Cultura

É espantoso que o PT não tenha sido capaz, até hoje, de avaliar o significado da cultura para sua ação. É fundamental alargar esta conceituação e ultrapassar os marcos da institucionalidade vigente, que reduz às belas-artes.

Frequentemente jovens simpatizantes do Partido dos Trabalhadores indagam porque é tão difícil aos petistas a comunicação rápida, direta, persuasiva e imediatamente convincente para com os outros. Por que - perguntaram muitos deles em 1989 - Fernando Collor captou a simpatia e a adesão dos trabalhadores mais pobres, justamente aqueles que deveriam identificar-se com as teses do PT?

Para os dominantes de uma sociedade de classes, pensar e expressar-se é coisa fácil: basta repetir idéias e valores que formam as representações dominantes da sociedade (afinal, dizia Marx, as idéias dominantes de uma época são as da classe dominante dessa época). O pensamento e o discurso da direita, apenas alterando o estoque de imagens, reiteram o senso-comum que permeia toda a sociedade e que constitui o código imediato de explicação e interpretação da realidade, válido para todos. Por isso é fácil falar, persuadir e convencer: os interlocutores já estão identificados com os conteúdos dessa fala, que é também a sua na vida cotidiana.

Para a esquerda, a dificuldade é imensa, pois o pensamento e o discurso são forçados a realizar quatro trabalhos sucessivos ou simultâneos: desmontar o senso-comum presente no discurso da direita; desmontar a aparência de realidade e de evidência que as condições e práticas sociais dadas parecem possuir e sobre as quais fundam-se tanto a fala da direita quanto a compreensão dos demais; reinterpretar a realidade em seus fundamentos, em seus pressupostos secretos e em suas determinações invisíveis, em seu modo de produção e de aparição para, assim, explicar e compreender o movimento de constituição do que chamamos de sociedade, política e história e, finalmente, encontrar um discurso novo, capaz de exprimira desconstrução das aparências e a nova interpretação do real. Um discurso que mostre ao interlocutor os poderes da ilusão do senso-comum, que convença o interlocutor da necessidade de uma apreensão crítica dos dados imediatos da experiência e, sobretudo, que seja capaz de transformar o interlocutor em parceiro e companheiro de mudanças sobre aquilo que foi desvendado e compreendido. Porque é da natureza mesma da esquerda a posição de crítica visando à transformação, de ruptura com o estabelecido - onde se reproduzem a exploração e a dominação, de afirmação da possibilidade da emancipação e da liberdade pela própria ação política e social, o vínculo da esquerda com a cultura é originário, essencial e definitivo. A cultura é, para a esquerda, a capacidade de decifrar a produção social da memória e a produção social da amnésia; a produção social das obras de pensamento e das obras de arte; a produção social das experiências, idéias e valores e, sobretudo, a esperança racional de que dessas experiências, idéias e valores surja um sentido emancipatório.
É através da cultura que os trabalhadores criam sua memória, sua crônica e suas tradições: inventam espaços, datas e símbolos próprios. A festa do 1° de Maio é o exemplo mais luminoso dessa criação autônoma da classe trabalhadora no campo cultural, propondo um calendário e, portanto, uma relação com o tempo (passado e futuro) oposta e diversa à da classe dominante e sua cronologia.

Sob essa perspectiva, nós, secretários municipais de cultura, julgamos espantoso que o PT não tenha sido, até hoje, capaz de avaliar o significado e a importância da cultura para sua ação e interpretação da realidade histórica. Espanta-nos também que não tenha sido percebido o vínculo interno entre política cultural e cultura política (não é surpreendente que o PT possua secretarias e departamentos de Formação Política nos quais não se toca nos problemas de política cultural?). Espanta-nos, finalmente, que num partido de esquerda a cultura possa ser vista (quando o é) como algo "setorial" ou "específico", à maneira dos transportes, da saúde ou da habitação.

Contextualizar a discussão

Nossa discussão sobre a cultura deve ser a mais contextualizada possível, que entendemos ser:

• a maneira como a questão cultural aparece - ou melhor, não aparece nos documentos partidários de preparação ao 1º Congresso;

• a maneira como a questão cultural aparece - ou não aparece - nas discussões dos encontros do PT, nas publicações petistas e na elaboração de plataformas eleitorais;

• a maneira pela qual a cultura é tratada pelos atuais governos municipais petistas: situação orçamentária, situação de infra-estrutura física e administrativa, lugar ocupado nas prioridades governamentais, visão que os demais membros dos governos municipais possuem acerca da cultura e das instituições públicas de cultura;

• a maneira como os parlamentares petistas se relacionam com as instituições culturais municipais;

• a maneira como os militantes e filiados petistas se relacionam com as instituições municipais de cultura;

• a relação entre a sociedade civil e as instituições governamentais municipais de cultura;

• a estrutura burocrático-jurídico-administrativa das secretarias ou departamentos municipais de cultura;

• as relações ou a ausência de relações entre as secretarias e departamentos de cultura dos governos petistas;

• o modo como a cultura é tratada no plano nacional, as ideologias em jogo e a hegemonia neoliberal.
Nos documentos preparatórios do Congresso e, particularmente, no documento da SAI (Secretaria de Assuntos Institucionais) sobre políticas setoriais, causa surpresa a total ausência da cultura. Pelo menos por três motivos: A estrutura das prefeituras obrigou os petistas a aceitarem a existência de serviços públicos de cultura e de atividades culturais patrocinadas pelos fundos públicos. Portanto, se a questão cultural, até 1989, não tinha porque ser discutida pelo PT, a partir de então, pelo menos a existência empírica e factual de secretarias e departamentos municipais de cultura poderia ter feito o PT colocar em seus documentos de preparação do Congresso um item dedicado à cultura.

Em segundo lugar, o primeiro ato do governo Collor, simultâneo ao plano econômico nacional, foi o da supressão dos serviços públicos de cultura e a apresentação de um projeto neoliberal para o setor, projeto que não pôde ser inteiramente aplicado justamente porque as atividades culturais de algumas prefeituras petistas criaram tamanho contraste e tamanha perda de legitimidade para o governo federal, que este não só tentou voltar atrás como ainda escolheu um secretário Nacional de Cultura proveniente da esquerda.