Política

Essa forma de viver o político, que passa pelo sacrifício da vida pessoal ou pelo menos por sua subordinação à vida pública, não é uma criação da esquerda - nem sequer é recente. Ela vem da Antiguidade. A militância moderna já não comporta mais esse tipo de coisa.

Fazem parte da tradição dos partidos políticos combativos de esquerda - e entre nós este papel é ocupado pelo PT - um certo ideal e uma certa paixão que se podem resumir em duas palavras: a militância como abnegação. É significativo que não se trate apenas de um ideal ético, de um valor que se propugna, mas que também seja um pathos, uma maneira altamente emotiva pela qual se vivencia a coisa política. Penso que vale a pena discutir um pouco esse conjunto de práticas e emoções, para verem que medida uma política realmente emancipadora pode passar - ou não - por aí.

Essa forma de viver o político, que passa pelo sacrifício da vida pessoal ou pelo menos por sua subordinação à vida pública, não é uma criação da esquerda - nem sequer é recente. Aliás, corresponde muito bem à forma pela qual se praticava a política entre os gregos, melhor dizendo, em Atenas e nas outras democracias da Grécia Antiga. Comentando a comparação, tão corrente entre os gregos, do Estado com uma nave, e de seu dirigente como piloto, Paul Veyne chama a atenção para o fato de que essa nau não tinha passageiros, somente tripulantes1. Em outras palavras, o ideal da cidade grega democrática consistia num espaço político em que todos participavam da coisa pública. Daí, a importância da ágora, a praça pública, onde eram postas "no meio" (no meio da cidade, no meio de todos) as questões de interesse comum2. Comentando, no século XVIII, o que teria sido a república antiga, Montesquieu disse que as democracias se caracterizam pelo sorteio dos cargos públicos; e as aristocracias pela eleição: esta observação, que nos parece paradoxal, vem do fato de que na cidade grega muitos cargos eram atribuídos por sorteio, e isso porque se considerava que qualquer cidadão estava apto a exercê-los e que convinha evitar a concentração de poder que inevitavelmente resulta de uma eleição, na qual o melhor orador, o mais convincente, sempre leva vantagem sobre os demais cidadãos (por isso Thomas Hobbes diz que a democracia é uma aristocracia de oradores, havendo momentos em que se converte na monarquia de um único orador). Obviamente, certos cargos, como os de general, que exigiam grande especialização, não eram sorteados; mas lembremos, por exemplo, que quando Orestes é julgado por ter matado sua mãe, Clitemnestra, o tribunal ateniense que decide o seu caso se compõe de várias centenas de jurados. Difundir a política pelo maior número de pessoas, ter como ideal a maior participação possível, estas são características da democracia antiga.

Em 1819, Benjamin Constant - o pensador liberal nascido na Suíça e depois radicado na França, cujo renome inspirou os pais de um de nossos propagandistas republicanos no batismo do filho - faz uma conferência com o título "Da liberdade dos antigos, comparada com a dos modernos". É um texto-chave para se entender tanto a posição liberal quanto a crítica que ela pode dirigir à política democrática que se havia tentado à volta da Revolução Francesa. A idéia essencial de Constant era que para os antigos a liberdade consistia no direito que tinha a coletividade de resolver qualquer questão em público, ao passo que para os modernos a liberdade é o direito que tem cada indivíduo de resguardar sua vida privada das interferências externas, provenham estas de outros indivíduos ou da própria coletividade. A liberdade antiga era toda do coletivo, e nada do indivíduo, que facilmente podia ser oprimido (havia leis para regular o vestuário, a música, a educação etc.); a liberdade moderna é toda do indivíduo, e por isso até corre o risco (reconhece Constant) de descambar no que hoje chamaríamos de apolitismo. O erro da Revolução de 1789 teria estado - segundo ele - em procurar, por vezes em demasia, refazer hoje a liberdade antiga. Dizendo de outro modo, a política moderna tornou-se moderada, e não admite o furor sagrado de que davam mostra os participantes da antiga. Hoje, as atividades econômicas são essenciais ao cidadão, ao passo que em Atenas elas ocupavam parte bem menor da vida daquela porção dos habitantes que tinha o direito de cidadania.

Poderíamos discutir mais longamente essa referência que sem dúvida tem como pressuposto a propriedade privada enquanto um direito do indivíduo anterior e superior a qualquer organização social ou política -, mas uma nota pelo menos de Constant merece a maior atenção: o cidadão moderno não tem pela coisa pública o mesmo entusiasmo do cidadão antigo. Não está disposto a ir às assembléias com o ânimo e freqüência do ateniense. Aliás, Paul Veyne, no mesmo artigo que citei, dizia ainda que o cidadão antigo era o análogo do militante de hoje: na Antiguidade, a cidadania equivalia à nossa militância partidária. Penso que é esse caráter difícil, oneroso, da militância o ponto que devemos discutir aqui.

