Nacional

O Brasil não possui outros partidos com a perspectiva do PT. Somos os únicos que podem reunir linguagem popular, mística para a luta, base operária e propostas para um futuro democrático. Só nos falta energia para arregaçar as mangas

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Com apenas dez anos de história, o Partido dos Trabalhadores já tem três gerações de militância. A da resistência, formada na luta contra a ditadura, entre 1964 e 1985. A reivindicatória que, em torno do movimento sindical, lutou pelos direitos dos trabalhadores, pelas eleições diretas, pela democracia e pela anistia. E uma geração que, percebendo a possibilidade do PT ser alternativa de poder no país, avança da reivindicação de grupos para a formulação de propostas viáveis para uma nova sociedade no Brasil.

Até 1964, as esquerdas brasileiras tinham uma posição ativa na formulação das propostas em debate pela sociedade. A esquerda fazia sua agenda, ao lado do povo. A partir de então, as forças de esquerda passaram à resistência e caíram na defensiva, passando a reagir aos temas das agendas formuladas pela direita. Com isto perderam a iniciativa de formular alternativas para o conjunto do país e mesmo de fazer as necessárias autocríticas.

Apesar disto, raramente a esquerda teve diante de si um quadro tão potencialmente rico para propor o debate dos temas que ela deve elaborar junto com a sociedade. E, dentro das esquerdas, nenhum partido tem as possibilidades, a obrigação e a urgência do Partido dos Trabalhadores.

Hoje, o PT é o único partido que tem uma sólida base sindical, uma massa crítica de pensadores e uma estrutura nacionalmente implantada. Por outro lado, é um partido que já nasceu sob o desejo de um socialismo democrático, sem o ônus do socialismo real.

Mas, para levar adiante o seu potencial, o PT deve definir uma agenda própria. Deve realizar um intenso debate entre seus quadros e levar suas conclusões para o povo.

A retomada da utopia

A construção do esforço político na luta reivindicatória, ao lado da crise do socialismo, tem feito o PT perder o sentido de utopia. Na maior parte do tempo, a luta política se dá em torno das reivindicações salariais e sindicais ou eleitorais. No entanto, o PT não pode deixar de sonhar e ter um compromisso com uma sociedade utópica.

A crise no Leste Europeu, longe de ser um empecilho, representa uma libertação dos conceitos antigos. O PT surgiu como um partido sem medo de sonhar e sem culpa em relação ao passado de outros partidos de esquerda. Tem todas as condições para avançar na formulação de uma utopia possível para o país. A tarefa é definir o tipo de sociedade e menos o nome do regime que esta sociedade terá.

O partido deve preocupar-se com o conteúdo de uma sociedade sem exploração, com soberania para o uso de seus recursos, democrática no seu funcionamento político e socialmente caminhando para a igualdade, eficiente na sua economia. Deixando o formalismo e a categorização desta sociedade para os teóricos, saindo da posição acadêmica, o PT criará uma nova linguagem para explicar o mundo futuro que desejamos construir.

No entanto, ao assumir o lado do trabalho, dentro do esquema da civilização industrial, os militantes deixam de perceber que o mundo caminha para formulações que vão além da atual concepção do paradigma civilizatório, que incorpora metas como o equilíbrio ecológico, a liberdade, a conquista do tempo livre, o valor da cultura.

A pauta do povo

Algo está errado em um partido de esquerda que tem proposta clara para a diminuta parcela de trabalhadores com salários de até quinze vezes a renda per capita nacional, com vantagens e benefícios como estabilidade e semana inglesa, mas que ignora milhões de trabalhadores e microempresários, como ambulantes, motoristas de táxi, pequenos proprietários rurais, que trabalham doze a quatorze horas por dia, sem quaisquer direitos.

Os resultados eleitorais mostram que nem sempre os excluídos votam no PT. Os demagogos da direita, em diversos momentos, conseguiram dar a impressão de que o PT e as esquerdas defendiam privilégios.

A primeira obrigação de um partido popular é conhecer e se comprometer com uma pauta de reivindicações que reflita os interesses do povo. Lamentavelmente, nem sempre as esquerdas e o PT têm demonstrado clareza sobre esta pauta. Concentram-se basicamente nas reivindicações salariais dos grupos sindicalizados e organizados. Ou limitam-se a reagir, com uma antipauta, ao que a direita propõe.

