outros que fazem sucesso hoje - "estão na (mesma) onda", como se dizia nos anos 60.

Fico pensando como reagirão os marxistas ortodoxos diante deste artigo e, principalmente, perante o fenômeno que procura analisar. Os que desejam ficar de olhos fechados, podem descansar em paz - permanecendo como já estão. Aos que não tiverem medo de abrir os olhos recomendo refletir sobre uma frase do próprio Paulo Coelho: "Quando Marx falou que ‘a religião é o ópio do povo’, provavelmente entendia muito pouco de ópio".

Augusto de Franco é membro da Executiva Nacional do PT.