Política como paixão

Em 1748, Montesquieu publica O espírito das Leis. Falando das espécies de governo, analisa - além da monarquia e do despotismo - a república. Esta, diz ele, é típica da Antiguidade; nos tempos modernos, sobrevive apenas em pequenos Estados, a Holanda, Veneza. Não tem futuro. Essa observação soa singularmente despropositada, a trinta anos da Revolução Americana e a cinqüenta da Francesa, se esquecermos que a república por ele considerada equivale ao que chamamos de "democracia direta", e não à representativa (que será a adotada nas repúblicas modernas). O que caracterizaria a república democrática seria o fato de todos participarem da decisão. Ora, a cada regime político corresponde, diz Montesquieu, uma paixão, que confere vida e movimento ao que sem ela não passaria de uma estrutura inerte: no caso da república, a paixão exigida é a virtude. Fica difícil traduzir esta palavra, mas penso que o mais adequado é "abnegação". Trata-se do sentimento que leva cada um a preferir o bem comum a seu bem pessoal, a pôr a defesa da pátria acima de qualquer consideração particular.

Há um quadro do pintor David, datado de 1789 - o mesmo ano em que começa a Revolução -, e que me parece especialmente rico deste ponto de vista. O cônsul Lúcio Brutus, que governou a República Romana no século VI a.C., aparece lamentando a morte de seus filhos. Os dois rapazes haviam conspirado para restaurar a monarquia dos Tarquínios, depostos poucos anos antes, e o próprio pai os condenou à morte. Vemos, ao fundo, as mulheres da casa que choram, descabelando-se, exprimindo tudo o que sentem; sobre uma mesa, estendidos, os dois corpos; à frente o pai, sem nada que se compare à dor histérica das mulheres, mas estampado no rosto todo o sofrimento do mundo. O sentimento republicano de abnegação aqui aparece coma maior nitidez possível. O pai não é desnaturado, nem sente prazer ao mandar matar os filhos. Sofre, e profundamente, mas a causa da república é superior a seus sentimentos pessoais.

A questão que se coloca é: em que medida a idéia de militância de esquerda, em nosso século, não prolonga esses ideais, quer da Antiguidade, quer dos revolucionários que, em fins do século XVIII, pensaram criar um regime novo, depurado da corrupção monárquica, e que para tanto passaram a exigir de seus militantes um pathos talvez excessivo? Esse ideal, que chegou a sua forma modelar com a idéia leninista do revolucionário profissional e a prática do centralismo democrático, justificava-se com base em dois pontos: 1) para destruir a estrutura dominante de classes, é preciso travar uma guerra implacável, qualquer sinal de molície (para retomarmos um termo que poderia ser usado por um republicano de Roma)3 dará vitória ao inimigo; 2) mas a exigência de total austeridade, de completa abnegação é passageira: serão necessárias por alguns anos, quando muito algumas gerações - o tempo de se efetuar a passagem. O socialismo, ou a forma realizada do comunismo, dispensarão os homens desse tipo de conduta.

Ora, - qualquer que seja a nossa opinião no tocante a força do capitalismo e da dominação que ele instaura, e por conseguinte às formas de luta a utilizar contra ele - o problema é que esse meio de enfrentá-lo, a militância abnegada, entra demais em choque tanto com as principais características da vida atual, quanto com os fins que hão de consistir na emancipação dos homens. Concedemos até, por hipótese, que o mais adequado para derrubar a opressão de classes seja um grupo bem organizado de militantes; o problema é que a militância, mais e mais, tende a se contrapor aos valores pelos quais se orienta a vida atual. Concedamos que a militância seja eficaz, por seus efeitos; mas perguntemos que custo ela tem, para quem a pratica, e para a sociedade na qual sé move.

Há um custo social da militância abnegada. Como ela consiste numa doação de si à causa pela qual se luta, termina desenhando um recorte na sociedade que separa, nitidamente, os que trabalham politicamente de seus beneficiários. Inevitavelmente, os atuantes acabam se constituindo como representantes, mais esclarecidos do que a massa de seus representados. Daí à constituição de um aparato opressivo, a distância é mínima. Basta que o militante se confunda com um militar, e que tome a luta de classes por uma guerra, para que uma hierarquia como a de um exército se delineie. E nem é preciso tanto: basta que o militante entenda que age com base na ciência ou na certeza, e que os outros estão sendo manipulados, para que ele possa se constituir como o detentor de um saber (frente aos ignorantes), como o portador de uma consciência (face aos inconscientes), e desta forma estabeleça o seu poder sobre os seus supostos beneficiários.

É claro que o militante constrói então, para si mesmo, a tese de que o desinteresse pelos assuntos políticos sentido talvez pela maioria de seus concidadãos se deve à opressão de classes, que criou seres apolíticos - como se, por natureza, os homens se interessassem pela coisa pública. Ele tem razão, e os outros foram enganados: ao agir politicamente, mesmo que só, ele faz o que todos os homens, numa sociedade livre, haverão de praticar. O que impressiona mais, a beleza dessa tese ou seu caráter puramente ideal, o fato de que nada pode apresentar, a não ser a própria teoria, para sustentar o que afirma?