O povo brasileiro tem uma variedade de interesses que não cabe em uma lista de reivindicações que se limite a emprego e salário. Por isto, muitas vezes, o partido termina tendendo mais para os grupos assalariados de renda média do que para as grandes massas.

A discussão para a identificação de uma pauta que capte os desejos não apenas dos explorados, mas também dos excluídos do sistema e que incorpore seus interesses econômicos e seus projetos para o futuro do país é um tema central.

A evolução social do Brasil

Embora menos do que os demais partidos, o PT mantém uma visão tradicional sobre a evolução social do Brasil. Assume que o avanço técnico é o caminho necessário e suficiente para o desenvolvimento social. E que o capitalismo é uma etapa necessária para este avanço.

Até os anos sessenta era lícito pensar que interessaria aos capitalistas uma reforma agrária que incorporasse as massas rurais que, além de baratear os preços dos alimentos, aumentasse a demanda dos bens industriais. Em vez desta reforma agrária, a incorporação da terra foi feita voltada para a dinâmica do setor industrial de veículos, de implementos agrícolas e das grandes empreiteiras. O aumento da produtividade foi conseguido na produção voltada para exportação. O destino da população foi a migração para as favelas dos grandes centros urbanos.

Não ocorreu a aliança entre a burguesia e as massas brasileiras contra o imperialismo internacional, mas sim entre a burguesia e a classe média, inclusive entre proletários, incorporada ao consumo.

Esta evolução exige uma revisão das possibilidades e conveniências das alianças dos partidos de esquerda que estejam comprometidos não apenas com a evolução econômica, mas sobretudo com a libertação e o beneficiamento das massas nacionais. Exige, também, uma visão menos idealista do papel do avanço técnico que, quando transplantado diretamente de economias mais ricas e sociedades integradas, para economias de renda mais pobre e sociedades segregadas, pode ser um elemento negativo para a evolução social.

Contradições entre Estado e interesse público

Por causa da prisão corporativa e ainda como resquício das teorias revolucionárias do começo do século, o PT tem defendido como de interesse público tudo que é estatal. Mesmo quando o Estado é manipulado a serviço de grupos privados. Há necessidade de uma análise cuidadosa do papel do Estado, especialmente o Estado formado pela ditadura militar, mas que continua merecendo a defesa do partido, sem as necessárias ressalvas.

O fato de muitas vezes concentrar sua luta nas reivindicações trabalhistas, específicas de cada sindicato, tem impedido o PT de perceber que estatal não é sinônimo de público. Talvez imaginando que para servir ao interesse público bastaria que empresas estatais elegessem seus dirigentes pelo voto dos funcionários.

O mundo de hoje exige que a solução dos problemas sociais se dê em sintonia com as necessidades e com o respeito à individualidade de cada pessoa. Se é certo que o mercado carrega nitidamente um poder concentrador e destruidor, a liberdade individual pode ser um instrumento de criação a serviço dos interesses sociais.

As relações com os sindicatos

A origem sindical é a maior de todas as qualidades do PT. Mas, como toda origem, também gera dificuldades se, ao amadurecer, o partido continua preso ao cordão umbilical que o criou.

Um partido não funciona satisfatoriamente, se limitar sua organização às estruturas sindicais. Primeiro, porque tem a obrigação de oferecer uma proposta abrangente para uma parte majoritária da sociedade, enquanto cada sindicato deve representar apenas o grupo específico de seus associados. Mesmo as centrais não têm o papel de analisar e propor alternativas que compatibilizem as contradições entre os diferentes grupos que cada sindicato representa. Segundo, porque o movimento sindical, especialmente no Brasil, representa apenas uma minoria da população. Uma enorme quantidade da massa de explorados e marginalizados está fora do trabalho organizado e dos sindicatos.

Prisioneiro da visão sindical, o partido raciocina corporativamente e sente dificuldades para avançar nas propostas para o conjunto da sociedade. Por outro lado, os sindicatos passam a ser usados e, às vezes, ocorre mesmo de serem manipulados por interesses partidários, negando sua função específica de representante corporativo e se isolando das bases.

A explicitação clara dos papéis de partido e sindicatos é uma tarefa urgente para o PT e para o movimento sindical.

As relações com o exterior

A origem do PT, entre os trabalhadores do setor moderno, provocou no partido uma natural atração pelo proletariado do Primeiro Mundo. Desde o início, criou vínculos com sindicatos dos países ricos, em uma aliança que certamente ficará tênue, à medida que o partido fizer uma clara opção pelos interesses das massas do Terceiro Mundo.

A luta contra a recessão no capitalismo central tenderá a criar contradições entre os interesses dos trabalhadores dos países ricos e as massas marginalizadas no mundo. A luta por salários poderá unir trabalhadores sindicalizados de multinacionais, mas não os unirá aos povos dos países pobres.

O PT terá que ter uma posição internacional mais alinhada aos interesses do Terceiro Mundo do que ao proletariado do Primeiro . Terá que entender a desigualdade do final do século XX, de uma forma específica, que não repete a idéia de unidade do proletariado internacional, proposta por Marx. Além do desvio de um internacionalismo proletário que não se aplica ao mundo de hoje, alguns quadros do partido começam a ser atraídos pelo discurso "modernista" da integração da economia internacional ao capitalismo mundial. Esta proposta, dos neoliberais, em nada muda o caos sócio-econômico em que nos encontramos. A economia brasileira está, há muito, integrada internacionalmente. Não há a menor hipótese de incorporar os milhões de brasileiros marginais, através do capital internacional ou da integração ao mercado mundial.

O PT deixou de perceber, também, a responsabilidade que tem diante das forças populares da América Latina. Nenhum outro partido de esquerda chegou tão perto de vencer uma eleição presidencial na América Latina. Mesmo Allende foi eleito com pouco mais de um terço dos votos. Isto criou uma mística em todo o continente. O partido não deve continuar na postura elitista de ignorar os demais países do continente, isolando-se para relacionar-se melhor com o Primeiro Mundo.

Neste contexto estará uma firme posição em defesa de nossa soberania. Os próximos anos, em um mundo com uma única potência hegemônica, serão de constantes ameaças, especialmente diante do problema ecológico e da Amazônia. Ao mesmo tempo que luta pela proteção ambiental da Mata Amazônica, o PT deve deixar claro que não vê autoridade para nenhum país intervir na forma como usamos nossos recursos.

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Os instrumentos de luta

Em nenhum outro país, a classe média faz tanta greve quanto no Brasil. A maioria dos dias parados; nas greves dos últimos anos, ocorreu entre trabalhadores de classe média, profissionais liberais, com estabilidade garantida no emprego. Estas greves se transformaram nos principais instrumentos de luta do PT.

Cada greve, mesmo quando vitoriosa do ponto de vista do segmento, aliena uma parte considerável da população. Não apenas pelos incômodos decorrentes da paralisação, mas sobretudo porque as vitórias de alguns segmentos foram conseguidas em função de sacrifícios nas prioridades sociais, especialmente nos gastos do setor público.

É preciso encontrar propostas novas, com alternativas de luta que, sem perder o sentido de classe nem o apoio dos grupos corporativos organizados, sejam capazes de incorporar as grandes massas que não se enquadram na luta trabalhista tradicional.

A linguagem do partido

Esta tem se caracterizado muito mais por um dialeto próprio dos militantes, do que por uma linguagem abrangente para o povo. Nenhum partido crescerá apenas com os votos de seus militantes. Os partidos crescem graças à militância de seus quadros e à competência destes para ampliar a base de apoio entre simpatizantes e eleitores.

O uso de linguagem restrita está relacionado à vinculação do partido aos sindicatos das categorias mais organizadas e aos meios intelectuais, cuja opção política é sobretudo reivindicatória e racional. Um dos efeitos desta linguagem é a reduzida capacidade de ampliar além de um certo limite a base de apoio eleitoral. O PT sofre de uma forte influência das esquerdas tradicionais brasileiras que formulam seus discursos com base nos modelos teóricos importados da Europa, deixando de aproximar-se da população, cujos valores culturais não seguem exatamente a mesma forma de racionalidade.

O problema da linguagem não se limita à comunicação com as massas. Ele diz respeito ao próprio pensamento do partido. Muitos de nossos militantes, fascinados pelo debate dos temas teóricos, desviam as atenções dos problemas reais que interessam ao povo e usam o partido como instrumento de realização de uma vocação acadêmica.

No processo político, tão importante quanto a capacidade de análise da realidade deve ser o sentimento de amor pelo povo, por sua luta de libertação,pela superação das injustiças que sofre e o apego a valores nacionais deste povo.