Sentimento religioso

Há, além disso, um custo psicológico da militância abnegada. Os valores que ela preza são os do sacrifício, da entrega gratuita. Haverá valores mais religiosos do que estes? Ora, o marxismo é, atavicamente, um pensamento racional, por vezes racionalista, crítico da religião, herdeiro do iluminismo. Como poderá o militante de inspiração marxista prezar, na sua estrutura psíquica, acima de tudo ideais que provêm das velhas religiões? Mesmo que ele seja completamente agnóstico, ou mesmo ateu, poderá ocorrer - sem que o perceba que em sua prática se infiltrem os velhos valores pelos quais nega a si em favor de valores superiores.

Assim, um importante desafio que se coloca hoje à política é o de como fazê-la a um custo psicológico menor. É verdade que muitos desejariam que ela pudesse ser praticada não a baixo custo, mas de um modo diferente, graças ao qual fazer política proporcionasse prazer ou mesmo felicidade. Por essa via, a política que hoje presenciamos corresponderia a um modo de vida alienado; seria preciso os homens passarem a ver na política uma via essencial para sua realização; e quem defende essa posição, se lê comentários como o de Constant, haverá de entendê-los como resultado do desinteresse pela coisa pública induzido pelo capitalismo, da privatização dos interesses, do individualismo que resulta de uma estratégia do "dividir para reinar". Não se pode negar que essa perspectiva tem uma certa razão; mas um dos desafios para. a esquerda, hoje, consiste em admitir que a vida privada não é um valor apenas burguês, ou melhor, não é um valor que se esgota historicamente caso se esgote a forma histórica do capitalismo. Podemos até mudar o seu nome, mas é inegável que se constituiu um mundo no qual boa parte da regeneração energética e do interesse pela vida passam pelas relações imediatas, íntimas, e não pela participação coletiva. É claro que com isso entendemos por vida privada, não a esfera dos interesses e da propriedade, mas a da intimidade e dos afetos. Podemos até indagar se a militância - que aparentemente constitui o tipo de conduta oposto a essa vida na intimidade não seria, na verdade, mais um exemplo de comportamento baseado em relações pessoais e privadas. Basta ver como certos agrupamentos militantes se convertem num agente privilegiado de socialização de seus membros. Como isto ocorre sobretudo entre os mais jovens - no movimento estudantil ou em sindicatos - essa hipótese já foi levantada: embora se coloquem a serviço de um propósito coletivo, estas pessoas estariam vivendo segundo uma percepção que é a das relações imediatas. Assim é que vivem seu lazer e mesmo namoram entre si. A militância, se for um ideal ou uma paixão, corre o risco de perder o contato essencial com o mundo em que ela mesma vive.

A condição feminina

Por isso, é mais realista pensar numa política que se dê a baixo custo psicológico. Será preciso, então, reler Montesquieu. Falando das formas de governo, diz ele que a monarquia proporciona mais liberdade que a república. (Constant mais tarde explicará este paradoxo, dizendo que a "monarquia" de Montesquieu corresponde à sociedade moderna, com a liberdade que a caracteriza.) Além disso, a condição feminina é mais livre na monarquia do que na república. Nesta, os cidadãos são os varões, e as mulheres estão subordinadas a eles, chegando-se - em Roma - a terem eles direito de vida e morte sobre todos os membros da família. Pode haver preconceito em Montesquieu ao associar a condição feminina ao gosto pelo luxo (O espírito das leis, livro VIII), mas o ponto que nos interessa é que o varão assim aparece como o resultado de uma construção artificialíssima e laboriosa, a do cidadão romano. É óbvio que Montesquieu remete a todo um contexto de pensamento que não é o nosso, e por isso fica difícil extrair conclusões de seu tempo para o nosso. Mas é bem significativo que a contestação à política militante corresponda, também, a uma valorização social da mulher e de dimensões suas que historicamente foram objeto de algum desdém (o trabalho doméstico, a dimensão afetiva, a suposta irracionalidade feminina, o gosto por se enfeitar). É claro que esta valorização se dá ao mesmo tempo que surgem movimentos feministas, que transpõem para a luta das mulheres valores de socialização que têm muito em comum com a velha militância varonil. É sabido que isso coloca muitos problemas. Num belo artigo, publicado na Folha de S. Paulo, Arnaldo Jabor analisava quatro mulheres que se projetaram na cena pública brasileira, para comentar uma frase que algumas repetem: "Vou voltar a ser mulher", querendo dizer, cuidar de si, da casa, do amor, ter filhos. E perguntava Jabor: "que é isso, a feminilidade aparece como volta, como retorno?" Talvez aqui esteja a chave da dificuldade que opõe a militância - e a coisa pública - à vida privada - e à dimensão não tanto econômica, mas dos afetos: a cena coletiva esgota. Certamente é preciso - e talvez seja possível - criar uma outra forma de intervenção política, cujo custo seja menor, e que permita por exemplo às mulheres (e neste ponto elas representam todos nós, em especial os homens que não têm por ideal o revolucionário bolchevista ou - o que dá quase na mesma - o cidadão e pai-de-família romano) uma atuação pública mais interessante do que esse velho e superado modelo.

Renato Janine Ribeiro é professor de Filosofia Política na USP.