Muitos militantes apresentam uma refinada análise das tendências sociais, sem um sentimento direto pelo povo. Em nenhum momento pode-se esperar vitórias em um processo político frio, sem envolvimento afetivo. Sem desprezar toda importância destas análises, é preciso ter de volta o sentimento, a paixão do exercício político e da opção escolhida.

A existência do concreto

O êxito na luta eleitoral, o voluntarismo de muitos militantes e a prática das reivindicações setorizadas fazem o PT agir com base em um entendimento superficial do processo social.

A realidade tem uma dinâmica própria que deve ser modificada pela luta política, mas que não é modificada apenas pela vontade dos que a fazem. Entender seus limites, sua dinâmica e as possibilidades de mudanças que ela permite e exige, é tarefa da militância. Sem isso, a ação política vai continuar a ser uma atividade deslocada das possibilidades. Estas atividades tendem a isolar o partido das massas já que a população tem o sentimento de suas próprias limitações, conhece os riscos das ações idealistas (no sentido de presas às idéias) e não aceitam realizá-las. Outras vezes, por força do poder de liderança e convencimento, o movimento de massas segue palavras idealistas mas encara derrotas que trazem graves consequências no futuro.

O conceito de democracia

Para muitos de nossos militantes, o conceito de democracia tem sido visto como se cada grupo de trabalhadores representasse o conjunto da população brasileira. Dessa forma, o conceito é parcial, insuficiente e, portanto, não-democrático.

A democracia deve ter um conceito mais amplo e servir ao conjunto da população. Se não fizer isto, o PT será surpreendido, dentro de alguns anos, na defesa de posições autoritárias, contra os interesses coletivos maiores, como forma de defender interesses corporativos.

A tendência à intolerância

A intolerância tem sua razão, na constatação do comportamento oportunista de muitos políticos de outros partidos e diante da selvageria da direita. Mas ela não pode dominar o comportamento dos militantes, sob o risco de isolar o partido.

Por outro lado, em um momento de mudanças e de perplexidade como o atual, a intolerância obscurece os erros e impede o avanço na formulação de novas alternativas.

Ela leva também a um comportamento nitidamente antipático, que faz com que a militância petista possa ser identificada como chata, do tipo de certas seitas religiosas. Ao antipatizar com todos que não são companheiros militantes às vezes até contra todos que não são da tendência, outras vezes até dentro da tendência, contra os que não foram fundadores - surge uma antipatia de todos os não-militantes contra os petistas.

A unidade das esquerdas

O resultado das eleições presidenciais de 89 deu ao PT uma responsabilidade histórica na formação de uma necessária unidade das forças de esquerda. Lamentavelmente, o partido não foi capaz de cumprir a contento este papel em parte devido à proximidade das eleições de 90, o comportamento isolacionista, em muitas das eleições locais, afastou-o ainda mais de seu papel de aglutinador das esquerdas.

Mesmo assim, ainda é o único partido capaz de oferecer a necessária militância a uma aliança das forças progressistas. Os próximos anos vão exigir do PT uma posição mais clara e uma estratégia mais definida quanto às suas relações com as demais forças de esquerda.
Se o compromisso maior está na transformação social através de um processo democrático, o PT tem que entender que isso exige uma maioria, e que a maioria é quase impossível, salvo em momentos muitos curtos, em torno de um único partido. O poder democrático se faz graças a coligações de forças com posições aproximadas.

A militância do PT tem preferido assumir que entre dois males políticos é melhor não escolher nenhum. Esquece que esta é uma escolha que pode ser pior para o povo.

A falta de uma visão mais tolerante e de um entendimento correto dos compromissos e das relações políticas vem dificultando também a convivência interna entre nossas diversas tendências.

Os temas da contemporaneidade

Mais do que qualquer outro partido, o PT tem sido capaz de incorporarem suas lutas os temas atuais, como o meio ambiente e os preconceitos contra as "minorias". Mas esta incorporação ainda se dá basicamente através de grupos alternativos, muitas vezes marginalizados dentro do partido.

Um novo momento está surgindo, onde a defesa dos direitos pelas chamadas "minorias" - ecológicas, raciais e sexuais - deve ser um compromisso de todos os militantes. Em uma nova postura ética, a defesa do equilíbrio ecológico, como dos direitos de cada minoria, deve passar para todos os militantes.

Ética, comportamento e sentimento de nacionalidade

Para a quase totalidade da militância do PT, ser ético é uma opção de comportamento individual de cada momento e não o conjunto dos princípios elaborados em torno dos objetivos com os quais o partido está comprometido. Para muitos militantes, basta não transigir para ser ético. A timidez com que o PT enfrentou a luta contra privilégios em alguns setores do serviço público é um dos exemplos da ética contraditória, em que o sectarismo e posto como símbolo de coerência.

Está em jogo, no atual processo político mundial, uma redescoberta da necessidade de uma revolução ética. As mudanças irão além da troca de um tipo de capitalismo por um tipo de socialismo, exigindo também uma mudança de postura na relação do homem com a natureza, da maioria com as "minorias", do equilíbrio entre eficiência, justiça e liberdade individual.

O PT precisa descobrir que uma nova ética faz parte dos objetivos, conscientes ou não, do povo brasileiro; e entender que o discurso político terá que incluir esta opção.

O partido deve não apenas cobrar a continuação da ética pessoal dos militantes, mas avançar e radicalizar na retomada e redefinição da ética global de um novo projeto.

O fato de termos vivido mais de vinte anos sob uma ditadura que tentou se identificar com o país e nos classificar como inimigos da pátria, deixou marcas, e alguns militantes chegaram a perder a dimensão do nacional. É urgente definir se há pontos de convergência que em determinados momentos possam unir temporariamente um conjunto de forças mais amplos do que a esquerda formal e até mesmo toda a sociedade brasileira. E neste caso não temer apoiar estes interesses em uma frente nacional.

A dimensão da crise

Uma grande parte da militância do PT considera a crise brasileira como um problema de relação entre salário e lucro. No máximo um problema de distribuição da renda. A realidade parece demonstrar uma gravidade muito mais profunda.

A crise brasileira transcende os problemas mais imediatos que caracterizam as sociedades capitalistas. Não é uma crise apenas de contradições, mas sim de desarticulação completa do tecido social. Uma crise ética que vai além do choque de valores: elimina valores.

Ignorar esta realidade pode fazer com que o partido assuma posições reacionárias, quando pensa estar avançando. Pode-se fazer o jogo da direita e de oportunistas, pensando estar cumprindo uma estratégia progressista.

A prática democrática interna

Apesar de falar constantemente em participação, e ser visto como "basista", nos últimos anos .o PT tem tido urna prática interna definida muito mais pelas cúpulas locais. Em vez de uma participação real das bases, muitas reuniões e assembléias são manipuladas para fazer prevalecer decisões tomadas previamente pelas tendências.

Esta prática tem marginalizado os militantes chamados independentes, dificultado a entrada de novos militantes e afastado o PT das bases populares.

Nos próximos anos o partido precisa rever este comportamento e voltar a acreditar na força da participação real, sem manipulação por parte de dirigentes de tendências.

A existência dessas tendências tem sido vista como um dos mais graves problemas do partido, que é dividido internamente porque o povo brasileiro está dividido diante das contradições criadas pelo desenvolvimento do país - sem uma proposta hegemônica que unifique seus interesses - e a esquerda está perplexa e ainda mais dividida do que antes, diante dos eventos no Leste Europeu.

Nestas condições, a existência de tendências pode ser inevitável e enriquecedora para o pensamento e a ação do partido; desde que nenhuma delas tenha interesses nem práticas de quinta-coluna. O partido se negará se tiver entre seus quadros, militantes que constituam tendências a serviço da direita, ou que vejam o PT apenas como um "cavalo" a ser montado na direção de objetivos diferentes.

As raízes da luta social

A visão "ocidental" do processo brasileiro faz com que o PT considere que a luta social se origina na contradição capital/trabalho, com o enfrentamento entre proletariado e burguesia. Com isto ficam esquecidos quatro séculos de luta dos negros contra a escravidão, e de seus descendentes contra o preconceito e pela dignidade. Fica esquecida também a resistência de muitos índios.

Ignorar estas lutas reduz a memória histórica do povo brasileiro. Além disto, retira estas parcelas do povo do cenário da luta atual. Provoca uma falta de consideração pelos grupos indígenas, ou sua consideração como menores incapazes; mantém resquícios de discriminação ou reduz a importância da luta contra o preconceito racial.

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Sem medo de ser alegre

Na última campanha presidencial o PT assumiu a bandeira do "sem medo de ser feliz". Mas continua sem ser capaz de assumir a bandeira do "sem medo de ser alegre" para cada um de seus militantes.

Todo indivíduo progressista tem obrigação de ser otimista. Por diversas influências que levaram à apologia da melancolia e do sofrimento como símbolos da visão intelectual, e por causa do sentimento de messianismo redentor oriundo de um tipo de cristianismo, muitos revolucionários tenderam para um claro comportamento irascível. Isto resulta não apenas em tristeza e sofrimento pessoal, mas também numa arrogância que dificulta o trabalho político.

O partido tem que colaborar no sentido de fazer da militância uma atividade prazerosa e não uma penitência visando a conquista de uma recompensa posterior. O papel do militante é fazer as mudanças que o país necessita, e não ganhar o céu através do auto-sacríficio.

O Governo Paralelo

Como resquícios do tempo de ditadura as oposições brasileiras ainda carregam o vício de descomprometer-se com alternativas para o país, limitando-se apenas a uma oposição sistemática.

A criação de uma equipe, o Governo Paralelo, para fiscalizar o governo e apresentar alternativas foi uma importante inovação na política brasileira. O PT saiu na frente das demais forças de oposição, criando este grupo de oposição intransigente, mas propositiva, preparando-se para exercer o poder.

Infelizmente, seja pela grande expectativa criada e não correspondida, seja por limitações próprias ou por falta de comunicações e de um método eficiente de relações com o partido, o Governo Paralelo ainda não foi absorvido como parte integrante do trabalho político do partido. Os quadros do partido ainda vêem o Governo Paralelo como uma instância paralela, de difícil compreensão quanto à sua função e suas relações institucionais com o PT, com a sociedade civil e com os demais partidos.

O PT tem que incorporar em seu debate dos próximos anos a prática a que o Governo Paralelo se propõe. Seja para levá-la adiante e absorvê-la definitivamente como instância do trabalho político partidário, seja para propor outra alternativa que cumpra esta função.

O partido como uma escola

O PT não adquiriu a tradição de estudos teóricos dos velhos militantes de esquerda. Para o partido, a teoria tem se limitado basicamente à discussão terminológica, sem um aprofundamento dos temas políticos nem o estudo dos temas globais da cultura humanista.

O PT dispõe de quadros intelectuais em quantidade maior do que qualquer outro partido brasileiro; mas estes quadros não dedicam esforço à tarefa pedagógica que um partido precisa oferecer a seus militantes. Quando o fazem, este esforço é para os militantes colegas de profissão, na linguagem esotérica, como se fosse parte do debate acadêmico. Não há uma relação de aprendizado mútuo, entre militantes com formações diferentes.

Os cursos que realiza são basicamente voltados para os problemas imediatos da prática política e sindical e que interessam apenas aos que necessitam de ferramentas de militância e não àqueles que, através do estudo, poderiam ser atraídos para a prática política.

Um partido que se propõe a realizar um projeto real de libertação de um povo tem que ser também uma escola.

Conclusão

Apesar das dificuldades, as condições estão dadas. Poderá se transformar em mais um partido diletante ou no partido de militância radical de defesa dos interesses da classe média. Usufruindo dos votos que se conquista com o discurso sectário, mas sem aprofundar suas análises, sem definir seu projeto e sem ter a possibilidade de ganhar as eleições que levam ao poder. E, se um dia ganhar, não ter um projeto nem a base política para a construção da nova sociedade democrática.

Isto não teria gravidade se o país e as massas brasileiras dispusessem de outros partidos capazes de representá-los. Mas o país não tem outros partidos populares com a perspectiva do PT. Alguns têm linguagem para o povo, mas não têm base militante que sobreviva historicamente e esteja espalhada nacionalmente, ou não têm a mística necessária para a luta, ou não têm base operária, ou não têm propostas para o Brasil de um futuro eficiente, democrático e justo. O PT é o único dos partidos, que pode vir a ter todas estas características. Ele já tem as mais difíceis. Falta apenas dar o salto para realizar sua terceira operação de militância, trabalhando uma agenda para o seu próprio futuro.

Cristovam Buarque é coordenador da área de Cidadania do Governo Paralelo.

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